Sociedade

Há muito que a Internet não é neutra

Há muito que a Internet não é neutra
GETTY

Os Estados Unidos aprovaram um plano que vai permitir aos operadores de telecomunicações interferir no conteúdo veiculado na Internet. Ou seja, essas empresas vão ter a possibilidade de favorecer tráfego. Uma analogia fácil de entender. A Internet nos EUA vai assemelhar-se a uma autoestrada na qual o concessionário pode definir que apenas aos carros de determinado fabricante podem andar a 120 km/h. Os restantes não podem passar dos 60 km/h. Aliás, no mesmo cenário, o incumbente até pode optar que existam marcas de carros que estejam proibidas de circular – ou terão de o fazer de forma tão lenta que vai equivaler a que os automóveis se encontrem parados.

O fim da Neutralidade na Internet – uma Internet neutra é aquela na qual o tráfego circula livremente sem que os operadores de telecomunicações favoreçam alguns emissores em detrimento de outros – nos Estados Unidos terá repercussões em toda a Rede. O momento no qual se legitima que os Internet Service Providers (ISP, fornecedores de acesso à Internet) filtrem o tráfego é uma machadada no empreendedorismo que sempre floresceu em total liberdade no ciberespaço. É fácil de perceber: se um operador dá mais largura de banda a um serviço (mais velocidade na transferência de dados nos dois sentidos) em detrimento de outro, estará a condenar ao fracasso o segundo e todos os potenciais concorrentes.

Exemplo: se um ISP dá muita largura de banda ao YouTube e pouca ao Vimeo, os utilizadores vão optar pelo primeiro serviço de vídeo. Óbvio. Em última análise, a experiência de utilização é vital na Web. Se o serviço se arrasta, se os vídeos não carregam, se param a meio… nós não voltamos lá. Certo?

A caixa de Pandora que a Comissão Federal de Comunicações dos EUA está prestes a abrir vai dar aos ISP o poder de favorecer o tráfego que considerem prioritário. E por “prioritário” deve entender-se aquele que as empresas que detêm os serviços estão disponíveis a pagar. A Facebook quer os seus vídeos a serem mostrados com fluidez? Pague! A Google quer o YouTube a carregar os clipes de vídeo sem problemas? Pague! Os órgãos de comunicação querem os seus sites a mostrar as notícias sem quebras nas páginas e com a publicidade a aparecer rapidamente? Paguem! A Netflix quer garantir que os seus filmes e séries são servidos na melhor qualidade? Pague!

É isto: uma permanente negociação que passa a ser controlada pela Comissão Federal de Trocas dos Estados Unidos – em vez da Comissão Federal de Comunicações –, que vai estar atenta aos filtros que os operadores vão colocar no tráfego existente na Internet.

Mas será que isto é totalmente novidade? Não, não é. Basta recuar a 2014 para ver, como conta o WALL STREET JOURNAL, o acordo que a Netflix teve de assinar com a Verizon (operador de telecomunicações americano) para que o serviço de vídeo pudesse funcionar com melhor qualidade – ou seja, que a expectativa dos subscritores da Netflix não fosse gorada. O acordo com a Verizon não era ímpar. Meses antes, a Netflix teve de fazer o mesmo com outro operador, a ComCast.

Sim, há empresas a pagar aos operadores para que sejam respeitados os “serviços mínimos”. E por cá? Bem, ao abrigo de alguns “buracos” legais, os operadores de telecomunicações há muito oferecem tarifários muito pouco neutros. É fácil de entender: se alguém anuncia tráfego ilimitado para o Netflix deixando de fora o Amazon Video… está a favorecer, claramente, uma empresa em relação à outra. Fá-lo, acredito, sem contrapartidas das organizações – não estou a ver a Netflix a pagar aos operadores nacionais que praticam estes pacotes seletivos. Como é óbvio, um tarifário que privilegia as Redes Sociais mais populares vai lesar as restantes… e assim sucessivamente.

Esta é a ponta do icebergue. Por baixo da visível linha de água do ciberespaço, escondem-se milhões de sites. Uns mais anónimos que outros. É também aí que vivem as startups que ainda não têm dimensão para ver a luz do dia. Nesse lado oculto germinam ideias, inovação. Com os operadores a controlarem o tráfego, esse lado criativo tem tudo para se perder.

Não acha grave? Espere até ao dia em que queira abrir um site de que lhe falaram, mas não consegue; em que carregue no botão play de um vídeo e espere, e desespere, para que ele comece. Fotos? Se tiver idade para isso, lembre-se de como era ver uma fotografia aparecer por partes no ecrã nos idos anos 90. Não estou a exagerar. A Internet do futuro com os operadores a comandar não é bonita de se ver.

Mas deixe-me terminar trazendo mais umas achas para esta fogueira que é a “Internet controlada” e que crepita com cada vez maior intensidade. O título que dei a este artigo baseia-se não só no que aconteceu nos Estados Unidos agora (e que já acontece de determinada forma em Portugal), mas também na forma como a Google decide o que nos mostra nos resultados das buscas; como a Facebook seleciona o que aparece no nosso mural ou no Instagram; ou, por exemplo, como o algoritmo do Twitter nos “relembra” de coisas que serão, por certo, do nosso interesse.

Sim, há muito que a Internet não é um espaço dado à neutralidade. Se as ações judiciais interpostas, entretanto nos EUA, não conseguirem bloquear a intenção de Trump em colocar os ISP no controlo do tráfego… então, a situação vai agudizar-se. Por isso, há quem diga que é preciso criar uma nova Internet. Uma que seja cega ao conteúdo e ao poder das empresas. Uma quimera, portanto.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: poliveira@impresa.pt

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