Sociedade

Públia Hortênsia, a menina que espantou literatos

Públia Hortênsia, a menina que espantou literatos
ilustração joão carlos santos

Aos 17 anos fez provas de doutoramento na universidade de Évora. Foi um espetáculo, diz um seu contemporâneo. É a menina precoce do século XVI. Personagens famosas no seu tempo e praticamente esquecidas, umas menos outras mais, é do que trata esta rubrica de pequenas biografias

Terá sido das primeiras portuguesas, e das primeiras europeias, a doutorar-se, e a primeira mulher a dar uma conferência pública. Todavia, a sua vida é quase um mistério. E nada se saberia se não fosse uma carta do humanista André de Resende, a falar sobre “uma menina de 17 anos, instruída além do vulgar nos estudos aristotélicos”. Agora, tem um busto na terra natal, diversas ruas com o seu nome e até um coro com a sua graça.

Hortênsia de Castro, filha de Tomás de Castro e de Branca Alves, nasceu em Vila Viçosa no ano de 1548, quando despontava o Renascimento, numa família bem relacionada e sem dificuldades económicas. Foi uma daquelas “mulheres latinas”, como se chamava na altura às damas consideradas cultas e difusoras do saber, e pela sua eloquência ter-lhe-ão acrescentado o nome Públia.

Públia Hortênsia, como acabou por ficar conhecida a fidalga filósofa, aprendeu o principal com o pai e o irmão Jerónimo de Castro, sobretudo, mas outros mestres lhe emprestaram o saber. Se tudo se processou conforme os usos e costumes da época, antes dos seis anos já saberia ler e escrever, em português e latim. E rapidamente deu o salto para estudos superiores.

Conta-se que se disfarçava de homem para frequentar as aulas de Humanidades, Filosofia e Teologia às quais o seu irmão assistia na Universidade de Coimbra. Na verdade, nunca terá ido para a cidade dos estudantes, reservada aos homens até ao final do século XIX. Além dos ensinamentos tidos em casa, o mais provável é que tenha podido assistir a algumas lições na então recém-inaugurada universidade de Évora, cidade onde a família tinha influência.

André de Resende, que além de humanista foi pioneiro da arqueologia em Portugal, assistiu às provas de doutoramento da jovem calipolense, em 1565, e considerou o exame um espetáculo único. Na sua opinião, ela desfez “com suma perícia e graça os arguciosos argumentos que lhe opunham muitos homens doutos” que se “esforçaram por combater as teses d’ela”.

Pouco tempo depois, Públia foi viver para o paço real de Évora, para os aposentos da duquesa Isabel de Bragança, uma mulher culta que gostava de se rodear de eruditos e eruditas, pertencente ao círculo de damas literatas que incluía Leonor de Noronha, Joana Vaz, Paula Vicente (filha do dramaturgo Gil Vicente), a infanta Maria e a sua prima Maria, futura duquesa de Parma, as irmãs Sigea...

No ano de 1571, quando Alexandrino visitou Portugal, Públia, com 23 anos, terá apanhado uma desilusão. Havia preparado um discurso para ler ao legado do Papa, na sua breve estada em Vila Viçosa, mas, porque deu a pressa ao prelado, não chegou a lê-lo publicamente.

Uma década depois, voltaria a ter um azar semelhante quando Felipe II de Espanha e I de Portugal se instalou no seu novo reino, onde viverá cerca de dois anos. Estava igualmente previsto que ela desse uma palestra à passagem do monarca por Évora, mas também não terá chegado a proferi-la.

Quem pediu a tença para a douta de 33 anos foi o vice-rei, o príncipe-cardeal Alberto de Áustria. Filipe II, interessado em agradar aos portugueses, assinou a “carta de padrão” oito meses depois, com efeitos retroativos. Portanto, em dezembro de 1581, Públia Hortência tinha direito a receber 135 mil réis, quantia que serviria para “pagar” a sua entrada no convento.

Na carta de atribuição da tença, o rei justifica ser “em respeito às suas letras e suficiências” e para a erudita “se melhor poder sustentar e recolher”. Públia passava assim a receber o mesmo vencimento mensal que o poeta Luís de Camões recebera a partir de 1572, quando foram impressos os primeiros 150 exemplares de ”Os Lusíadas” e porque o jovem monarca Sebastião lhe reconhecia “engenho e habilidade” e a “suficiência que mostrou no livro que fez das coisas da Índia”.

Coincidência ou não, escolheu o ano em que o rei de Castela juntou aos seus domínios ao reino de Portugal para se recolher no Convento de Évora. Tinha 33 anos. Raras foram as mulheres intelectuais do seu tempo que optaram pela vida religiosa, mas ela habitava uma cidade da província, onde dominavam os jesuítas; o seu irmão tornou-se freire dominicano, o outro parente que muito a ajudou nos estudos era arcebispo.

Morrerá 14 anos depois, no dia 10 de outubro de 1595, depois de ter construído uma obra que o descuido e o tempo foram apagando. Escreveu salmos, cartas e poesias, em latim e português, que estiveram em posse do irmão Jerónimo pelo menos até 1614. Tudo se esfumou. E mesmo a tradução dos oito salmos solicitada por Isabel de Bragança, guardada em 1640 na biblioteca régia, desapareceu, restando apenas a pouco inspirada dedicatória à duquesa que foi sua mecenas.

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