Sociedade

Quem tem medo da Inteligência Artificial?

Quem tem medo da Inteligência Artificial?
d.r.

Não me esqueço de ser miúdo e de os meus pais me terem proibido de ver o filme “The Day After” que ia passar na RTP. Não vi nesse dia, é certo, mas acabei por vê-lo numa das tardes da semana seguinte em casa de um amigo – os pais dele tinham gravado o filme. Combinámos e vimo-lo em grupo. Afinal, tínhamos todos sido proibidos de ver o filme que mostrava aquilo que poderia acontecer ao mundo caso os americanos e os soviéticos não contivessem a sua corrida ao nuclear. O filme era horrível e acho que todos tivemos (a mim aconteceu-me, pelo menos) pesadelos povoados com as deformações físicas causadas pela radiação. É verdade que já tínhamos ouvido falar na “Guerra Fria”, mas nunca nos pareceu tão palpável como naquela tarde em que vimos como seria o mundo tomado por um inverno nuclear.

Lembrei-me do “The Day After” a semana passada durante a Web Summit. Tirando o jantar no Panteão e a paciência para aturar os que ainda não perceberam a importância de ter um evento como aqueles em Lisboa; pode dizer-se que houve um fio condutor a todo o acontecimento… desde as Talks de abertura até muitas das que foram proferidas nos quatro pavilhões da FIL a rebentar pelas costuras. Centenas de oradores focaram as suas intervenções na evolução da Inteligência Artificial (IA). O mais destacado foi, claro, Stephen Hawking. O físico integra um grupo (onde também estão Elon Musk e Bill Gates) que se mostra muito preocupado com a forma como uma evolução desregulada da IA pode, basicamente, condenar a humanidade à extinção.

Qualquer coisa como as máquinas perceberem que a maior ameaça ao planeta somos nós, os humanos. Sim, pelo que ouvi na Web Summit a IA pode ser o “inverno nuclear” do século XXI. E para continuar as referências cinematográficas basta lembrar o velhinho “Jogos de Guerra” - no qual o computador não percebe o conceito de empatar no Jogo do Galo e começa uma guerra nuclear – ou o “Exterminador implacável” onde as máquinas decidem acabar connosco para poderem reinar sozinhas sobre o mundo.

Não coloco em causa, nem poderia, as preocupações de um homem que consegue teorizar sobre buracos negros e viagens no tempo. No entanto, há um longo (muito longo) caminho a percorrer até que o software que comanda as máquinas seja tão avançado que elas consigam ter consciência. Que sintam, que se emocionem, que imaginem… que criem.

No entanto, quando o conseguirem fazer, também vão perceber a sua limitação: o facto de serem máquinas (ou qualquer coisa de forma humanoide, mas que não é humana). Isso é muito bem explorado por Philip K. Dick em “Do Androids Dream Of Eletric Sheeps” – que foi adaptado ao cinema sob o nome “Blade Runner”. Ambos, o livro e o filme, lidam com o advento da IA e com o conflito interior de um ser sintético quando se apercebe que não é humano. É, sim, uma forma evoluída de Inteligência Artificial que habita um corpo feito em fábrica ao qual foram implantadas memórias e experiências. A sua angústia é a de saber, afinal, quanto tempo lhe resta para “viver”?

E aqui reside o busílis da questão: quando as máquinas ganharem consciência, vão conseguir lidar com o facto de serem máquinas? Criações nossas, controladas por nós e limitadas pelos nossos objetivos. Entramos, claramente, no campo da filosofia.

E a Inteligência Artificial não corre para o futuro… está num desgovernado sprint! Isso mesmo foi provado pelo sistema de IA criado pela Google que conseguiu, o ano passado (e repetiu a proeza este ano), vencer o campeão mundial de Go – um jogo chinês milenar muito mais complexo do que o Xadrez por ter milhões de combinações possíveis – quando todos os especialistas diziam que ainda teríamos de esperar uma década até que uma máquina o conseguisse fazer. E este é um exemplo muito bom para ilustrar a forma como a IA será durante muitos anos: linhas de código materializadas em funções mecânicas, frias. Sim, um “cérebro” excelente a calcular e com uma capacidade infinita de encontrar padrões e antecipar cenários. O que vai ajudar-nos a combater o cancro, a ter carros autónomos, cidades inteligentes e fábricas mais produtivas.

E, antes de tornar-se numa qualquer némesis com fome de mundos, acredito que a Inteligência Artificial vai assumir-se como uma companhia virtual. Uma voz que vai acompanhar-nos a todo o momento (essencialmente aos que falam inglês). Vai aprender connosco e, em última análise, saberá mais sobre nós – do que nós próprios. É isso que já está a acontecer com o exército de bots e de assistentes virtuais que estão a chegar a apps e a dispositivos. As interações ainda não são muito naturais ou fluidas (aliás, basta ver o momento “Marretas” da Web Summit com o diálogo entre os robôs Sophia e Professor Einstein) e é nessa humanização que os especialistas vão trabalhar nos próximos anos.

Por isso, o único medo que tenho, a médio prazo, é que a IA se torne o melhor amigo de muita gente – como no filme “Her”. O que vai agudizar os problemas de socialização já criados hoje pelas Redes Sociais. Aliás, esse isolacionismo dos felizes será uma questão ainda mais fraturante quando os robôs sexuais (sim, também se falou muito sobre sexo robótico na Web Summit) se tornarem comuns – já há bordeis de bonecas robóticas a abrir na Europa. O que será de nós, humanidade, quando só quisermos falar com algoritmos e só privarmos com marionetas controladas pela IA? Este cenário, dantesco, é muito mais realista do que um outro no qual o computador dá ordem para que comece um inverno nuclear.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: poliveira@impresa.pt

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