Dourada, límpida, de espuma alva e persistente (e também as há pretas)
Há cervejas de muitas marcas, paladares e tonalidades. Bebida milenar, já foi mais popular do que a água e diz-se que os britânicos adotaram o chá das cinco porque uma rainha portuguesa não a quis beber. No verão, é uma das bebidas de eleição. Bem geladinha. Ou não?... Por ocasião do Dia Internacional da Cerveja, que se celebra esta sexta-feira, reproduzimos o artigo publicado na revista de 15 de agosto de 2009
Bruno Aquino
Sempre que se aborda um assunto que evoca a temática das loiras, a figura da cerveja é certamente uma das primeiras imagens que ocorre à maioria das pessoas. Apesar de também existirem em tonalidades mais ruivas ou morenas, o conceito que imediatamente associamos à cerveja apresenta-a como um líquido de cor dourada, límpido, de espuma alva e persistente. Todavia, a aparência platinada é bastante recente se considerarmos a história milenar desta bebida.
Não seria improvável que um homem da Idade Média olhasse com desconfiança para o aspeto atual da nossa cerveja, por certo demasiado clara e translúcida para os seus padrões. Presente na alimentação e nos ritos de culturas tão diferentes como a egípcia, a chinesa ou a assíria, a cerveja pouco evoluiu durante largas centenas de anos. Na sua produção era utilizada uma infinidade de ingredientes, com especial destaque para as ervas aromatizantes, que poderiam ir desde o rosmaninho ao mirto ou ao lúpulo.
A Lei da Pureza da Cerveja
A proliferação de ingredientes, a maioria dos quais de origem e qualidade bastante duvidosas, originava frequentes problemas de saúde pública, algo que ameaçava a indústria cervejeira no seu todo. Para obstar a isso, o duque Guilherme IV da Baviera promulgou, em 1516, a famosa Lei da Pureza da Cerveja (Reinheitsgebot), onde se estabelecia os ingredientes que seriam permitidos no processo de elaboração: água, cevada e lúpulo. Curiosamente, nessa altura ainda se desconhecia a importância da levedura para o sistema produtivo, algo só revelado anos mais tarde pelos trabalhos de Pasteur. Durante a Idade Média, a cerveja chegou mesmo a ser mais popular do que a água, já que, como é sabido, as práticas sanitárias daquela época eram muito más, razão pela qual se tornava mais seguro beber cerveja do que água. De facto, o processo de fabrico fazia com que muitas das impurezas fossem filtradas, pelo que quem pudesse fazer a troca de água por cerveja raramente hesitava.
Cinco litros por dia para o monge
Nos mosteiros, as técnicas de fabricação iam sendo desenvolvidas, em busca de uma cerveja mais agradável ao palato e mais nutritiva. A importância da qualidade alimentar da cerveja era relevante para os monges, dado este ser um produto que os ajudava a passar os difíceis dias de jejum.
Esses períodos caracterizavam-se pela abstinência dos monges em termos de comida sólida, mas nada os impedia de ingerir líquidos. Há, pois, relatos de monges que foram autorizados a beber até 5 litros de cerveja por dia! Isso só os incentivou a produzir mais e melhor cerveja, chegando ao ponto de se criarem pequenas tabernas nos mosteiros, onde era cobrada uma pequena taxa para que as pessoas pudessem experimentar a cerveja de alta qualidade que ali se produzia.
Com a Revolução Industrial, a cerveja entrou também ela numa nova era, com a aplicação de maquinaria e de técnicas modernas de produção, passando o produto final a assemelhar-se em muito ao das nossas loiras atuais.
Já em Portugal, a cerveja encontrou fortes obstáculos à sua plena implantação, mormente devido à importância que a cultura vinícola sempre teve no nosso país.
Bebida desprezível, de bárbaros
Desde a época romana que se considerava que a cerveja era uma bebida desprezível e típica de povos bárbaros. Tácito, na sua descrição dos germanos, referiu-se a uma bebida "horrível", fermentada de cevada ou trigo, muito comum nas regiões da Europa Central. Ainda assim, durante o século XVII já se consumia cerveja em quantidades assinaláveis, algo refletido na existência em Lisboa de um local denominado Pátio da Cerveja, situado na antiga freguesia da Conceição Nova. No entanto, o consumo desta bebida não era tão pronunciado como em outros países europeus.
Há um relato histórico curioso da chegada da infanta D. Catarina de Bragança a Portsmouth, por ocasião do seu consórcio com o rei Carlos II da casa de Stuart.
Tendo aportado a essa cidade inglesa, após uma viagem longa e difícil, foi hospedada em King's House e aí ficou retida por algum tempo devido a uma infeção na garganta. Nessa altura, o médico da corte recomendou darem-lhe um copo de cerveja, bebida já vulgar em Inglaterra.
D. Catarina recusa e com a garganta a arder e muita febre pede, em espanhol, uma chávena de chá, o que deve ter provocado uma enorme perturbação entre os presentes, pois o chá não era uma bebida conhecida na corte. Imagine-se, pois, que a culpa do típico chá das cinco britânico é de uma rainha de origem portuguesa.
Mercado português bipolarizado
Na atualidade, o mercado português encontra-se bipolarizado, fruto da nacionalização e concentração empresarial que se seguiu ao 25 de Abril. Marcas como a Topázio, Cergal, Clok ou Marina foram incluídas nos catálogos da Unicer e da Centralcer.
Para além destes conglomerados, a oferta disponível assenta nos produtos de companhias como a Drinkin (Cintra), a Sumol+ Compal (Tagus), a Melo Abreu, açoriana, e a Coral, madeirense.
Contudo, nos últimos anos houve um forte crescimento do interesse dos consumidores por cervejas especiais e diferenciadas, o que se refletiu no número de cervejas estrangeiras disponíveis no mercado nacional.
Apesar de todas as dificuldades, a cerveja é hoje um produto de forte reconhecimento na sociedade portuguesa, faltando apenas construir um a verdadeira cultura cervejeira para que, tal como aconteceu com o vinho, se passe a pedir uma cerveja pelo estilo, pela marca, com um copo adequado à sua degustação, servida a uma temperatura correta. Nada impede que se continue a apreciar a nossa loira de forma descontraída, com os amigos, numa esplanada a ler o jornal, na praia ou a acompanhar um pratinho de tremoços.
Mas há que não esquecer que a cerveja pode ser um produto extremamente sofisticado, com aromas e sabores muito complexos e rituais próprios, ótima para harmonizar com pratos de alta gastronomia e com as diversas épocas do ano. Agora relaxe, tome a sua loira e aproveite o Verão.
Um dos ‘templos’ nacionais de degustação cervejeira, o British Bar, em Lisboa
Nuno Botelho
A cerveja em 10 perguntas
Apesar da sua história milenar, há ainda um grande desconhecimento sobre a evolução, os estilos ou o processo produtivo da cerveja. Afirma-se que a descoberta desta bebida se deu pouco tempo depois do surgimento do pão. Os sumérios, e outros povos, teriam percebido que a massa do pão, quando molhada, fermentava, ficando ainda melhor. Assim, teria aparecido uma espécie primitiva de cerveja, como "pão líquido".
Várias vezes repetido e até melhorado, este processo deu origem a um género de cerveja que os sumérios consideravam uma "bebida divina", a qual era, por vezes, oferecida aos seus deuses. Não deixa, portanto, de ser curioso que passadas largas centenas de anos, ainda subsistam tantas dúvidas e mitos em redor da cerveja. Tentemos, pois, esclarecer algumas das questões que mais frequentemente são suscitadas:
1 QUAL A MELHOR CERVEJA DO MUNDO? Como em tudo, isso dependerá do gosto de cada um de nós, do estilo de cerveja preferido, das experiências que se vivenciaram.
Não obstante, se fizermos uma pesquisa rápida nos diversos sites dedicados à classificação de cervejas, há duas ou três que aparecem recorrentemente nos dez primeiros lugares. São elas a Westvleteren Abt 12, a Rochefort Trappistes 10 e a Three Floyds Dark Lord Russian Imperial Stout, nobres representantes de duas das maiores escolas de cerveja mundiais: a belga e a norte-americana.
2 A CERVEJA ENGORDA? Não existem evidências científicas que provem que a cerveja é responsável pela famosa 'barriguinha', antes pelo contrário: esta bebida tem um efeito protetor sobre o peso corporal, obesidade abdominal e síndrome metabólica.
Estas são, aliás, algumas das conclusões do Simpósio Cerveja e Peso Corporal: Mitos e Realidades, que teve lugar no dia 11 de Outubro de 2008, na Faculdade de Medicina de Lisboa. Além disso, desfizeram-se alguns mitos e ficou a recomendação: o consumo moderado, que é como quem diz uma a duas cervejas por dia, ajuda a reduzir o risco de doenças cardiovasculares ou osteoporose e não engorda.
3 A CERVEJA DEVE SER SERVIDA GELADA? Eis uma verdade para muitas pessoas, especialmente para aquelas que não apreciam cerveja. Mas, na realidade, a sensação de frio causada pelas temperaturas baixas inibe os recetores de sabor que existem na nossa boca, fazendo com que o consumidor não consiga distinguir um bom de um mau produto.
Cada cerveja tem uma temperatura adequada para ser corretamente degustada, motivo pelo qual se devem evitar copos gelados, cervejas muito frias ou que tenham sido previamente colocadas num congelador.
4 EM QUE PAÍS SE CONSOME MAIS CERVEJA? E o primeiro lugar vai para... a República Checa! Os checos batem ingleses e alemães, povos que tradicionalmente associamos ao consumo massivo de cerveja, ao beberem 162 litros por ano e por pessoa. Em segundo lugar surgem os irlandeses com 146 litros per capita e só em terceiro aparecem os alemães, sendo que o consumo médio é de 123 litros per capita. Quanto a Portugal, não figuramos no Top 15 dessa lista. Por curiosidade, refira-se que os países onde se bebe menos cerveja são, e como seria expectável, algumas nações islâmicas como o Irão, Koweit, Líbia, Somália, Arábia Saudita e Bangladesh, locais onde a estatística aponta para um consumo de 0 litros per capita.
5 QUE INGREDIENTES SÃO USADOS NA PRODUÇÃO CERVEJEIRA? Basicamente, uma cerveja é composta por água, malte, lúpulo e levedura. Em geral, o malte é de cevada, apesar de também podermos encontrar de trigo, centeio ou aveia, por exemplo. Não é incomum utilizarem-se outros cereais, como arroz, milho ou sorgo, assim como ingredientes destinados a dar aroma, sabor ou cor, sejam eles frutas, especiarias, legumes ou mesmo substâncias mais estranhas, como chocolate e malaguetas!
6 A CERVEJA MAIS FORTE DO MUNDO É...? Provavelmente a norte-americana Sam Adams Utopia MMII, com 25º ABV (volume alcoólico). Antes desta, o título de mais forte ia também para uma Sam Adams, neste caso a Millenium, com 21º. Só para exemplificar a excelência desta cerveja, diga-se que foi envelhecida em barris de conhaque, porto e whisky e que, entre outros ingredientes, é feita com caramelo, malte tipo Viena e uma levedura similar à que é utilizada para produzir champanhe. A produção de 2007 resumiu-se a 12 mil garrafas e quem a comprou teve de despender perto de 100 dólares (pouco mais de 70 euros).
7 PORQUE SE CHAMA IMPERIAL A UMA CERVEJA À PRESSÃO? Lançada em 1941 como marca de cerveja de luxo, a cerveja Imperial viria a consagrar a designação genérica que no mercado se usa para pedir uma cerveja de pressão muito pelo facto de ter sido uma das primeiras a usufruir desse sistema de tiragem. Desaparecida durante largos anos, a SCC decidiu voltar a produzir cerveja com a marca Imperial, de forma continuada, a partir de maio de 1995.
8 QUAL A IMPORTÂNCIA DA ESPUMA? A espuma da cerveja, para além do aspeto estético, tem também uma importância fulcral na conservação das características organoléticas da bebida. Se é verdade que existem estilos que apresentam pouca ou nenhuma espuma - como as Barley Wine ou algumas Lambic -, as cervejas mais comuns no nosso país têm, na sua maioria, uma espuma volumosa. Não obstante a espuma em excesso poder ser prejudicial, a sua presença evita um rápido desprendimento dos aromas e do gás da cerveja, ao mesmo tempo que, em sentido contrário, dificulta a entrada de ar, algo que provocaria uma rápida oxidação e correspondente perda de qualidades.
9 COMO É QUE A LOURA SE TRANSFORMA EM MORENA? O processo produtivo da cerveja pode variar muito, dependendo da empresa, estilo ou ingredientes utilizados, por exemplo. Um dos ingredientes omnipresentes na elaboração de uma cerveja é o malte. Este pode ser torrado a várias temperaturas e durante períodos de tempo variáveis.
Essa torrefação fará com que o cereal fique mais ou menos escuro, tonalidade que será transmitida à cerveja durante o processo de elaboração. Outros fatores podem contribuir para a coloração da cerveja, nomeadamente a utilização de caramelo. Mas o cereal terá sempre um papel decisivo na definição da cor final.
10 COMO TIRAR UMA BOA CERVEJA? São vários os fatores que podem influenciar a cerveja à pressão e a qualidade com que esta chega ao cliente. Acima de tudo, o sistema de tiragem: deve ser periodicamente revisto e higienizado, para que não comecem a surgir sabores estranhos na bebida. Igualmente importante é a limpeza do copo: gordura, abrilhantadores e surfactantes são os piores inimigos da espuma da cerveja e do "trabalhar", contribuindo para o efeito de morta.
Assim, os copos de cerveja devem ser lavados isoladamente de toda a outra loiça. Pratos de comida, chávenas de café, copos de licores, todos eles contêm resíduos de gordura que facilmente aderem ao vidro. Os copos devem secar naturalmente, em posição invertida, em cima de uma grelha metálica que permita arejamento. Isso evita a entrada de poeiras e permite que não haja acumulação de cheiros no interior do copo. Claro que temos ainda o mito do tirador de cerveja, do artista! É claro que é importante saber tirar uma boa cerveja de pressão e há alguns truques básicos que podem e devem ser aplicados.
Mas a relevância do tirador, ao contrário do mito, é quase nula para a qualidade do produto final.