A presunção de inocência está em risco?
Sempre esteve em risco. Quando escrevi este livro, um trabalho académico que começou há 20 anos, já estava em risco. Está sempre porque cada um de nós não é dado a presumir a inocência. É mais fácil presumir a culpa. Desse ponto de vista está em risco, por isso é que a Constituição e a Lei obrigam a que haja presunção de inocência, ao legislador, ao aplicador do Direito e à comunidade em geral. Mas hoje a presunção de inocência está mais em risco.
A culpa é da mediatização da justiça?
Sempre houve ameaças à presunção de inocência, quer dentro do processo quer fora. É bom não esquecer que a presunção de inocência se aplica nas duas vertentes. Mas uma grande mediatização, uma grande atenção pelo tema da justiça, às vezes uma grande precipitação podem contribuir para aumentar o perigo a que está sujeita a presunção de inocência. E quanto mais fervor provoca um processo, menor é essa presunção.
Isso põe em risco a presunção de inocência dentro do processo?
Pelo menos teórica ou hipoteticamente temos de admitir a hipótese de que a exposição pública dos processos pode ter algum impacto dentro deles.
E influenciar os juízes, as sentenças?
É possível que influencie. É sempre difícil de aferir em cada caso concreto. Há pessoas que fazem um esforço maior para se isolarem do ruído público, outras que farão menos. Umas que estão mais preocupadas com esse ruído público, outras menos. Tenho conhecido de tudo. Em todas as profissões há pessoas mais notáveis e outras menos notáveis. Às vezes, o ruído pode ter influência no processo. Devemos pensar nisso. Assim como algumas declaradas e descaradas violações do segredo de justiça possam ter, por vezes, o intuito de criar um determinado cenário que venha a influenciar o percurso das coisas. Quero acreditar que não, mas há pessoas e pessoas. Profissionais e profissionais. Ruídos e ruídos. Pode acontecer que todo este espetáculo a volta dos processos, como se vê todas as semanas, seja pelo tema seja pelas pessoas envolvidas, possa ter, teoricamente e em alguns casos, alguma influência. E isso é um problema.
Acha que os media dão mais destaque às teses do Ministério Público (MP)?
Uma coisa é especularmos de onde vêm as notícias, elas vêm de todos os lados. Nesta matéria há hipócritas, mas não há inocentes. Outra é saber se há mais tendência para noticiar as suspeitas, buscas e acusações ou as teses de defesa e absolvições. Há mais propensão para noticiar as primeiras, têm mais impacto. É a natureza das coisas. Da mesma forma que no séc. XVIII o povo ia assistir ao suplício dos Távoras, no séc. XXI o suplício dos poderosos faz-se através da comunicação social, das redes sociais, da internet.
O MP tem mais responsabilidade na violação do segredo de justiça?
É um crime, e se for feito por um profissional que tenha um estatuto disciplinar, como um juiz, um procurador, um funcionário judicial, um advogado, além de um crime pratica um ilícito disciplinar. É óbvio que, em certos casos, a responsabilidade é acrescida quando alguém tem o processo à sua guarda. E quando o processo começa, quando há buscas, está à guarda do MP. Nesses casos, mesmo que não seja o MP a violar o segredo de justiça, e eu quero acreditar que não é, ainda assim tem o especial dever de guarda. O processo está com ele, na sua casa. Tem responsabilidade acrescida.
Então, o MP tem mais culpa na violação do segredo de justiça.
É preciso que nos façamos a seguinte pergunta: porque é que em Portugal se viola tantas vezes e tão descaradamente o segredo de justiça em certos processos? Ou são os que criam alguma faceta de entretenimento ou naqueles que envolvem matérias mais complexas, com pessoas mais poderosas. É por azar? É porque os jornalistas, que também praticam o crime, tropeçam nas coisas? Ou é porque há fontes? Há fontes e há consumidores, que vivem numa sociedade em que o escrutínio é muito intenso, em que há voyeriusmo. Do ponto de vista das fontes temos de perguntar quais são as suas motivações? Em muitos casos são para influenciar num sentido ou noutro. Qualquer um de nós será tolo se achar que não há uma intenção. E, em alguns casos, esse propósito é o de influenciar a opinião pública e até dentro do processo, por mais resistentes que sejam os decisores.
Os juízes não são resistentes?
Por mais frio, profissional, isento, íntegro que seja o juiz, e tenho conhecido a esmagadora maioria que o é, mesmo assim, é difícil resistir a um cenário que se cria, a um pré-juízo. E, muitas vezes, também é difícil resistir ao clamor da opinião pública. É preciso muita força.
É mais difícil defender um arguido que tenha na opinião pública uma presunção de culpa?Claro que sim. E é uma dificuldade acrescida defender alguém num processo mediático. Tem de se trabalhar em dois planos, no do processo e no da esfera pública. Em muitos destes casos pode haver tendência, pelo menos na esfera pública, para uma presunção de culpa. E aí tem de haver também um combate. Defendemos os interesses dos nossos clientes além dos processos, eles têm uma honra, uma dignidade, um nome, uma presunção de inocência. Por isso, não me recuso a prestar declarações quando sou abordado. É necessário para a defesa dos clientes.
Também ficam mais preocupados com o julgamento público?
Em alguns casos, até mais com a esfera pública do que com os processos. Porque os processo têm um conjunto de garantias, de procedimentos, onde à partida se pode crer que, quando se é inocente, se vai chegar a provar essa inocência. Na esfera pública, as coisas evoluem com uma rapidez, com uma grande superficialidade, e é difícil contrariar a presunção de culpa. Até os advogados são tratados com uma certa desconfiança, como se tivessem barreiras éticas mais baixas ou menos exigíveis. E isso incomoda-me.
Muitas vezes, quando há uma absolvição, continua uma névoa de dúvida. Isso não descredibiliza a imagem da justiça?
Sim. Isso combate-se com pedagogia. A primeira coisa a explicar é que uma pessoa ser acusada e depois ser absolvida é a coisa mais natural do mundo. É para isso que serve o processo. Não serve para punir culpados, mas para averiguar se há culpados. Hoje em dia parte-se do princípio de que o processo é para punir os culpados e já se determinou quem são. Isso é uma total perversão do que é o processo penal e do que é o Estado democrático.
Parece que a justiça só funciona se existirem condenações.
E quando isso não acontece, as pessoas ficam espantadas e perplexas e pensam que a justiça não está a funcionar ou que os advogados são manhosos. Isto é do mais pernicioso que há para a saúde da República. Ser-se acusado e ser-se absolvido é normalíssimo. Como ser-se acusado e ser-se condenado. Ou como ser-se acusado, condenado e absolvido a seguir. É o sistema a funcionar. É para isso que existe o sistema, o direito à defesa. Criou-se a ideia que se há buscas, detenção, então se houver prisão preventiva, não pode haver uma absolvição. Muitas vezes, essa ideia é alimentada por alguma falta de perceção que tem a ver com a comunicação social e a voracidade das redes sociais. Mas também por algumas pessoas que têm responsabilidades, seja por percurso de vida, espaço mediático, por serem políticos ou ex-políticos, académicos, têm uma espécie de voragem por cavalgar essa onda de que está tudo mal, são todos culpados, deviam ser todos punidos. E quando há absolvição é porque alguma coisa de mal aconteceu.