“O pleno emprego dos doutorados é mentira”
Entrevista a Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior
Entrevista a Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior
Jornalista
Uma carta aberta assinada por mais de mil cientistas da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), uma manifestação da ABIC e da Fenprof à porta do Conselho de Ministros e uma campanha de protesto do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), foram as reações à recente entrevista do ministro da Ciência ao “Público”, em que Manuel Heitor afirma não ter “dúvida nenhuma” de que há pleno emprego entre os doutorados.
Dos cinco mil contratos para doutorados prometidos pelo Governo, só 1500 foram formalizados. A oito meses das legislativas, a meta poderá ser atingida?
Temos sérias dúvidas. Há até contratos que estão a ser contabilizados nos 1500 mas de forma incorreta, porque resultam de medidas que vêm de trás e que se transportaram para este Governo. E há um concurso que não deverá ser cumprido, o Estímulo ao Emprego Científico Individual 2018. Aliás, os resultados do concurso de 2017, em que houve 4500 candidatos para 515 contratos, só foi conhecido esta quinta-feira. No concurso de 2018 as candidaturas fecham em fevereiro, por isso é muito difícil estar concluído até setembro/outubro. Há também problemas na aplicação da Norma Transitória, devido à forte resistência das instituições do ensino superior e a uma grande indefinição: doutorados que se candidataram a vários concursos e depois deixam vagas em aberto.
Porque resistem as universidades e politécnicos à Norma Transitória, que permite transformar bolsas em contratos de trabalho?
Esta norma expõe muitas das contradições que existem no ensino superior e na ciência. E não foi bem aceite pelos reitores e presidentes dos politécnicos devido a uma clivagem geracional. Os reitores querem receber o financiamento e aplicarem-no onde bem entenderem e obviamente que a desconfiança do sistema científico nacional é muito grande, mesmo dos docentes de carreira. O primeiro gesto que aconteceu, no Instituto Superior Técnico, foi negativo — a abertura de lugares para catedráticos. Não se podem passar 200 milhões de euros para resolver problemas relacionados com os rácios de carreira e que afetam os docentes que têm percursos com maior maturidade, quando há precariedade a afetar jovens e pessoas com 40 a 50 anos. Os números do desemprego revelam que há 244 doutorados inscritos e 174 estão concentrados na faixa dos 35 aos 45 anos. A resistência tem que ver com dinâmicas de poder dentro das instituições do ensino superior, e um conjunto de pessoas que não quer perder esse poder e que tem alguma desconfiança em relação a estes doutorados, que estiveram dedicados quase exclusivamente à investigação. O objetivo do sindicato é evitar estas clivagens e construir um caminho de convergência.
Mas o ministro argumenta que há mais 4500 contratações em curso, além das 1500 já formalizadas, e que o processo é demorado por causa das exigências da legislação.
O Governo tem o poder executivo, não se pode queixar de uma morosidade prevista na lei. Se foi criado um regime jurídico para que as medidas pudessem ser concretizadas muito rapidamente, não se pode agora escudar na demora dos concursos. O ministro da Ciência não pode passar uma legislatura a falar numa incapacidade do Governo para executar as suas ações. A legislatura mostrou alguma inaptidão do ponto de vista da gestão política destas situações. As medidas relacionadas com o emprego de doutorados estavam inscritas no programa. Claro que há problemas institucionais no ensino superior como a resistência que referi. E estamos num sistema subfinanciado. Por isso, continuamos na cauda da OCDE e da Europa em relação ao financiamento público do ensino superior. Desde o primeiro momento transmitimos ao ministro Manuel Heitor estarmos disponíveis para um pacto no ensino superior e na ciência.
Qual era a ideia do pacto?
Conjugar as questões da precariedade do emprego científico com o financiamento das instituições, envolvendo reitores, presidentes dos politécnicos, organizações sindicais, associações de investigadores, todos os parceiros. No início da legislatura o ensino estava mobilizado para resolver os seus problemas e, por isso, o ministro Manuel Heitor perdeu uma enorme oportunidade.
Falar em pleno emprego entre os doutorados, como fez o ministro no “Público”, é uma mentira?
É uma mentira, o ministro interpretou mal certos sinais que estão a acontecer no sistema. É verdade que nos concursos de projetos de investigação tem havido dificuldades na contratação de doutorados. Mas na entrevista o ministro refere o concurso individual, o que é um erro enorme, porque tivemos 4500 candidatos para 515 vagas. Apenas em nichos de investigação, sobretudo nas ciências da vida, têm existido problemas na seleção de candidatos, porque o perfil é tão específico, as exigências de percurso científico tão elevadas e o valor remuneratório tão baixo (investigador júnior), que os concorrentes não satisfazem os requisitos. O ministro Manuel Heitor extrapolou esta situação para outros concursos e generalizou-a. E face aos atrasos que existem, toda a indignação da comunidade científica com aquela afirmação é mais do que justa.
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