Sociedade

Cláudia Caldeirinha: “As mulheres foram apagadas da fotografia da História”

A ativista e investigadora da defesa dos Direitos da Mulheres prepara-se para lançar um livro com as histórias das mulheres 
que mais contribuíram para a União Europeia

Cláudia Caldeirinha:  “As mulheres foram apagadas da fotografia da História”

Carolina Reis

Jornalista

foto Margrit Coppé

Qual foi o primeiro momento em que se apercebeu da desigualdade de género?
Quando comecei a ver que num conflito, como foi o caso do genocídio de Timor, há imenso sofrimento, mas é desproporcionalmente mais violento nas mulheres e nas crianças. E o corpo das mulheres, pela esterilização forçada, pela violação como política de integração para ter filhos mistos, é usado como arma de guerra. Apercebi-me disto muito miúda, quando ia fazer voluntariado com os refugiados timorenses que vieram para Portugal.

E quando começou a trabalhar nesta área?
Estudei os processos de transição democrática, como o processo de Timor, Papua Nova Guiné, no mestrado sobre identidade de género em situações de conflito. Foi aí que comecei a estudar, a aprender, a falar com pessoas que trabalhavam nesta área. A minha tese foi sobre a Revolução do Irão, como o corpo da mulher faz parte de qualquer processo de transição de regime. E a partir do momento em que há essa transição, a mulher volta à cozinha ou é metida debaixo de um veuzinho preto. Claro que o género não é a única camada a definir a nossa identidade, mas conta. Com a tese de doutoramento — que era como criar entre os diferentes pilares de uma sociedade as estratégias que permitissem avançar a democracia e os valores dos Direitos Humanos — encontrei o George Soros que estava a criar um projeto chamado “Project Democracy Coalition”, cujo objetivo era mesmo esse. Indicou-me como diretora regional para a Europa e trabalhei em 33 países.

As nossas sociedades ainda são dominadas pelo homem branco?
Se se nasce homem, a vida vai ser muito diferente do que se se nascer mulher. E se se nasce mulher branca, a vida vai ser muito diferente do que se se nascer mulher africana. Quanto mais nos afastamos do padrão ouro que é ser homem branco europeu, americano, ocidental, de uma classe económica e social elevada, mais difícil é ter poder de decisão em relação à própria realidade. As mulheres — apesar de serem atores fundamentais de construção das sociedades democráticas — quando chega a altura da divisão dos papéis de poder são, inequivocamente, postas de parte. E quando há essa consciência põem lá uma mulher para enfeitar.

Que efeitos tem isso?
A Christine Lagarde [diretora do FMI] diz que a grande crise da nossa década foi criada por demasiada testosterona em Wall Street. E é verdade, aqueles homens todos entraram num delírio narcísico sem reflexo na realidade. As pessoas ainda não fazem a relação entre a diversidade de género — mais mulheres no topo a tomar decisões —, e os macroproblemas da sociedade. Pensam que a igualdade de género é só direitos de mulheres e, portanto, isso é uma coisa de nicho, de periferia. Não, não é assim. Se só há homens a tomar as decisões, só há uma parte da realidade. Não há nem os talentos, nem inputs, nem perspetivas da outra metade.

A sua empresa, a Red Scope, faz consultadoria para instituições da União Europeia sobre a igualdade de género. O que significa isso na prática?
Se há um departamento da Comissão Europeia, uma empresa privada, ou uma fundação que está a fazer uma reestruturação interna, chamam-nos. Nós vamos e fazemos o diagnóstico. É como um médico, temos as receitas que tanto pode ser um programa curto com uma formação, ou um mais longo como o que acabei agora com a maior DG da Comissão Europeia, durante dois anos. Trabalhamos o recrutamento e acompanhamos os que estão em cargos de liderança, para serem coerentes com os seus objetivos. A inclusão, a igualdade de género e a diversidade são muito importantes para a mudança.

Como nasceu a ideia?
Começou como acompanhamento a uma liderança mais estratégica, sustentável e ética, quando estava trabalhar com o Clube de Madrid [o maior fórum mundial de antigos chefes de Estado e de Governo]. Estava a desenvolver programas de estratégia e liderança e cada vez que encontrava um grupo de líderes havia três ou quatro mulheres. Eram sempre homens brancos, a discutir as mesmas coisas. Havia um pensamento muito pouco diverso. Percebi que tinha de fazer alguma para dar mais visibilidade às mulheres. Temos cada vez mais talentos femininos, porém só os homens chegam ao topo da pirâmide.

Foi também aí que nasceu o livro “Women Leading the Way in Brussels” (As mulheres que lideram em Bruxelas)?
Começamos a ver as fotografias de família no Conselho Europeu: todos homens. Muito poucas mulheres. As mulheres foram apagadas da fotografia da história. E depois vemos os homens a subir pela escada rolante. Vários estudos indicam que faltam role models femininos, que estejam nos livros da escola, nos jornais, nas televisões, nas empresas. Ora só na Europa, no meu quotidiano, em Bruxelas, encontro mulheres fabulosas, conheço imensas histórias de mulheres fantásticas. Precisei de partilhar as suas histórias com outras pessoas e convenci a minha coautora, a Corinne Hörst [diretora-geral do Marshall Fund]. É um trabalho de dois anos.

São 14 as mulheres do livro, entre as quais Ana Gomes. Como fizeram essa seleção?
Podiam ser centenas, mas nós não tínhamos uma eternidade. O livro tem uma parte inicial, na qual fazemos a relação direta entre a Europa de hoje, a falta de diversidade e as elites que determinam o futuro deste continente. O projeto da UE foi feito por homens brancos, até hoje ainda não foi integrada a versão das mulheres. Esse é um dos fatores que incapacitam o projeto europeu de se reformar, tem demasiado sangue velho, demasiado modo de pensar à moda antiga. Precisamos de sangue novo: de homens de outras etnias, de mais mulheres, de pessoas de diferentes idades, de mais diversidade. A liderança tem de refletir a constituição das bases e, neste momento, isso não acontece.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: cbreis@expresso.impresa.pt

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