Sociedade

Maria Coroada, líder da seita da Granja do Tedo

Maria Coroada, líder da seita da Granja do Tedo
ilustração joão carlos santos

Curandeira desde cedo, tornou-se aos 24 anos grã-sacerdotisa da religião que inventou. Reinou sete anos e ficou na História, apesar de se ter limitado a uma pequena freguesia do conselho de Tabuaço. Personagens famosas no seu tempo e praticamente esquecidas, umas menos outras mais, é do que trata esta rubrica de pequenas biografias

Ela descasou e casou, a si própria, a seus pais e a outros. Mudou o sexo a irmãs e filhas, batizou e rebatizou. Dizia-se o novo Messias, a terceira Eva, a Maria incumbida por Cristo de completar a obra de Deus na Terra. E celebrava cerimónias sentada num trono, vestida de branco, levando mais de uma centena de pessoas a acreditar que vinha aí o fim do mundo, mas antes apareceria o rei D. Sebastião.

Maria das Neves Custódio nasceu em 1816, na Granja do Tedo, filha do mestre-régio José Custódio, que nomeou Pai Eterno da seita, e de Cristina Gaspar, por si feita segunda Eva. Como Maria Coroada, reinou durante sete anos, transmitindo aos devotos a experiência da ida ao céu, à morada das almas e do Criador, de ver o fogo do purgatório ateado em sete camas e um cardeal de mitra na cabeça a lançar fogo pelas veias.

Nessa visita, passou pelas sete fontes dos arrependidos, donde jorravam as lágrimas choradas por S. Pedro, e viu as sete fontes cristalinas que deitavam lágrimas de Maria Madalena. A viagem era a espinha dorsal da seita que cativou, sobretudo, muitos dos cerca de 400 habitantes da sua freguesia que, em 1855, passou a integrar o concelho de Tabuaço.

A ideia terá vindo com um dos seus dez irmãos, o mais velho, militar regressado de Lisboa em 1840, ao fim de seis anos ao serviço do Regimento de Lanceiros. Não foi difícil, a Basílio, inspirar a família com o livro dos Mórmons e os folhetos sobre a maçonaria que trouxera na bagagem. Maria já desenvolvia a "arte" do curandeirismo, a partir dessa altura, sentou-se no trono, na Arca da Aliança, como batizara a casa dos pais, e começou a discursar sobre a sua viagem.

Foi quando estava no céu da caridade, vendo os santos com grinaldas de flores em nichos e altares, que Cristo desceu do trono e a olhou. Ela subiu o primeiro degrau do trono de Deus para fazer uma vénia e recuar, sem nunca lhe virar as costas, quando, por trás de uma cortina, surgiu a Virgem para lhe lembrar o privilégio de ali estar sem ter morrido. De seguida, Jesus colocou-lhe uma coroa brilhante na cabeça, dizendo-lhe que a casa dela passaria a ser a luz do novo-mundo.

A sua missão era prosseguir a obra do filho de Deus, como terceira Eva, com plenos poderes para pregar e batizar, casar e descasar. E, assim, aos 24 anos, se tornou grã-sacerdotisa, prometendo a salvação a todos aqueles que se refugiassem na Arca da Aliança, o único lugar que não desapareceria no próximo dilúvio.

Os crentes ouviam-na de costas voltadas para o trono e seminus, diz-se. Também se conta que a imoralidade regia as reuniões, mas não existem provas disso. Falou-se que, no meio da sala destinada à celebração máxima (havia uma outra sala para os batismos, onde fora pintado o rio Jordão), se encontrava um caixão onde se metiam as pessoas menos convencidas de que a salvação estava na Arca da Aliança; falou-se na morte de um homem, pelo exagero da provação…

Maria pregava também a distribuição da riqueza, o fim dos intermediários, dos carniceiros e dos moleiros, que acusava de enganarem no peso, e dos alfaiates que roubavam um dos poucos lugares destinados às mulheres no mercado de trabalho. Nas sentenças que ditava aos pecadores, a fundação de asilos para inválidos e pobres era uma das penas.

Maria pregava o fim da monarquia hereditária, a escolha de um rei entre o povo, um artista, de preferência. E previa o aparecimento do rei Sebastião na Granja do Tedo para acabar com a miséria... E dos padres dizia: "pouco fazem e muito comem."

No ano de 1847 o reinado de Maria Coroada acabou. Os membros da seita ter-se-ão exaltado para cumprir a missão de aliviar Cristo da cruz e roubado a imagem do senhor dos Passos. O administrador do concelho, perante uma queixa do bispo, reuniu um grupo de homens para espancar os prevaricadores. Os “Santos Custódios” foram obrigados a abandonar a Granja do Tedo. Maria casou-se em segundas núpcias com o proprietário Joaquim Rodrigues Barrigueira e também se foi embora.

Um dia regressou a casa, para ser curandeira até morrer, em 1897, aos 81 anos. Viveu discretamente e só uma das suas três filhas fará a família saltar para os jornais. Supõe-se que, a seu conselho ou ordem, algumas delas e, pelo menos, uma irmã, o Bemfiquinho, "mudaram" de sexo, porque os homens tinham a vida facilitada. Por isso, a filha Maria da Trindade foi presa em 1879, fazia-se passar por António Custódio das Neves, empregado de uma loja de vinhos no Porto; libertada, casou-se com o filho do patrão; morrerá antes de sua mãe, no incêndio que destruiu o teatro Baquet no Porto, em 1888.

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