Sociedade

Cesarianas sem lei

A OMS alerta para a elevada percentagem de partos 
por cesariana. Em Portugal, uma comissão tentou diminuir o seu número, mas no mundo os partos cirúrgicos continuam a aumentar. Os especialistas dizem que é o resultado da falta de informação e de facilitismo. há governos que já começaram a legislar

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Portugal é um dos países europeus com maior taxa de cesarianas. A taxa de cesarianas registada para todo o Sistema de Saúde, em 2010, foi de 36,6% e a do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em 2011, referente apenas ao universo do sector público, foi de 31%. Estes valores são superiores ao considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde, já que a realização de cesarianas sem necessidade técnica acarreta riscos acrescidos para a mãe e para o feto.”

Assim começava o Despacho nº 3482/2013 que ditava a criação de uma Comissão Nacional para a Redução da Taxa de Cesarianas. Quatro anos passados a Comissão já só tem um papel consultivo, e os dados de 2015 fixaram as cesarianas nos 32,9%. Contudo, Portugal continua a ser o nono país do mundo com mais cesarianas, ainda acima dos 15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Diogo Ayres de Campos, obstetra do Hospital de Santa Maria e presidente da Comissão, apela ao otimismo dos portugueses. Olhando para os números, esta é uma vitória. O país é exemplo lá fora pela diminuição de cesarianas no público.

Seja por medo, por motivos culturais ou por facilitismo ainda é uma opção de muitas mães preferir uma cirurgia ao parto vaginal. E, em Portugal, se for por opção as parturientes terão que se dirigir ao privado. Irina Ramilo, obstetra no Hospital Amadora-Sintra (público)e no Hospital Lusíadas (privado), reconhece que há duas “realidades no país”. E nesses dois mundos 66% dos partos por cesariana são feitos no privado. Já em 2016 Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, dizia ao Expresso que “não há justificação biológica para esses números”.
Um ano depois, Irina Ramilo é “objetiva” e reconhece que “no privado existe cesariana a pedido. Há muitas senhoras que já fazem seguros a considerar o parto por cesariana”. Sónia Marinho “muito medrosa e cheia de receios em relação ao parto natural” foi uma delas. Nunca teve dúvida de que era dessa forma que queria ser mãe. Escolheu o privado para que pudesse ter um parto “mais bonito e onde se vê menos”, diz ter ponderado bastante. Acabou por ter os dois filhos assim. O primeiro fruto de uma decisão sua, o segundo porque a sua condição assim o exigia.

infografia carlos esteves

O caso desta paciente é um dos inúmeros casos a que Irina Ramalho já se habituou e com quem tenta “conversar, mostrar o benefício e os riscos dos dois processos” consciente de que às vezes “pode acontecer a grávida não aceitar e não mudar de ideias”.

Diogo Ayres de Campos ressalva que o que faz aumentar os números não são as cesarianas por pedido. Até porque é “raríssima a grávida que sabendo os riscos aceita ir em frente”. O problema reside no facto de “nem sempre haver um esclarecimento dos riscos totais da cesariana por não ser do interesse de alguns profissionais de saúde. Isto faz com que muitas mulheres acabem por escolher a cesariana baseada numa informação incorreta”.

Em Portugal, além dos incentivos económicos aos hospitais públicos, a informação e a desmistificação têm sido a arma contra as cesarianas.

Na Turquia, o segundo país do mundo com mais cesarianas, a lei foi mais longe. Em 2012, 48% dos partos eram por cesariana e nos privados o número ascendia aos 60%, a lei então ditou uma multa de quase €400 ou uma investigação para os médicos que fizessem cesarianas sem ser em caso de emergência. Esta lei foi acusada de não privilegiar o direito à escolha da mulher. Contudo, e como há sempre uma forma de contornar a lei, dados da OCDE para 2015 mostram que naquele país, por cada mil nascimentos, 53% continuam a ser cesarianas.

Irina Ramilo acredita que esta realidade sentida na Turquia não seria muito diferente em Portugal, no caso de poder haver cesariana seletiva nos hospitais públicos. Pois isto representa sempre uma “dualidade ética” para os profissionais de Saúde. É que, se por um lado a escolha é sempre da mulher, por outro não se pode ir contra o interesse do bebé. Principalmente porque “há mulheres que não estão informadas e acham que a cesariana é muito mais fácil. Têm medo que pelo parto vaginal haja destruição do períneo ou que tenham repercussões mais tarde”. O que para a obstetra se traduz em colocar “mais em questão a saúde delas do que propriamente a do bebé”.

Sónia Marinho admite que pensou nos seus receios, “nas histórias de todas as mulheres que sofrem horrores durante horas e que depois acabam por ter que fazer uma cesariana”. Mas diz que acreditou que “para o bebé também seria mais simples e prático”. A médica da empresária, hoje com 41 anos, foi conivente e percebeu-lhe os medos “inclusive disse que até poderia nem conseguir fazer a dilatação” necessária para um parto eutócico.

É neste ponto das histórias de horror nas salas de parto que Irina Ramilo fala da falta de informação. Explica que uma cesariana até pode ser “mais fácil”, mas porque um parto vaginal “exige muito mais de um obstetra porque pode demorar até 48 horas”. Lembra que uma “cesariana implica muito no futuro de uma mulher”, como “não poder engravidar tão cedo, ter complicações em gravidezes futuras”. E acrescenta que há complicações “que nem se tem ideia que uma cirurgia pode implicar.” “Mas dizer que uma cesariana é mais seguro para um bebé não é verdade.” Ressalva os casos em que há risco para o bebé ou para a mãe e que “não dá para esperar”.

Só na Europa são realizadas 160 mil cesarianas não necessárias por ano, e à cabeça destes números está Itália, o quinto país mundial com mais cesarianas, e o campeão europeu. Desde 2012 até janeiro deste ano o país recebeu o projeto OptiBirth, cujo objetivo primordial era aumentar o número de partos vaginais em detrimento dos cirúrgicos. Para os jornais italianos as cesarianas são já uma “epidemia”, que fez com que o país passasse da percentagem ótima de 11% nos anos 80, para os atuais 36,1%. Não obstante, dados da OCDE mostram que em Itália tem sido feito um lento caminho na redução das cesarianas, mas que o elevador já começou a descer sem a força da lei. Se, em 2009, por cada mil nascimentos, 38,7% eram cesarianas, em 2015, para os mesmos mil já havia 35,2% de cesarianas. E se o caminho já andava a ser feito, com o OptiBirth desbravou-se muito terreno. Nos hospitais envolvidos no projeto passou-se em quatro anos de 8,3% de partos normais para 21,9%. Apenas acompanhando a grávida, dando-lhe todas as informações e desmistificando, permitindo-lhe fazer uma escolha conscienciosa e não temerária.

Escolha que a algumas mexicanas tem sido vedada, alertou o subdiretor do serviço de ginecologia do Instituto Nacional de Perinatología, Norberto Reyes Paredes, ao jornal mexicano “El Universal”. O obstetra justifica as estatísticas do país, onde desde 2010 quase metade dos nascimentos são feitos por cesariana, ao facto de haver “no sector público um problema entre o número de médicos e de pacientes. Qualquer ginecologista vai dizer que um parto vaginal é a melhor opção, mas se só há um médico para dez mães em trabalho de parto vai haver um problema”. Por isso, no México, o segundo país com mais cesarianas no mundo, este problema tem sido resolvido com o recurso ao parto cirúrgico.

Os números, que embora em 2015 tenham baixado dos 47% para os 45%, não descansaram a Comissão de Saúde do Senado que em 2016 pediu um relatório para os perceber. Os resultados preocuparam os senadores, auferindo que no país os médicos usam da sua posição hierárquica para diabolizar os partos vaginais e impor cesarianas às mães. Um ano depois as mexicanas ainda esperam o resultado na mudança de prática ou de legislação fruto daquele relatório.

Parto Humanizado

Um pouco por todo o mundo começa a fazer-se do parto um momento menos tenso. Mesmo durante o parto cirúrgico, em Portugal, os pais já podem estar presentes. São várias as teorias que apontam que a forma de diminuir as cesarianas é dando à mãe a possibilidade de ser acompanhada por uma parteira ou uma parceira durante todo o processo.

No Brasil, que lidera as cesarianas a nível mundial, há a figura de ‘obstetriz’, uma profissão voltada para o acompanhamento da mãe e condução durante o momento do parto. O ano passado a falta de profissionais fez com que fosse aberto concurso e até 2018 devem ser integradas mais profissionais. Mais uma política pública que pretende baixar os 55,5% (número que não teve grandes alterações nos últimos anos) de partos por cesariana no país. Já o ano passado o Governo brasileiro havia declarado que, à exceção das cesarianas de urgência, todas as cesarianas seriam apenas possíveis a partir da 39ª semana. Pelo facto de entre as 37 e as 39 semana o bebé passar por uma fase crítica do desenvolvimento do cérebro, dos pulmões e do fígado. Assim salvaguarda-se o direito à escolha da mãe e o desenvolvimento do bebé. Sendo um caminho para a diminuição das cesarianas e aumento do parto humanizado como já chamam ao parto eutócico naquele país.

Irina Ramilo diz não ser por acaso “que se chama parto normal ao parto vaginal”. “É a via de parto mais antiga. E antigamente não havia cesariana, havia mais mortes perinatais mas as condições alteraram-se. Diz-se parto humanizado porque se põe em questão a parte humana, as mulheres terem um plano de parto, terem música, as luzes que querem, a posição. O parto é visto para aquela mulher.”

Em Portugal o caminho está a ser feito tendo a informação como bandeira. No serviço público os resultados já se veem e está-se cada vez mais próximo do recomendado pela OMS. Diogo Ayres de Campos lembra que faz falta um reinvestimento. “Não basta dizer agora há menos cesarianas. Há técnicas e procedimentos do parto normal e das complicações que é preciso restabelecer nos hospitais. Há hospitais que já não fazem partos pélvicos há alguns anos e voltar a fazer é mais difícil pois quem os sabia fazer já não trabalha.” Nos privados os dois obstetras concordam que terá que haver uma mudança no comportamento e nos preços das seguradoras, para que os números mudem.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: Cesteves@expresso.impresa.pt

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