O nome do álbum é um tributo ao bispo Desmond Tutu e valeu a Miles Davis um Grammy. Estávamos em 1986 e “Tutu” chegava em vinil a lojas de todo o mundo. O disco que deveria ter sido uma colaboração entre o trompetista e Prince (era conhecida a admiração mútua entre os dois génios) tem um solo fantástico na música que dá nome ao álbum. “Tutu” (que pode ser ouvido no Spotify) está imortalizada na fita usada no estúdio de gravação.
Esse suporte analógico consegue reter toda a informação no seu estado mais puro – com todo o pormenor da informação. No entanto, a fita é finita, mesmo se salvaguardas as condições de armazenamento ideais: baixa temperatura, reduzida humidade e, entre outras, a escuridão total. Por isso, depois de algumas dezenas de anos guardadas com todo o cuidado, essas informações têm de ser copiadas para novas fitas. Não há outra forma de garantir a viabilidade dos dados originais mantendo-os íntegros e o mais possível fieis à gravação primordial. Ou não havia.
Armazenamento infinito
Em maio deste ano, uma gravação de Miles Davis a tocar “Tutu” no Festival de Montreaux foi gravada em ADN. Sim, o composto químico que está em todos os seres vivos do planeta e que nos dá, a cada um, uma identidade própria que é parte herdada e parte construída. Se a startup Twist Bioscience estiver correta no potencial do ADN como forma de armazenamento infinito sem degradação da informação, um qualquer desastre pode varrer o Homem da face do planeta amanhã que, daqui a milhares de anos, alguém (seja quem for ou que for) poderá ouvir o trompete de Miles Davis a ecoar na sala de espetáculos… precisamente como o fez pela primeira vez em 1986.
Para converter uma gravação digital (composta por 0s e 1s) é necessário convertê-la para os quatro nucleótidos que compõem o ADN: A, C, G, T. Uma sintetização feita em silício pela empresa norte-americana. Esta abordagem ao armazenamento da informação já tinha sido proposta pelos cientistas da década de 80 do século passado. No entanto, foi preciso esperar mais de 30 anos até que os processos que a possibilitam se tornassem mais baratos e, logo, acessíveis aos tecnólogos.
E há várias vantagens em converter a informação em ADN. Este tipo de armazenamento é permanente (recorde-se que os cientistas conseguiram recuperar ADN de restos fossilizados de mamutes siberianos com milhares de anos); a técnica permite guardar grandes volumes de informação em pouco espaço; a tecnologia para descodificar o ADN é universal; e até é possível codificar a informação para a tornar acessível a poucos. Aliás, isto pode ser lido no site da TWIST.
100 milhões de filmes guardados em um grama
Mas para ter uma ideia do que estamos a falar, nada como um exemplo. Fique a saber que um grama de ADN pode guardar até 215 petabytes de informação. Ou seja, qualquer coisa como 100 milhões de filmes! A densidade permitida por este armazenamento molecular é incrível. Como diz a Twist Bioscience: hoje, em apenas 20 gramas de ADN é possível guardar toda a informação digital existente no mundo.
Há outros cientistas a trabalhar nesta tecnologia e a Microsoft está apostada em fazer do armazenamento em ADN parte da sua estratégia para continuar a vender os serviços neste setor. Com é explicado aqui pela TECHNOLOGY REVIEW.
O que interessa reter é que a Humanidade tem um problema a resolver se quer manter um registo de toda a informação digital que existe, e que vai ser, criada. A física dos suportes hoje utilizados não tem densidade ou resistência suficientes para guardar toda a informação que está a ser produzida. Um estudo da EMC afirma que o volume de dados produzido no mundo está a duplicar a cada dois anos. E entre 2013 e 2020 vai aumentar em 10 vezes. Ou seja, daqui a três anos a Humanidade vai estar a produzir 44 triliões de gigabytes. E o ESTUDO ilustra o problema: atualmente, a quantidade de informação digital dá para fazer uma coluna de tablets iPad Air que chega a dois terços do caminho que dista a Terra da Lua. Qualquer coisa como 253 mil quilómetros de iPads empilhados. Em 2020, vão existir seis colunas de iPads!
A biologia a resolver o que as máquinas não resolvem
Sim, estamos a produzir cada vez mais dados. Mas nem seremos nós os maiores responsáveis deste crescimento. Tecnologias como Internet das Coisas, a Comunicação Máquina-a-Máquina e a Inteligência Artificial vão dar voz a milhões de objetos que até hoje estiveram mudos. A roupa que vestimos, os eletrodomésticos que temos em casa, o carro que conduzimos, as máquinas que estão nas fábricas… todas vão comunicar. Algumas connosco e outras entre elas. Redes sobre redes que vão gerar uma quantidade infindável de dados que, depois de tratados pelos algoritmos, darão lugar à informação.
Onde vamos guardar tudo isto? Não há discos rígidos ou fita suficiente para o fazer. O ADN que guardou as notas de Miles Davis pode ser um dos caminhos a seguir. A biologia a responder a um problema que as máquinas não resolvem. Não deixa de ser poético saber que a tecnologia única que vive em cada um de nós é a solução para guardar tudo o que faz de nós únicos: o poder de pensar e de criar.
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