Sociedade

Viver em Monserrate

Viver em Monserrate
FOTO Parques de Sintra-Monte da Lua Wilson Pereira

Histórias nunca antes contadas de um dos mais icónicos palácios portugueses, adquirido em 1869 pelo milionário e colecionador britânico Francis Cook, e que viria a ter um papel determinante durante a II Guerra Mundial

Margarida de Magalhães Ramalho*

Durante a II Guerra Mundial, o Palácio de Monserrate ainda era residência particular. Acolheu numerosas personalidades em trânsito, deu apoio ao esforço de guerra britânico, foi utilizado pelo Estado Novo para receções e serviu de cenário a manobras de contrainformação. As histórias desses dias estão relatadas numa espécie de memórias datilografadas escritas por Ida Kingsbury, que com o marido Walter e os filhos Richard e Hugh foram os últimos habitantes deste palácio. A forma como esses papéis chegaram à minha mão foi bizarra.

No início de 2015, li uma carta da baronesa holandesa Marie von Harinxma thor Slooten enviada a 1 de agosto de 1941 da Quinta da Bela Vista (que pertencia então a Monserrate) para o ministro luxemburguês no exílio Joseph Bech. Dava conta da existência de uma até aí desconhecida colónia de refugiados holandeses, da II Guerra Mundial, na Praia das Maçãs. Na senda dessa investigação, bati à porta de uma quinta, em Sintra, que supunha pertencer a Richard Kingsbury, filho do último administrador de Monserrate. Talvez ele pudesse explicar a razão pela qual a baronesa escrevia da Quinta da Bela Vista e de, em junho de 1940, ela e o marido terem dado uma receção no próprio palácio.

A sorte sorriu-me, pois não só a quinta era dele como o próprio estava lá, com Heather, a mulher, pacatamente a jardinar. Convidaram-me a entrar e a tomar um inevitável chá. Especificamente sobre o assunto que lá me levara, hélas, pouco ou nada sabiam. No entanto, outras histórias e memórias relativas ao palácio e à vida dos pais em Portugal começaram a surgir. Semanas depois, já de volta ao Reino Unido, Heather enviava-me, por correio, um conjunto de páginas de um álbum fotográfico feito pelos sogros enquanto viveram em Monserrate.

No final desse verão, Richard e Heather regressaram a Sintra. Mais uma vez a sorte bafejou-nos, e mesmo em cima da hora conseguiu-se que a Parques de Sintra-Monte da Lua gravasse o testemunho de Richard na Biblioteca de Monserrate. Quatro meses depois, e sem que nada o fizesse prever, Richard morreria inesperadamente durante uma conferência a que assistia num país africano. Quando Heather regressou a Sintra, já viúva, fui vê-la. À boa maneira britânica, parecia estar igual. Apenas um olhar húmido deixava transparecer o seu desgosto. Para me mostrar, trazia na bagagem quarenta e tal folhas datilografadas escritas pela sogra e que encontrara no sótão por acaso depois da morte do marido. Tratava-se de uma espécie de memórias sobre a sua vinda para Portugal em 1937 e sobre como aqui viveram durante a II Guerra Mundial.

Escritas com um verdadeiro sentido de humor britânico são um manancial inestimável de informação não só sobre a forma como se vivia em Monserrate como para se perceber o papel que o palácio desempenhara nos anos da guerra. Mas antes de passarmos a essas recordações, uma recapitulação breve da cronologia da casa.

Álbum I. A baronesa Marie Harinxma, Analisa Kennan e Ida Kingsbury tomando banho no lago de Monserrate, 1940-1941
foto Coleção Richard Kinsbury
Richard com a rainha Mary por ocasião da sua condecoração com a mais alta distinção dos escuteiros, 1944
foto Coleção Richard Kinsbury
O casal Kingsbury com Mollie de Quincey, 1940-1945
foto Coleção Richard Kinsbury

Na última década de setecentos a Quinta de Monserrate, então propriedade dos Mello e Castro, era alugada, em 1789, ao rico comerciante inglês, Gerard De Visme (1725-1797), que aqui mandou construir um palacete neogótico, no local onde teria existido uma capela dedicada à Virgem Negra de Montsserrat, destruída, em 1755 pelo terramoto. De Visme pouco usufruiria da nova residência subalugando-a, em 1794, ao excêntrico viajante e escritor inglês William Beckford, autor do livro “Vathek”. Em 1799, depois do regresso de Beckford ao seu país, Monserrate ficou ao abandono, transformando-se numa verdadeira ruína romântica. Tocado pela magia do local, Byron descrevê-la-ia, em 1809, como “o primeiro e mais lindo lugar deste reino”.

O mesmo deve ter achado o milionário britânico e colecionador de arte Francis Cook, que a adquire em 1869. A casa é então recuperada pelo arquiteto James Knowles, que aproveita a estrutura anterior, conferindo-lhe as características de palácio das Mil e Uma Noites que ainda hoje apresenta. Francis Cook encarrega o paisagista William Stockdale de conceber um jardim romântico, o que fará com o apoio do botânico William Nevill e do mestre-jardineiro James Burt.

Durante décadas, Sir Francis Cook e os seus descendentes viriam, anualmente a Sintra, na primavera ou no verão, aqui passando, com ou sem convidados, largas temporadas. Os jardins mantinham-se abertos ao público. Até à I Guerra Mundial, esta assiduidade manter-se-ia sobretudo em vida de Herbert Cook (neto do fundador da casa) e de sua mulher Lady Mary, familiarmente conhecidos por Pöe e Möe. Sobre esta última escreveria Ida Kingsbury que a conheceu bem: “Aristocraticamente excêntrica, reinava com grande panache em Doughty [a magnífica mansão dos Cook em Richmond]. Tal como a rainha Victoria, apesar de ser pequena conseguia encher uma sala só com a sua presença. Quando a conheci nos anos 20, gostava de se vestir para a noite com belíssimos brocados e bordados orientais que lhe caíam até aos pés, coisa que já ninguém usava.”

Em Monserrate, Lady Mary reinava de igual forma. Quando Ida chega a Sintra, em 1937, ainda havia quem se lembrasse de a ver “saindo do comboio tocando concertina, de sandálias e com uma adaga no cinto”. Ida concluía, “tal como Tennessee [a sufragista que foi a 2ª mulher de Francis Cook e 1ª visconde de Monserrate] trouxe colorido à paisagem sintrense, ao contrário de Bessie, a mulher de Frederick [pai de Herbert Cook e 2º visconde de Monserrate] que era, exatamente comme il faut.”

Terminada a I Guerra Mundial, o mundo estava exangue e era obrigado a mudar radicalmente de hábitos. A subida brutal de impostos no Reino Unido, ditada pelo pós-guerra e o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, desfeririam alguns golpes nos negócios dos Cooks. Pela primeira vez estes ponderam a venda da quinta de Monserrate. Mas os tempos estavam difíceis para todos e não apareceram compradores. Em 1933, a futura poetisa, Sophia de Mello Breyner Andresen, então com treze anos, visitou os jardins de Monserrate com o avô, Thomas de Mello Breyner. Sobre este passeio com a neta escreveria no seu diário o antigo médico da casa real: “Ao meio dia estávamos em Monserrate. Manhã fresca, jardins incomparáveis, bem tratados. À porta um letreiro em português e em inglês dizendo que está à venda aquela propriedade, fundada por Cook há mais de 90 anos.”

Pelo diário de Mello Breyner ficamos também a saber que, em 1917, os Cooks, sempre generosos com intelectuais e artistas, tinham emprestado, nesse ano, a anexa Quinta da Bela Vista, que também lhes pertencia, ao conhecido pintor e ilustrador inglês, Frank Craig, que aí viria a morrer tuberculoso, no ano seguinte, depois de ter feito furor em Lisboa com uma exposição sua em que vendeu todas as obras.

No verão de 1936, Lady Cook, mulher de Herbert, e o seu filho Francis ainda passam uma temporada em Monserrate. Herbert já muito diminuído com Parkinson não viera. Seria a última vez que alguém desta família habitaria a casa. No ano seguinte, e por entretanto ter adoecido também o administrador da propriedade, William Oram, (filho da proprietária do Hotel Lawrence), este cargo foi oferecido a Walter Kingsbury, um jovem amigo e colega de colégio de Francis Cook, filho de Herbert.

Depois de alguma indecisão, por não perceber muito de administração nem saber falar português, Walter acabaria por aceitar o desafio já que a alternativa era, eventualmente, um posto num qualquer ponto do longínquo império britânico. Em março de 1937, Walter e Ida, com os dois filhos Richard, de 5 anos, e Hugh, de um ano, embarcavam num navio da mala inglesa rumo a Lisboa. A aproximação à cidade, com o casario branco aninhado nas suas colinas banhadas pelo Tejo e envolvido por uma luz extraordinária, foi uma revelação ou, como Ida referiria, “it was love at first sight”.

Rapidamente esse amor estender-se-ia ao país inteiro. “Portugal estava intocado, sem mácula, desde o estuário do Lima, em Viana do Castelo, até às rochas agrestes do Cabo de São Vicente e às douradas praias algarvias. Era um jardim secreto escondido do mundo, fora de moda e conhecido apenas por alguns apreciadores da beleza, um paraíso privado ainda por muitos anos. (...) Para mim era uma Arcádia, uma gentil e especial Arcádia, não pela paisagem ou pela sentimentalidade mas pelo génio do povo. Era impossível não amar um país como este.”

Em Monserrate — que Walter já conhecia por ter lá estado, em 1913, como convidado — foram alegremente recebidos por um sorridente José, um dos guardas do portão que para espanto de Ida, tinha tantos filhos que mal sabia o nome de todos. Impossível não fazer o paralelo com um dos hilariantes quadros da comédia dos Monty Python “O Sentido da Vida”...

Como era costume da época, à porta do palácio eram esperados por todos os empregados da casa para lhes darem as boas-vindas. Ao percorrer a casa, Ida começa por ter uma forte impressão olfativa, por uma parte do mobiliário ser feito de madeiras exóticas. Habituada à sua prática casa no País de Gales, viver em Monserrate era para ela como viver num “hotel de luxo onde tudo era providenciado, instantaneamente e de forma abundante”.

Nos primeiros tempos, o casal Kingsbury, que não falava português, teve alguma dificuldade em se entender com os empregados e com a nova realidade. O abastecimento da casa, por exemplo, era para Ida um motivo de assombro, já que as cinco libras de batatas ou a meia libra de manteiga que a família consumia de três em três dias, no país de Gales, agora, devido ao número elevado de empregados, subiam exponencialmente. “Em Monserrate eram 50 quilos, não libras, de batatas, 3 quilos de manteiga e quilos e quilos de tudo, quase diariamente!”. Além de um batalhão de jardineiros, carpinteiros, eletricistas, guarda-portões etc., dentro de casa tinham uma nannie, uma cozinheira e respetiva ajudante, quatro criadas, uma lavadeira e dois “faz tudo” para consertos e arranjos.

Para os Kingsbury, os dois primeiros anos foram maravilhosos. Viviam, segundo ela, “literalmente numa torre de marfim e rapidamente nos habituámos a isso. Harun Al-Rashid e o califa Vathek [personagens do livro de William Beckford] tornaram-se figuras familiares, espíritos do palácio. Vivíamos uma vida muito inglesa, vestindo-nos para o jantar todas as noites como fazíamos em Small House.”

Álbum II. Chancelaria e Embaixada inglesa durante a guerra (em cima)
FOTO Coleção Richard Kinsbury
Richard remando no lago, 1937-1938 (em baixo à esq.)
FOTO Coleção Richard Kinsbury
O casal Kingsbury com Mollie de Quincey, 1940-1945
FOTO Coleção Richard Kinsbury

Durante esses tempos, também se fizeram algumas festas “e a alegria reinava nesta casa encantadora. Recebíamos durante semanas, ou mesmo meses, como na Inglaterra vitoriana, gentis hóspedes vindos do Reino Unido. Os Cooks, por nossa recomendação, eram muito generosos com aqueles que precisavam de apoio (...) Vivíamos e comportávamo-nos como se a Humanidade não tivesse qualquer problema. (...) Assim passávamos, sem remorsos, os dias em passeios, piqueniques, ceias e banhos em praias douradas e intocadas, embalados no que parecia ser um verão sem fim. A cavalo, íamos ao Guincho, uma praia selvagem virgem da mão humana, onde montávamos uma tenda e ceávamos voltando depois à luz da lua e de milhões de pirilampos para casa onde nos aguardava um sono sem preocupações”.

Em breve o sonho iria acabar quando a 1 de setembro de 1939, a invasão da Polónia, pela Alemanha nazi arrastou o mundo de novo para a guerra. Em resposta, a comunidade britânica rapidamente se organizou para apoiar a pátria. “Em Cintra, Lady Carrick montou um centro de oração, e amigos portugueses ofereceram as suas panelas de alumínio para o fundo Spitfire e nós começámos a tricotar meias e a fazer ligaduras, as quais eram depois enroladas por umas 24 dobadoiras feitas na carpintaria de Monserrate segundo um desenho fornecido pela Embaixada. Estávamos orgulhosamente ao lado do Rei que, como exemplo, tinha também doado o seu par de armas Purdey”.

Como muitos outros britânicos a residir em Portugal, Walter Kingsbury é chamado para trabalhar no Passeport Control Office (PCO), que, além de desempenhar um papel importante na receção de cidadãos britânicos, estava secretamente ligado aos serviços de contraespionagem.

Depois da ocupação simultânea do Luxemburgo, Bélgica e Países Baixos, em maio de 1940 e da capitulação da França, um mês depois, a situação da Grã-Bretanha tornou-se quase insustentável, já que ficara sozinha perante o colosso alemão. As informações de que se preparava um avanço germânico, através da Espanha, para tomar Gibraltar e, eventualmente, invadir Portugal no âmbito da chamada ‘Operação Félix’, levaram a embaixada britânica, em Lisboa a aconselhar os seus cidadãos sem cargos específicos a partirem. Seriam mesmo elaboradas listas com nomes de pessoas que ficavam mas que deveriam ser imediatamente evacuadas em caso de invasão.

“Os meus tios Luís Marques, diretor do jornal ‘Anglo-Portuguese News’ — o porta voz de Churchill em Lisboa como Goebbels lhe chamou — e a sua mulher, Susan Lowndes, que trabalhava também para a embaixada e que eram amigos íntimos dos Kingsbury estavam nessa lista. Walter, provavelmente também estaria. Por esta razão, Ida foi então despachada para o Canadá com a nannie e as crianças”, donde só regressaria em 1942. Segundo ela, Monserrate tornou-se, durante a sua ausência uma espécie de “casa de hóspedes para todos os que o desejassem. O chefe do P.C.O., Ralph Jarvis e a mulher, Boofy, e Fiona Gore, bem como vários jornalistas, incluindo Douglas Brown e Martin Moore do ‘Daily Telegraph’, e famílias foram alguns dos que aproveitaram bem essa hospitalidade. Joseph Luns, atualmente secretário-geral da NATO e ministro holandês dos Negócios Estrangeiros e a mulher eram hóspedes frequentes. Outra que ficou anos e acabou por se tornar uma das nossas amigas mais queridas foi a senhora Scheidius, que fugira com a filha Binnie, o genro e Maritche Harinxma, chefe da missão neerlandesa em Bruxelas aquando da invasão alemã”.

Só depois de ler este relato começam a fazer sentido as referências à festa dada pelos Harinxmas em Monserrate e a carta escrita da Quinta da Bela Vista. A baronesa Marie Harinxma thoe Slooten e o marido chegaram como muitos outros membros de corpos diplomáticos, em fuga, em julho de 1940. Ficaram instalados alguns dias em Monserrate onde deram a tal receção. Sabemos dessa festa pelo diário de H. N. Boom, funcionário diplomático que viera com eles de Bruxelas. “Justamente naquela tarde havia uma receção em casa do chefe de missão, o barão van Harinxma thoe Slooten, que tinha conseguido ficar num lindo palacete mourisco com um parque em Monserrate perto de Sintra. Ali voltámos a encontrar velhos conhecidos.”

Os Harinxmas acabariam por ficar em Portugal, até 1943, mudando-se para a anexa Quinta da Bela Vista. Seria a partir daqui que a baronesa iria gerir a colónia de refugiados holandeses que funcionou durante a guerra na Praia das Maçãs.

Nesse conturbado verão, durante o qual chegaram a Portugal milhares de refugiados e em Lisboa se comemorava o duplo centenário da Independência e da Restauração, os jardins de Monserrate foram ainda utilizados — não se sabe muito bem em que contexto — pelo Governo português que aqui deu uma garden party. A festa, que foi muito concorrida, era oferecida pelo presidente do Conselho ao embaixador especial brasileiro que veio a Lisboa por ocasião da Exposição do Mundo Português.

Quem a organizou e esteve presente foi o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), António Ferro. Durante a garden party atuaram os bailarinos de renome internacional Alexandre Sakharo e a mulher, Clotilde von der Planitz, acompanhados pela orquestra sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco. Depois, aproveitando o palco montado no final do relvado para o ballet, houve festa dançante ao som de uma orquestra de jazz band.

Durante os anos da guerra e seguindo uma tradição que já vinha de trás, os visitantes ilustres, convidados do SPN, eram levados muitas vezes a conhecer Monserrate. Foi o que aconteceu a vários intelectuais, escritores e artistas de cinema como foi o caso de Lilian Harvey que, em 1943 perdeu a nacionalidade alemã por ter representado para as tropas francesas.

Por outro lado, Monserrate, ao que parece, também foi palco de contraespionagem. Aqui terá sido dado um jantar, ao qual compareceria o banqueiro Ricardo Espírito Santo e mulher. Sabendo das afinidades do banqueiro com os alemães — que para o ministro dos Negócios Estrangeiros nazi, Joachim Ribbentrop, era “um homem da nossa confiança” — os serviços secretos britânicos enviaram de Londres um agente cuja missão era sentar-se ao lado da mulher de Espírito Santo com o intuito de lhe passar, como que inocentemente, informações falsas.

Em Monserrate, é também, por esta altura, organizado o Baile Spitfire para angariação de fundos tendo em vista a compra de um desses aviões. O dinheiro recolhido seria entregue na Embaixada juntamente com todos os objetos de alumínio entretanto recolhidos entre particulares. Relata, mais uma vez Ida: “A proposta foi entusiasticamente aceite pelo embaixador Sir Walford Selby mas Walter Lucas, correspondente do ‘Times’, e nessa altura mais um hóspede da casa, foi de opinião que deveria ser escolhido um nome menos partidário e belicoso”.

O jornalista estava coberto de razão. Um baile, mesmo particular, com um objetivo bélico específico, não era compatível com a neutralidade portuguesa. Assim, e nas vésperas do evento, com centenas de bilhetes vendidos, de os jardins estarem “romanticamente iluminados e as comidas e bebidas providenciadas por firmas amigas e embaixadas”, o baile foi proibido pelas autoridades portuguesas depois de um protesto formal da delegação alemã. Foi um verdadeiro balde de água fria para todos os envolvidos, tendo muitos ficado à beira das lágrimas.

Álbum III. 
Richard e Hugh Kingsbury montando 
a burrinha Rita, 1938
foto Coleção Richard Kinsbury
Almoço na Praia da Adraga 

foto Coleção Richard Kinsbury
Peter, Martin Moore, Fiona Gore, Ralph Jarvis Gore, chefe do P.C.O., 
e a mulher, Boofy (posteriormente 
Lord e Lady Arran)
foto Coleção Richard Kinsbury

Mesmo sem baile, a comunidade britânica conseguiu arrecadar fundos suficientes para comprar não um, mas dois Spitfire. Como vimos, em 1942 Ida regressara do Canadá com as crianças e, contra toda a lógica, como mais tarde se aperceberiam, Richard, o filho mais velho, foi enviado, em plena guerra para Downside Scholl, um colégio de rapazes, no Reino Unido. Para ele foi uma grande aventura, embora lamentasse o facto de não ficar em Monserrate onde, como ele dizia “sempre fazia sol e havia muita brincadeira”.

Meses depois, durante uns treinos de cricket um avião despenhou-se sobre o campo onde as crianças de Downside Scholl jogavam matando nove e ferindo vinte e seis. Richard ficou bastante ferido numa perna. Consciente de que havia outros em pior estado teria dito, quando o quiseram socorrer, “os outros rapazes estão muito mais feridos do que eu”. A sua atitude estoica valer-lhe-ia ser condecorado pela rainha Mary.

Informada do acidente, Ida voou para Londres. Ia cheia de medo pelo estado do filho mas também porque meses antes um voo comercial tinha sido molestado pelos alemães. A viagem correria tranquila até ao Golfo da Biscaia. Então “aconteceu uma coisa muito assustadora. Um avião saiu de uma nuvem e rodeou-nos. Quando nos preparávamos para mergulhar, desapareceu. Mal tivemos tempo para ter medo mas depois e até aterrarmos dei por mim a tremer como varas verdes,” referiria Ida nestas suas memórias.

Durante a sua ausência, seria a sua amiga Moedernell Scheidius quem assumiria o lugar de anfitriã em Monserrate, por isso foi ela a receber o ator britânico Leslie Howard, o famoso galã do filme “E Tudo o Vento Levou”. Howard tinha vindo, em missão de propaganda aliada, à Península Ibérica. No final da sua estada visitou também Monserrate. Ao que consta foi um dia muito bem passado com visita pela quinta e um piquenique na praia. Terá sido porventura o último dia feliz na vida de Howard. Dias depois, embora viajasse num voo comercial, o avião em que o ator regressava a Londres com o seu agente era abatido pelos alemães.

Ida, que ainda se encontrava em Inglaterra junto do filho hospitalizado, fica muito perturbada com a notícia. “Howard deveria voar para casa no dia 1 de junho mas devido a prioridades oficiais foi-lhe pedido que esperasse por outro voo. Ele insistiu fortemente que tinha de chegar a Inglaterra nesse dia e o seu estatuto de estrela de cinema acabou por vencer. O voo foi fatal. Três horas depois, na baía da Biscaia, o avião foi abatido com todos os que estavam a bordo. Entre as vítimas estava também o chefe da Shell em Portugal, Michael Shervington, e Chenhalls, o agente de Howard, e o mais trágico de tudo uma mãe com duas crianças pequenas em trânsito de Lisboa para o Canadá. O avião era o Ibis, exatamente o mesmo em que eu tinha voado.” Apesar do muito que se tem dito e escrito sobre este caso ainda hoje se desconhecem as verdadeiras razões deste ataque.

Semanas mais tarde Ida regressava com o filho ainda convalescente a Lisboa. Devido ao recente ataque, os aviões seguiam, agora, por rotas só conhecidas pelos pilotos e viajavam de noite quase sem luzes. “Um pesadelo”, escreveu Ida “só a gentileza dos meus amigos de Lisboa durante o voo me susteve”.

Nas suas notas, relembraria ainda outras personalidades que passaram por Monserrate durante este período. Algumas delas, por serem músicos, participavam à luz das velas nas soirées que organizavam na Sala da Música Aqui tocaram Ralph Jarvis, diretor do P.C.O., o pianista e compositor britânico Malcom Sargent, que viria a ser durante anos o maestro do principal festival de verão londrino, os Concertos Promenade mais conhecidos por Proms, e o famoso pianista russo, George Chavchavadze “que, à luz das velas, enchia a sala com ondulantes trechos de Chopin”. Mas não foram só músicos que animaram esses serões culturais. Também o fez, por exemplo o escritor e jornalista britânico Malcolm Muggeridge — e agente do MI6 durante a guerra — um homem “sempre apaixonado pelo espírito humano”.

Já quase no fim da guerra, a passagem de Lady Furness por Monserrate gerou alguma confusão. Esta teria tido um caso amoroso com o rei Eduardo VIII, tendo sido também ela quem apresentou ao monarca a sua amiga Wally Simpson por quem o rei viria a abdicar. Convencidos de que seria uma hóspede habituada ao que de mais exótico havia, os Kingsbury tentaram, apesar das dificuldades de abastecimento, ter cigarros e bebidas à altura. No final, quando Thelma Furness chegou, ficaram aliviados ao constatar que “era uma mulher adorável e simples como a esposa de um nobre rural. Modestamente recusou todas as bebidas extraordinárias que tínhamos tão cuidadosamente escolhido para ela e os cigarros difíceis de obter e conversou connosco apenas com um simples copo de água na mão”.

Com a rendição alemã, a 8 de maio de 1945, a paz regressava à Europa. Era mais um ciclo que se encerrava. “Depois da vitória era óbvio que as coisas não podiam continuar como até aí. Poë e Möe tinham, entretanto morrido, a austeridade era a palavra de ordem e o herdeiro deles, Francis, não estava interessado em manter uma propriedade tão dispendiosa no estrangeiro”. Para isso também poderá ter contribuído o facto de este Francis Cook ser “o baronete mais casado de Inglaterra”, como referiu Richard Kingsbury na sua entrevista. Casado sete vezes, tinha pelo menos de pagar seis pensões de alimentos…

A solução era, por isso, fechar a casa e vendê-la. Em setembro de 1946, o empresário Saul Saraga aceitava comprar a propriedade. Para Ida foi um desgosto. “Não conseguia imaginar a venda do recheio da casa ou ver partir o Santo António e tantos outros objetos familiares e amados. (…) Ver uma casa ser despojada das suas coisas é horrível, e a voz do leiloeiro, jocosa ou motivadora, é um dos sons mais detestáveis do mundo, é o som da ganância ou da calamidade”. Os Kingsbury acabariam por comprar para eles a Quinta da Boa Vista onde ficariam a viver até aos anos de 1970. Por vezes regressavam a Monserrate, agora fechada, para relembrar outros tempos.

O palácio nunca mais foi habitado enquanto residência. Comprado, em 1949, já sem recheio pelo Estado português, acabou por ficar ao abandono durante décadas. Na década de 1990, Emma Gilbert, por sugestão do embaixador britânico, lançou a associação cívica “Os Amigos de Monserrate”, cujos esforços conseguiram evitar a degradação total dos jardins. Em 2004, já sob a tutela do IPPAR, terminava a recuperação das coberturas. Em 2007, a Parques de Sintra-Monte da Lua, sob a direção de António Lamas, iniciava a recuperação integral dos jardins e do interior do palácio.

Terminada essa fase, Manuel Baptista, que lhe sucedeu no cargo, apostou na recuperação das obras de arte que pertenceram a Monserrate e que foram dispersas pelo leilão de 1946. É neste contexto que foi recentemente adquirido pelas Parques de Sintra um extraordinário relevo, do escultor florentino Gregorio di Lorenzo (1436-1504), “Virgem com o Menino”, que regressa agora a casa. A peça, agora exposta pela primeira vez, é a mais marcante da exposição “Monserrate Revisitado” que abriu ao público no passado dia 1 de dezembro.

Com comissariado de Maria João Neto e design de José Dias, a exposição apresenta, no primeiro piso, uma resenha da história do palácio, fotografias e filmes de época, bem como parte da entrevista feita em 2015 a Richard Kinsbury. No piso térreo, outras peças, vindas de museus e coleções privadas, ajudam a compreender o que seriam os interiores deste palácio enquanto foi habitado. Pena é que nem Ida nem o seu filho Richard pudessem ter tido o gosto de assistir.

*Investigadora do Instituto de História Contemporânea

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