Dadores anónimos continuam protegidos
Fim do anonimato provocará queda nas doações de gâmetas. Acórdão causa interpretações distintas
Fim do anonimato provocará queda nas doações de gâmetas. Acórdão causa interpretações distintas
Jornalista
Editor de Economia
A decisão do Tribunal Constitucional (TC) de deixar cair o anonimato dos dadores de gâmetas (óvulos e espermatozoides) está a deixar em alerta quem trabalha na procriação medicamente assistida (PMA). Porém, quem fez já doações pode ficar descansado, porque a sua identidade continua protegida. É este pelo menos o entendimento do constitucionalista Jorge Reis Novais.
“A decisão do Tribunal não altera nada agora. Há uma confusão nesta matéria. O pedido de inconstitucionalidade foi mal formulado, porque os deputados que o requereram deviam tê-lo feito sobre os números que falam diretamente para identidade. Mas pediram a fiscalização de outros números. E o tribunal só pode pronunciar-se sobre aquilo que lhe é pedido. Então, o que os juízes dizem é que discordam do anonimato e que ao ter de refazer a lei, o legislador terá de acabar com ele”, explica ao Expresso o ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Depois de ler o acórdão, o constitucionalista considera que a mensagem do TC aos deputados é que se a lei, depois de refeita, já não obrigar ao anonimato, será constitucional. “Cabe agora ao legislador acautelar os direitos das pessoas que fizeram as doações quando a lei lhes garantia o anonimato”, frisa.
No pedido de fiscalização sucessiva, o grupo parlamentar do CDS e 16 deputados do PSD pediram aos conselheiros que analisassem os números um e quatro do artigo 15 da lei da PMA. “Se não concordam com o anonimato, deviam ter pedido a fiscalização dos números dois e três, que falam diretamente para a identidade do dador”, sublinha o constitucionalista.
Assim, a decisão de acabar com anonimato não tem, de acordo com a interpretação de Reis Novais, para já efeitos úteis. Mas no acórdão os juízes não frisaram que o anonimato não tinha efeitos retroativos. E como não o fizeram, a maioria dos intervenientes tem estado a interpretar que as pessoas que já fizeram doações perderam o anonimato. Como o juiz-desembargador Eurico Reis, ex-membro do Conselho de Procriação Medicamente Assistida e dos rostos mais visíveis de defesa da lei, que esta quinta-feira se demitiu em consequência da decisão do TC. “É uma decisão violadora do mais elementar dos Direitos Humanos, dá-se a opção das pessoas que já nasceram de PMA saberem quem são os seus dadores, ao mesmo tempo que se violam os direitos desses dadores”, acusa.
Isabel Moreira, constitucionalista e deputada do PS, considera que os direitos dos dadores deixaram de estar protegidos. “Viola princípios como a segurança jurídica dos próprios dadores. São pessoas que fizeram doações com a garantia de que a sua identidade não seria revelada.” Para a deputada socialista, trata-se de uma “visão moralizadora”, já que, em 2009, quando a lei era permitida apenas a casais heterossexuais, o TC considerou-a constitucional. A deputada socialista sublinha, no entanto, que os juízes do TC defendem que os dadores não podem ser considerados pais e mães.
Os dados dos dadores estão guardados no CNPMA e só podem ser acedidos através da junção de dois códigos, guardados, respetivamente, pelo presidente e vice-presidente.
O Expresso sabe que a discussão sobre o anonimato entre os juízes foi intensa e obrigou a uma segunda votação. O fim do anonimato não acaba com a lei da PMA, mas torna muito mais difícil a recolha de gâmetas. “Para que se tenha uma ideia de qual seria o impacto do acórdão se o seu significado fosse efetivamente o fim obrigatório das doações anónimas, 58% das nossas doadoras afirmam que não doariam nessas circunstâncias”, diz Sérgio Soares, diretor clínico da IVI, uma das maiores clínicas de PMA em Portugal. Eurico Reis concorda: “Os dadores não querem ser pais e mães, querem ajudar os outros a terem filhos.
Para a gestação de substituição, os juízes entenderam limitar os efeitos do chumbo, não se aplicando aos dois casos já aprovados pelo CNPMA. Porém, não basta ter o contrato assinado entre gestante e beneficiários (o casal), é preciso que já tenham começado os tratamentos de fertilidade. Tem de haver pelo menos um procedimento terapêutico, como levar uma injeção, caso contrário, e apesar de já existir luz verde do Conselho, a autorização deixa de existir.
A lei, vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer, tem agora de regressar ao Parlamento. Os juízes chumbaram normas fundamentais, mas consideraram que não é inconstitucional. “Só por si não viola a dignidade da gestante nem da criança nascida em consequência de tal procedimento, nem tão-pouco o dever do Estado de proteção da infância”, lê-se no acórdão.
A posição do Bloco de Esquerda, o partido autor do projeto, é de disponibilidade para fazer acolher as sugestões. “A gestação de substituição e o alargamento da PMA são constitucionais e o Bloco está obviamente disponível para voltar a esta lei, para introduzir alterações, para ir ao encontro das necessidades de operacionalização de alguns conceitos e normas. Acreditamos que a AR terá essa mesma disponibilidade para esta tarefa”, afirma Moisés Ferreira, deputado bloquista.
O PS também está aberto à discussão, mas o problema estará no PSD, partido onde estão os votos essenciais para aprovar a lei. Foram os votos de 20 deputados sociais-democratas que viabilizaram a lei, já que o PCP votou contra.
Oficialmente, o partido está aberto a acatar as recomendações do TC. “O PSD congratula-se com a decisão e com o cuidado que teve com processos já abertos, que devem manter a continuidade no sentido de defesa dos interesses das crianças”, disse Fernando Negrão. Mas o líder da bancada foi o primeiro subscritor, entre os 16 deputados do PSD, do pedido de fiscalização enviado ao TC. Fontes do grupo parlamentar acreditam que isso dificultará nova negociação, até porque o tema não deverá ser uma prioridade em época pré-eleitoral. “O primeiro projeto-lei de gestação de substituição [há cinco anos] foi uma iniciativa do PSD, mas o partido desistiu e retirou de cima da mesa porque estávamos próximos das eleições e a maioria do nosso eleitorado não era favorável”, recorda uma deputada do PSD.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: cbreis@expresso.impresa.pt