Sociedade

A bata branca do avesso

Tirando imponderáveis de variadíssima ordem, há em geral algo em comum no nascimento e na morte de alguém: um enfermeiro. Eis a realidade de uma profissão que está debaixo de todos os holofotes

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Os sindicatos que convocaram a greve de 8 de março chamam-lhe “Marcha Branca” que, entre reivindicações de descongelamento de carreira, prestará homenagem a Florence Nightingale, enfermeira inglesa, nascida em Itália, também conhecida por “dama da lâmpada”, que deu grandes pedradas no charco territorial do género masculino, pela sua ação no tratamento de feridos em combate na Guerra da Crimeia (1853/56), sendo fundadora da primeira escola de enfermagem inglesa no Hospital Saint Thomas, em Londres.

Na “Marcha Branca” não deverão estar incluídas mais de 15 mil batas de enfermeiros portugueses na diáspora profissional, muito por fruto da emigração destes profissionais durante o período da troika. O grande destino de eleição, apesar de ter diminuído em razão do ‘Brexit’, continua a ser o Reino Unido, seguido de França e Alemanha, respetivamente. A Alemanha e a França, tendo o Luxemburgo (outro destino de enfermeiros portugueses) de permeio, são os países com maior percentagem de enfermeiros por cada 100 mil habitantes. Neste rácio, a Alemanha não encontra par na Europa, com uma média de 1653,9 enfermeiros para cada 100 mil habitantes. No Luxemburgo, a média é igualmente alta, mas substancialmente inferior: 1234,7 enfermeiros para o mesmo número de habitantes. Cada 100 mil cidadãos franceses têm, por sua vez, uma média de 1053,3 enfermeiros. Próximos desta realidade, ficam a Eslovénia (989,6 enfermeiros para cada 100 mil habitantes) e a Lituânia, com 805,7. Portugal tem como barómetro a Itália, onde existem 684 enfermeiros por cada 100 mil habitantes. Para cada 100 mil portugueses, há em média 673 enfermeiros, embora a média atual seja ligeiramente superior (678, de acordo com as estatísticas da Ordem dos Enfermeiros), uma vez que os números europeus, sendo os mais recentes, são até 2017.

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A realidade da enfermagem portuguesa está ainda a léguas da paridade, nos antípodas da generalidade das profissões. Segundo os dados da Ordem dos Enfermeiros, no início de 2018 existiam em Portugal 71.802 enfermeiros, sendo 58.939 mulheres e 12.863 homens. Só existe um ramo específico de atividade (mais um dois em um) em que é maior o número de enfermeiros do que de enfermeiras. Precisamente o que se enquadra em estabelecimentos prisionais/ forças de segurança, no qual desempenham funções 48 mulheres e 104 homens, num total de 152 profissionais.

Como é óbvio, é nos hospitais que se concentra a larga maioria dos enfermeiros: exatamente 36 mil, no total, números repartidos por 29.173 no feminino, 6827 no masculino. De seguida, sem quaisquer surpresas, os centros de saúde, onde trabalham hoje em dia 6450 enfermeiras e 933 enfermeiros, num total de 7383 elementos. Talvez algo surpreendentemente (ou não), surgem em terceiro lugar os enfermeiros em exercício de atividade liberal, num conjunto de 1403 profissionais (1120 mulheres, 283 homens). Embora com números totais muito próximo, só depois surgem os enfermeiros em funções nas clínicas e estabelecimentos de saúde privados, concentrando 1317 profissionais, sendo destes 282 homens, com as mulheres de novo em clara maioria: 1035. No ensino, onde é igualmente superior o número de mulheres, albergam-se 730 profissionais de enfermagem, somando 189 enfermeiros e 541 enfermeiras. Seguidamente, os lares e as casas de saúde, que integram um total de 618 profissionais no ativo (475 mulheres/ 143 homens). E só então surgem as chamadas IPSS (institutos particulares de solidariedade social), nas quais trabalham 493 mulheres e 108 homens, num agregado de 601 enfermeiros. Nos serviços ligados à prevenção e tratamentos de toxicodependência atuam 104 mulheres e 49 homens, num total de 153 enfermeiros. Mais um dos que atuam nos referidos estabelecimentos prisionais e forças de segurança. Os enfermeiros aposentados perfazem um total de 589, sendo destes 146 homens e 443 mulheres.

Para completar o número de enfermeiros total, uma pequena incógnita e outra gigante, ambas dificilmente enquadráveis em quaisquer área específica de atividade. Há 182 enfermeiras e 62 enfermeiros (total de 244) em situação de “Outros”. E ainda um enormíssimo “Desconhecido”, onde permanecem 18.875 enfermeiras e 3737 enfermeiros, num total de 22.612 profissionais que, com exceção dos enfermeiros de serviço nos hospitais, ultrapassam em número todas as áreas de atividade mencionadas. A Ordem dos Enfermeiros explica-os assim: “Situação de enfermeiros que no ato de inscrição não se encontravam em exercício profissional e que entretanto não atualizaram os dados.” Entre os enfermeiros estrangeiros a exercer em Portugal, os espanhóis continuam em franca maioria: 777 mulheres, 310 homens, num total de 1087. Seguidos de muito longe pelos brasileiros, num total de 245 (226 mulheres, 19 homens). Há enfermeiros de 36 nacionalidades em Portugal.

Quanto às faixas etárias, algumas surpresas de longevidade na profissão. Começando pelo fim: Há 1427 enfermeiros a exercer a atividade com mais de 70 anos (1108 mulheres, 319 homens). São atualmente mais do que os enfermeiros entre os 66 e os 70 anos (1023 mulheres e 264 homens), num total de 1287. Nas faixas etárias mais novas, entre os 21 e os 25 anos, há 4677 enfermeiros na profissão, repartindo-se entre 662 homens e 4015 mulheres. Entre os 26 e os 30 anos, 8484 mulheres e 1320 homens, somando 9804. Entre os 31 e os 35 anos, a faixa etária que concentra maior número de profissionais, há no ativo 2600 homens e 12261 mulheres, totalizando 14861 enfermeiros. A exercer a profissão entre os 36 e os 40 anos, um total de 11.393 (9061 mulheres/ 2332 homens). Entre os 41 e os 45 anos, 7969 profissionais (6471 mulheres/ 1498 homens). Entre os 46 e os 50 anos, 1204 homens e 5738 mulheres) num agregado de 6942. Nas idades entre 51 e 55 anos, são 6715 (5483 mulheres/ 1232 homens). 4431 enfermeiros (3512 mulheres e 919 homens) situam-se entre os 56 e os 60 anos. Entre os 61 e os 65 anos, totalizam 2296 (1783 mulheres e 513 homens). Quanto mais ‘idosa’ a faixa etária, maior o número de mulheres, o que diz bem do despertar tardio dos homens para esta profissão.

A que se deve o facto de a enfermagem ser uma profissão de mulheres e de esta tendência persistir? Conceição Gonçalves, enfermeira com larga experiência, atualmente a exercer a profissão na área da prevenção e tratamento de toxicodependência, entende que isto tem que ver sobretudo com o preconceito. “O preconceito dos homens em abraçar uma profissão vista historicamente como de mulheres. Nos anos 80, quando comecei a tirar o meu curso, não existia um único homem. Só no meu último ano de curso, lá apareceu o primeiro ‘criaturo’. Acho que prevalecia, assim como ainda prevalece, a ideia do feminino na profissão, a imagem da mulher cuidadora, que abdica de tudo para se dedicar aos outros”, refere. Para quem está a começar na profissão, no feminino ou no masculino, as grandes dificuldades prendem-se em geral com as condições de trabalho, a baixa remuneração e as longas horas de trabalho, assim como o “escassíssimo tempo de adaptação aos serviços”. Razões que, por entre muitas outras que não são exclusivas desta profissão tão específica, continuam a obrigar estes profissionais a emigrarem. “Como sabemos, não é um problema dos enfermeiros. É um problema nacional.” Não há estatísticas exatas sobre esta realidade, mas hoje há muitos enfermeiros a aprender alemão. Um dia destes ouviremos o inevitável “auf Wiedersehen”.

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