Líder cigano acusado de casamento à força e rapto
Rapariga foi forçada a casar-se, violada e ‘presa’ em casa. Associações ciganas falam de “crime inadmissível”
Rapariga foi forçada a casar-se, violada e ‘presa’ em casa. Associações ciganas falam de “crime inadmissível”
Jornalista
Oito elementos da comunidade cigana de Aveiro vão saber esta terça-feira se terão de cumprir uma pena de prisão por terem forçado uma rapariga de 19 anos a casar-se com um homem de 29. Entre os acusados está Tomás Garcia, que o Ministério Público descreve como “o patriarca” daquela comunidade. Este homem, que ficou em prisão domiciliária com uma pulseira eletrónica no Natal de 2017, terá dado luz verde ao rapto, violação e casamento forçado de Júlia (nome fictício) com José Monteiro, conhecido pela alcunha de “Pepino”.
Tomás Garcia é avô por afinidade de Júlia e nem ele nem o pai da rapariga aceitavam o facto de a jovem namorar um rapaz não cigano. Por ordem de um tribunal, Júlia estava numa instituição de proteção de menores desde os 16 anos e “manifestou vontade de se afastar dos costumes da sua etnia”, diz a acusação do MP. Mas o pai, que estava a cumprir uma pena de prisão por tráfico de droga, decidiu arranjar-lhe um marido cigano e convenceu “Pepino”, que também estava a cumprir pena por tráfico, a casar-se com ela. O plano foi posto em marcha na véspera do Natal de 2017.
Aproveitando uma saída precária da cadeia, o pai ordenou à filha que viesse passar o Natal com ele e com as tias ao acampamento onde viviam. No dia 25 de dezembro, ao invés de entregar Júlia no colégio, como tinha combinado, levou-a até Aveiro, à casa de Tomás Garcia, o patriarca da comunidade.
Num dos quartos estava “Pepino” e Júlia foi obrigada pelo pai e pelos familiares do noivo a entrar para que os dois “falassem”. Mas a rapariga recusou-se, teve um ataque de choro e só não foi agredida por Tomás Garcia porque os outros presentes o impediram. A jovem mandou mensagens por telemóvel a pedir ajuda ao namorado e a uma amiga, mas o pai tirou-lhe o aparelho e destruiu o cartão SIM antes que pudesse falar com alguém.
Ainda segundo a acusação do MP, nesse mesmo dia houve uma festa de casamento “com música cigana” e, depois de dançar com o noivo, Júlia foi levada de madrugada para casa dos pais de “Pepino” onde foi ameaçada de morte pelo próprio pai e pelos sogros caso tentasse fugir. Foi obrigada a ter relações sexuais com o noivo, consumando assim o casamento forçado.
“É simplesmente inadmissível uma situação destas no século XXI, num país do primeiro mundo. Estas coisas não podem acontecer, são crime. É absolutamente fora de comum. Admito que era um hábito há uns anos, mas hoje os ciganos que praticam este tipo de atos são criticados e ostracizados pelos outros ciganos”, diz Bruno Gonçalves, da Letras Nómadas, associação que defende a integração dos ciganos. “É errado dizer-se que isto acontece na comunidade cigana porque não há uma comunidade cigana. Há várias, mais precisamente três: os que estão integrados, em que os casamentos com outras etnias são o normal; os que se estão a integrar, que vão aceitando essas situações; e os que vivem à parte, onde este tipo de coisas ainda acontece”, diz o mesmo dirigente.
José Gabriel Pereira Bastos, antropólogo e autor de um relatório sobre minorias étnicas em Portugal, concorda que “não se pode falar de uma comunidade homogénea de ciganos” e que “a mais tradicional” é “muito hierarquizada” e “dependente dos gerontes, tios ou patriarcas que veem muito mal a saída de uma rapariga da própria cultura”. Por isso, acrescenta Pereira Bastos, “as raparigas são casadas muito novas, virgens, e se o casamento falhar as famílias podem tornar-se inimigas, contrárias”.
“Pepino” e Júlia viveram como um casal até 6 de janeiro de 2018, quando o homem foi detido pela polícia por não se ter apresentado na cadeia na data prevista. A rapariga ainda foi forçada a viver com os sogros durante quase um mês e trabalhou para eles a arrumar carros no parque de estacionamento de um hospital. Obrigaram-na a ir visitar o marido à cadeia e nunca mais a deixaram andar sozinha na rua. A acusação diz que de todas vezes que lhe ligavam da instituição, Júlia era obrigada pela sogra a dizer que não voltava “por livre vontade”.
A acusação é omissa em relação a quem denunciou o caso, mas a 24 de janeiro do mesmo ano a Polícia Judiciária levou Júlia para o colégio onde a rapariga acabou por contar o que lhe tinha acontecido. Todos os envolvidos que não estavam já a cumprir pena foram detidos e acusados de rapto, casamento forçado e violação. O pai de Júlia é um dos acusados.
Citado pelo “Jornal de Notícias”, Augusto Murta, advogado de quatro arguidos, defendeu a absolvição dos envolvidos alegando que “as mulheres são seres voláteis” para quem “o que é verdade hoje pode ser mentira amanhã”.
Para proteção da vítima, o julgamento decorreu à porta fechada e a leitura da sentença, que estava marcada para 12 de março, foi adiada para a próxima terça-feira, 19, Dia do Pai.
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