Sociedade

Cavalheirismo dos pés à cabeça

Há sapatos que querem ser o espelho de um estilo de vida e começam a ser uma referência no mercado mundial

fotografias fernando branquinho

No país dos sapatos, a sua produção tem maior expressão a Norte. E entre as muitas fábricas que fazem sapatos para serem vendidos para o estrangeiro, há uma marca portuguesa em São João da Madeira cujas vendas engrandecem lá fora, não tendo ainda expressão entre os portugueses.

As mãos de Rafic Daud não têm as marcas das tintas e do calor da fábrica, como as dos seus sapateiros em São João da Madeira. Mas pelas mãos de ambos já passaram muitos pares com o exclusivo forro amarelo. E se o tema é Undandy, as vozes de um e de outros ganham a mesma tonalidade, de uma quase devoção à marca portuguesa de calçado. A Undandy nasceu online num domínio português e já vende para mais de 100 países. Sapatos exclusivamente masculinos, feitos à mão que em duas semanas desde a encomenda está em casa do cliente.

A empresa nascida em 2015, teve em 2016 uma faturação de 300 mil euros, que um ano depois se torna o objetivo mensal. Nestes números Portugal representa “1% de orgulhosas vendas”. O cofundador não acredita em fronteiras bem definidas entre o mundo do trabalho e a vida pessoal, diz que as duas se fundem e que é impossível viver uma sem outra. Na pele tem a história das empresas que formou, das que singraram, as que falharam e as que vendeu.

Agora antecipa os passos como um jogo de xadrez, prática que ensina aos funcionários de Lisboa para que todos tenham um pensamento abstrato mais estruturado e estratégico. É que na Undandy, embora haja espaço para os estudos e para as folhas de Excel, o que interessa são as pessoas, pois estão habituadas a fazer tudo e sempre prontas para qualquer função de forma a que o motor da startup não entre ao ralenti.

A Undandy estará presente nos EUA, em África e na Ásia
fotografias fernando branquinho

No mercado do luxo a personalização é a regra e cada vez mais os clientes pagam a exclusividade da marca. Rafic conta os pedidos de sapatos com as cores das bandeiras dos países, as assinaturas ou as datas dos casamentos. Como em tantos outros mercados de luxo é a diferenciação que cativa os clientes, e ali é possível fazê-lo de 170 mil milhões formas diferentes.

Pelo menos uma vez por semana, às sete da manhã Rafic, cofundador e dono da marca, está a caminho de São João da Madeira. Durante a viagem a cabeça nunca para e entre as explicações da fundação da Undandy vão-se ouvindo as indicações do GPS. O discurso pejado de frases e citações que sabe de cor e que usa como uma espécie de mantra para o “sapateiro moderno”. Pelo meio há pausas, telefonemas para o escritório de Lisboa depois de idas ao Facebook da empresa: o cérebro da operação. É aqui vai respondendo aos muitos clientes apenas com uma regra, a sinceridade e a proximidade são as verdadeiras almas do negócio. Um faz-tudo moderno.

Na fábrica o processo de fazer um sapato começa em Antónia — no meio dos tecidos, vai mostrando e explicando os vários materiais que compõem um sapato e as várias possibilidades e confessa às vezes não perceber como os “clientes conseguem. É um clássico”— e Paulo — que se dedica a uma fase mais final na produção do sapato e aponta a variedade de escolha como sendo “a grande mais valia, embora esteja habituado àquele trabalho desde sempre, desabafa: “o cliente põe-nos à prova.”

A personalização faz com que a mesa de David, responsável pelo corte dos moldes, vá ficando cheia de notas de encomenda. Aponta para uma quase resma de papel e indica que o monte diz apenas respeito a encomendas da Undandy. É que naquela fábrica ainda se trabalham outras marcas, mas apenas até ao final do ano. O crescimento fez com que Rafic Daud fizesse um investimento de um milhão de euros, o que equivale a 25 postos de trabalho, para que em 2018 os Undandy sejam feitos numa fábrica própria de onde espera que saiam 200 pares por dia.

Mantém-se a mesma parceria com a fábrica atual apenas com mais dedicação e mais foco na Undandy, porque como lembra o sapateiro Manuel entre moldes de sapatos quase acabados “a logística é muito complicada. Há uma ficha para cada par”. “O bilhete de identidade do sapato”, acrescenta Zé Mário. E mesmo num dia de verão entre máquinas que deitam calor e frio, cheiro a cola e cansaço acumulado de vidas dedicadas aos sapatos conseguem parar. Olhar de outra perspetiva e assinalar a arte, “isto é uma maravilha” conclui Paulo.

Rafic depois de reuniões de estratégia passeia na fábrica, espreita o processo e vai perguntando pelo futebol. Sabe as equipas de cada um, e para de posto em posto com a sabedoria e as perguntas de quem é repetente na função. Vive assim. Com os trabalhadores às costas e com elogios para lhes dedicar sempre na ponta da língua. Divide as atenções entre os operários fabris e os do escritório de Lisboa com quem partilha os méritos do caminho a passo apressado da Undandy.

O movimento dandy ocupou o mercado da moda masculina com pujança nos últimos anos. E se agora tudo se resume a vaidade, barbas e fatos bem cintados, Rafic volta às fundações, ao tempo em que se vivia o “culto do eu” e uma expressão da constante vontade se ser “a melhor versão de si próprio”. E foi esse o pontapé de partida da marca. Em inglês “conspicuously inconspicuous” o que Rafic traduz como “a exuberante arte de ser discreto”.

fotografias fernando branquinho

E é este espírito dandy de elegância e sofisticação que levou ao lançamento do livro “The Ways of Undandy”, uma espécie de manifesto da marca que pretende mostrar que o cavalheirismo não morreu. Rafic diz que são as regras para o estilo de vida de um cavalheiro moderno. Na lista há 52 lições de vida que são tiradas humorísticas, adaptações de frases da nossa história ou simples mantras que devem ser seguidos. Se Jane Austen tivesse escrito “Orgulho e Preconceito” hoje, este seria o livro da mesinha de cabeceira do senhor Darcy. Entre “tender is better than Tinder” (em tradução livre: a ternura é melhor que o Tinder). E “love letters will never go out of style” (em tradução livre: as cartas de amor nunca vão estar fora de moda) com direito a papel e envelope. Há um pouco de tudo para a vida, o amor e os sapatos, porque todas estas regras têm instruções próprias.

Em Londres para a apresentação do livro viajarem de Portugal os sapateiros Paulo e Zé Manuel, responsáveis por muitos Undandy ali fotografados por Yves Callewaert. Chegaram a uma Inglaterra chuvosa e mostraram a arte portuguesa a muitos estrangeiros. Durante o cocktail colaram solas e pintaram sapatos, sem máquinas, apenas com as mãos e recurso a algumas ferramentas. E se não fosse a barreira linguística, certamente muitos estrangeiros procurariam saber mais acerca desta arte. À falta de tradutores limitavam-se a trocar sorrisos e sinais universais de apreciação. Londres foi a cidade escolhida para este evento, porque Rafic diz ser uma cidade cosmopolita que espelha o que é ser Undandy e Inglaterra era o mercado para onde se escoava mais. O diretor-geral da empresa não se mostrou preocupado com o ‘Brexit’ por “não estar a fazer política” e por ter, “no caso de alguma coisa correr mal”, “uma estrutura mundial montada”. Mas ao mesmo tempo poisou os Undandy em terra e alertou para o facto de ser impossível não serem afetados pela saída da União Europeia, nem que seja pela desvalorização da libra e pelas dificuldades à exportação.

O espírito que a marca Undandy vende e que a suporta é o mesmo que mantém a vida de Rafic a rolar. Se a empresa partiu de uma necessidade de Rafic Daud e do cofundador (que entretanto saiu do projeto) Gonçalo Henriques, agora continua a ser o resultado das ideias que Rafic vai montando e o espelho da forma como leva a vida. A hipnose e o ténis ajudam a manter tudo regrado num aparente descontrolo do qual apenas ele tem o comando.

Agora,o maior mercado já não é Inglaterra, são os Estados Unidos. A Undandy já entrou em mercados como o africano e o asiático, mas para Artur, “o espírito da fábrica” continua a ser não sair de São João da Madeira e ficar a trabalhar na fábrica. Mesmo quando Rafic o convida para uma ida a Nova Iorque para conhecer os clientes brinca e escapa-se a um resposta que o comprometa.

O Expresso viajou a convite da Undandy

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