A única mulher

Era iraniana, muçulmana, brilhante. Maryam Mirzakhani foi a única mulher a ganhar a Medalha Fields, o equivalente ao Nobel da Matemática. Morreu aos 40 anos, no mês passado. O Expresso presta-lhe homenagem
Era iraniana, muçulmana, brilhante. Maryam Mirzakhani foi a única mulher a ganhar a Medalha Fields, o equivalente ao Nobel da Matemática. Morreu aos 40 anos, no mês passado. O Expresso presta-lhe homenagem
Jornalista
Bruscamente, no mês passado, morria Maryam Mirzakhani. Uma mulher invulgar, atípica, genial, que perdeu a luta para um cancro ao fim de 4 anos de luta. Tinham passado três anos desde que ganhara a maior distinção do mundo a matemática, a Medalha Fields. Quando partiu, a 14 de julho passado, muitos jornais do Irão, de onde Maryam era originária, abriram uma excepção e publicaram fotografias dela de cabelo descoberto, sem o obrigatório véu islâmico.
Deixa uma filha, Anahita, de 6 anos, marido, Jan Vondrak, um cientista de teoria computacional, dezenas de prémios ganhos e várias teorias científicas relevantes, nomeadamente a da "dinâmica da geometria das superfícies Riemann e dos seus espaços de módulos", que lhe valeu o galardão máximo da matemática.
Tinha olhos de um azul-acinzentado e falava com voz baixa mas firme. Professora de matemática na Universidade de Stanford desde 2008, tinha lecionado em Princeton anteriormente (2004) e feito o doutoramento em Harvard. Mente brilhante, considerava-se uma matemática "lenta" e dizia que era necessário "gastar energia e esforço para encontrar a beleza da matemática". Quando tentava resolver problemas, rabiscava e desenhava em folhas de papel e escrevia fórmulas matemáticas em torno dos desenhos. Nessa altura, a filha, Anahita, dizia que a mãe "estava a pintar".
Nada faria prever que Maryam, uma menina nascida e criada em Teerão na altura da guerra Irão-Iraque, pudesse alguma vez romper com os cânones culturais que lhe eram impostos e furar o sistema. Com um governo Islâmico no poder, frontalmente oposto à ciência Ocidental, era francamente improvável que uma menina pudesse fazer o percurso de Mirzakhani. O primeiro amor foi os livros. Leitora compulsiva, devorava obras e sonhava ser escritora.
A matemática chegou à sua vida pela mão do irmão mais velho, que lhe transmitia o que aprendia na escola. Muito inteligente, Maryam foi aceite na Farzanegan Middle School for Girls, escola dedicada a crianças de talentos excecionais. Foi aqui que o seu talento para a matemática se começou a evidenciar. Por sua iniciativa, pediu aos professores que tivesse aulas de resolução de problemas e após muito treino integrou a equipa iraniana para as Olimpíadas Internacionais de Matemática.
Em 1994, na sua primeira participação, com 17 anos, ganhou uma medalha de ouro. No ano seguinte, conquistou duas. Escolheu um curso de Matemática na Universidade Sharif de Tecnologia, em Teerão, e antes de partir para os EUA, onde já decidira prosseguir o estudos, fez uma viagem com vários colegas para uma competição de matemática, que culminou num trágico acidente. O autocarro em que seguiam despistou-se e sete estudantes perderam a vida. Maryam escapou. Tinha um outro destino à espera.
Na universidade de Harvard terminou o doutoramento em 2004, sob a supervisão de Curtis McMullen, ele próprio vencedor da Medalha Fields. Maryam dedicou-se especialmente ao estudo da geometria, com implicações em áreas para lá da matemática - como a física quântica, engenharia e astrofísica. Em 2014 venceu a Medalha Fields pelo contributo da sua teoria sobre a dinâmica da geometria das superfícies Riemann e dos espaços de módulos. Uma das forças da sua pesquisa residia na criação de pontes entre várias áreas, que lhe permitiam encontrar soluções elegantes e inesperadas para resolver problemas.
A sua tese de dissertação, que abordava a geometria hiperbólica, é descrita como "verdadeiramente espetacular" por Alex Eskin, um matemático da universidade de Chicago que trabalhou com ela. Outro matemático da mesma universidade, Benson Farb, descreve o trabalhos de Mirzakhani sobre "a dinâmica das superfícies abstratas relacionadas com mesas de bilhar como provavelmente o teorema de década".
E contudo, Maryam era, além de muito curiosa e motivada, uma profissional modesta. Quando recebeu o email, em fevereiro de 2014, a anunciar que tinha ganho a Medalha Fields - a maior honra mundial em matemática -, pensou que a sua conta de correio electrónico tinha sido pirateada... (A Medalha Fields, explique-se, oficialmente conhecida como Medalha Internacional de Descobrimentos Proeminentes em Matemática, é um prémio concedido a dois, três ou quatro matemáticos com menos de 40 anos durante o Congresso Internacional da União Internacional de Matemática, que acontece a cada quatro anos).
Paciência, perseverança e ambição eram outras características suas. "A beleza da matemática só se mostra aos seguidores mais pacientes", disse. A menina que em criança contava sempre a si mesma histórias de heroínas que viajavam pelo mundo e viviam vidas de exceção, talvez tenha intuído que esse seria o seu destino. Os psicólogos chamam-lhe "self- fulfilling prophecy" - quando as nossas crenças são tão fortes que se concretizam em ações.
As histórias que contava inspiraram-na a fazer algo de grandioso com a sua existência. Em 2013, contudo, a vida rasteirou-a, na forma de um cancro de mama. Maryam lutou arduamente, até que, quatro anos mais tarde, a doença se espalhou aos seus ossos e fígado. Fechou os olhos a 14 de julho deste ano. Afirmava que "não é suposto a vida ser fácil". Ela, melhor do que ninguém, devia saber o que dizia.
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