Sociedade

38 quilos, 18 anos, menos de um metro e meio: Jéssica, a primeira acrobata portuguesa no Cirque du Soleil

Jéssica Correia, uma das muitas ginastas criadas pelo Acro Clube da Maia, foi escolhida para integrar o Cirque du Soleil
Jéssica Correia, uma das muitas ginastas criadas pelo Acro Clube da Maia, foi escolhida para integrar o Cirque du Soleil
FOTO LUCÍLIA MONTEIRO

Jéssica Correia partiu este sábado para o Canadá à conquista do mundo do espetáculo. Esta é a história dela, ela que nunca passou mais do que duas semanas fora de casa. Mas isso vai mudar

Dezenas de jovens ginastas iniciam o treino nas instalações do Acro Clube da Maia (ACM). Este podia ser apenas mais um dia, mas não o é para Jéssica Correia. A atenção mediática e a azáfama das entrevistas não faziam parte da rotina, mas nem isso reduz a concentração colocada em cada sessão de trabalho. Cinco horas por dia, seis vezes por semana, ali está ela. Leve. Ágil. A praticar exaustivamente cada movimento. A aprender com cada erro. Um esforço indispensável a quem persegue um sonho há nove anos: o de converter a paixão pela ginástica acrobática numa profissão.

A realidade sorriu-lhe. Com apenas 18 anos, 1,45m e 38 quilos, “Jessy” está a um pequeno passo de dar um salto de gigante e tornar-se a primeira acrobata portuguesa a fazer parte das fileiras do Cirque du Soleil, para integrar o espetáculo “Varekai”, baseado na história mitológica de Ícaro.

Sem asas artificiais, Jéssica está pronta para voar. Tudo começou por ser um passatempo de uma “menina tímida” – como recorda o treinador Lourenço França – que aos nove anos queria ser veterinária, mas rapidamente entrou no circuito da alta competição. Ao longo da carreira gímnica, Jessy obteve um 6.º lugar num Mundial, alcançou o 5.º posto no Europeu de 2015, sagrou-se campeã nacional e em 2016, juntamente com as colegas Susana Pinto e Joana Patrocínio encabeçou o topo do ranking mundial da modalidade.

Lucília Monteiro

Agora, os sucessos desportivos ficam para trás e salta (de forma inesperada, mas harmoniosa) para o universo da arte. O contrato válido até 31 de dezembro – passível de ser renovado durante mais um ano – está assinado desde janeiro. A volante portuguesa voou este sábado de manhã, da Maia para Montreal, à conquista do mundo do espetáculo.

A adaptação a uma nova realidade começa já esta segunda-feira e durante 20 dias fará um treino específico, de forma a poder incorporar o espetáculo. “São todos muito unidos e ajudam-se bastante uns aos outros. Acho que vai ser fácil ambientar-me”, acredita a jovem, embora reconheça tratar-se de um processo novo.

Atleta versus artista

“Ser atleta é completamente diferente de ser artista. Enquanto atletas treinamos para sermos os melhores, para agradar aos juízes e para alcançar uma determinada pontuação. Enquanto artistas estamos no palco a desfrutar do momento e com o objetivo de agradar ao público”, explica a ginasta de 18 anos. “Vou ter de treinar muito a expressão facial e a componente artística. A parte técnica não tanto, porque já estou habituada.”

Mas como é que tudo isto aconteceu? Em maio de 2016, dois elementos do Cirque du Soleil estiveram uma semana a acompanhar os treinos do Acro Clube da Maia, fruto de uma parceria informal entre o emblema maiato e a mais reputada companhia circense a nível internacional. O talento de Jéssica não passou despercebido a Caitlan Maggs, do Canadá, e ao russo Alexey Karuline, que imediatamente a convidaram para um ‘casting’.

Lucília Monteiro

A “prova de ingresso” foi gravada em vídeo, com imagens mais do que suficientes para despertar o interesse dos dirigentes do Cirque du Soleil e assim garantir a “matrícula” da ginasta portuguesa. Durante mais de meio ano seguiu-se o processo negocial e burocrático, sempre com o treinador Lourenço França a servir de mediador.

Jéssica nunca passou mais do que duas semanas fora de casa, nem quando participou em competições internacionais. Agora chegou o momento de partir. Para longe. Para terras mais frias e a candidatura para o curso de Bioengenharia fica também congelada.

Os sonhos, porém, vão aquecidos por uma determinação ímpar e pelo perfeccionismo – “por vezes até exagerado”, confessa – que a fazem mover. Sozinha, sem ter a companhia da mãe ou dos amigos, mas acompanhada de objetivos. “Estou um pouco ansiosa para ver como é tudo aquilo, para perceber como são os treinos e o ambiente.”

A arte de errar para atingir a excelência

Fundado há 13 anos, o Acro Clube da Maia tem já um largo leque de conquistas, com atletas medalhados em campeonatos do mundo e em europeus. Lourenço França é o treinador de ginástica acrobática no clube desde a sua fundação e ao longo do tempo já esculpiu o desenvolvimento de muitos jovens. “Chegam como uma pedra e o nosso trabalho é tirar o que está a mais até ficar uma escultura bonita”, compara o responsável técnico pela classe de elite.

“Podiam estar todos na praia, mas estão aqui num dia quente de agosto. A treinar desde as 10h até às 19h. Eu ponho as minhas mãos no fogo: qualquer um dos meus atletas treina mais do que qualquer jogador de futebol da primeira liga. Só não ganham o mesmo. Pelo contrário, até pagam.”

Lucília Monteiro

“O que distingue os excelentes dos restantes é o facto de serem pessoas dispostas a errar muito mais do que as outras. E a Jéssica é uma miúda trabalhadora, muito resiliente”, assegura Lourenço França. “É um caso raro, porque tem uma morfologia muito própria. Ela tem uma baixa estatura e junta a isso uma boa perceção aéreo-espacial. Percebe muito bem onde está, roda muito bem e depois tem o mais importante: a capacidade de trabalho.”

O clube que a viu “nascer” também estará sempre bem presente na memória de Jessy. “É como uma segunda casa. Sempre que vier a Portugal tenho de passar por aqui. São meus amigos e nunca vou deixar de estar com eles”, assegura a acrobata.

A saltar de país em país

O clube, o treinador e os braços firmes das colegas levaram a pequena Jéssica até ao topo do mundo, num percurso sempre pontuado pela autodisciplina. “Muitas das vezes temos de abdicar de algumas coisas, como saídas à noite ou passar o dia na praia. Enquanto muitos dos meus amigos têm três meses de férias, eu tenho duas semanas, e mesmo durante esse tempo não posso parar, tenho de treinar em casa”, explica a ginasta, que ainda assim consegue arranjar tempo para estudar, ir ao cinema ou estar com os amigos. “É só uma questão de organizar o tempo.”

Lucília Monteiro

A organizar o tempo e a verificar o calendário está também Lourenço França. Há 15 anos, antes ainda de o ACM ter sido fundado, Lourenço e uns amigos foram de carrinha até Sevilha para assistir a um espetáculo do Cirque du Soleil. “Era o mais perto que havia”, lembra. Agora os tempos são outros e as deslocações mais acessíveis. “Já fui ver à internet qual é o espetáculo mais próximo. Quero muito ir vê-la.”

Depois dos 20 dias que vai passar em Montreal a preparar-se para o espetáculo, Jessy viajará para a Europa, onde vai finalmente juntar-se à trupe e conhecer os novos colegas. A estreia está agendada para 20 de setembro, em Riga, na capital da Letónia, com passagens já asseguradas por Noruega, Suécia, Finlândia ou Bielorrússia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: amcorreia@expresso.impresa.pt

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