Sociedade

Solo ou sangue? Provavelmente os dois

São dois os princípios que regulam a concessão de nacionalidade e raramente funcionam em separado. Mas a prevalência de um ou do outro revela a abertura ou a tendência protecionista de um país. Em Portugal, considerado o país com a melhor política de cidadania da europa, a discussão sobre o direito a ela continua na ordem do dia

Existe um caso em que Portugal, entre três dezenas de países, ocupa o primeiro lugar. É o da política de acesso à nacionalidade, a que o Índice de Políticas de Integração de Imigrantes (MIPEX) deu a pontuação mais elevada: 86 pontos, seguido pela Suécia com 73 e pela Alemanha com 72. Para isto ter acontecido, há um antes e um depois cujos limites podem ser fixados em 2006. Nesse ano, a lei da nacionalidade foi alterada no sentido de reforçar o princípio de jus soli (critério de solo) em relação ao de jus sanguinis (critério de consanguinidade), promovendo a naturalização de imigrantes de segunda e terceira geração aqui nascidos e que não eram considerados portugueses. Essa procissão já não vai no adro, mas é daquelas que não têm fim. E um novo capítulo está a ser delineado por estes dias, em que não só o Governo está a ultimar a sua proposta de regulamentação às alterações feitas à lei em 2015 como dois partidos de quadrantes opostos apresentaram projetos de novas mudanças, já discutidos no Parlamento e agora à espera de o serem na respetiva comissão.

Em causa está a necessidade de ir adaptando a letra da lei ao retrato social de um país em mutação e de garantir a equidade tanto dos portugueses emigrados como dos estrangeiros que optaram por viver em Portugal. Se, em 2015, o PSD aprovou que os netos de portugueses nascidos fora do país acedessem à nacionalidade segundo certos requisitos — como provar a sua ligação a Portugal ou o conhecimento da língua —, o projeto agora apresentado vai mais longe, eliminando cabalmente ambas as exigências. Por sua parte, o BE quer que a nacionalidade portuguesa seja automática para quem nasce em território nacional de pais estrangeiros, anulando a condição de que estes tenham residência legal no país há pelo menos cinco anos. Ambos as iniciativas contrastam nos critérios em que se apoiam, sendo que a do PSD enfatiza o jus sanguinis enquanto a do BE acentua o jus soli. E ambos seguirão o seu curso parlamentar, independentemente da regulamentação da lei em curso.

A posição tanto do PSD como do BE não deixa de ter uma base histórica. “Tradicionalmente, os partidos mais à esquerda são mais abertos à integração do estrangeiro por via da naturalização e da atribuição da nacionalidade assente no princípio do solo — porque entendem a cidadania como instrumento de integração. Os partidos mais à direita tendem a ser mais abertos ao reforço das relações com a diáspora nas suas várias gerações”, explica Isabel Estrada Carvalhais, acrescentando que “quase sempre os argumentos são perfeitamente válidos, porque racionais, tanto para um lado como para o outro”. Para esta professora da Universidade do Minho e especialista em migrações, de um ponto de vista ideológico “há que reconhecer que, hoje, o jus solis é mais comum nos discursos progressistas e inclusivos, e o jus sanguinis é um princípio mais exclusivo e elitista”. Porém, mesmo que possam ser estudados isoladamente, os dois princípios estão presentes “quase sempre” lado a lado nas leis dos diferentes Estados, incluindo o português.

“Não há um critério puro”, concorda Gonçalo Matias. As leis de nacionalidade, diz, tendem a ter um misto dos dois elementos, embora possa haver “mais prevalência de um ou de outro”. O que determina tal predominância são em geral os movimentos migratórios e a posição que o país ocupa nesse mapa. Na passagem do século, este professor de Direito da Universidade Católica esteve envolvido no processo de mudanças que acabaram por reforçar o critério de solo na nova lei de 2006. “Havia uma situação insustentável no nosso país, em especial nas grandes cidades, com bolsas de jovens considerados apátridas de facto. Eram filhos e netos de cidadãos das ex-colónias que tinham a nacionalidade dos pais e não a portuguesa. Ou seja, que não se identificavam com a única nacionalidade a que tinham direito”, recorda Gonçalo Matias. A lei corrigiu esta anomalia, mas sem nunca deixar de cruzar os dois princípios.

“Promover na Europa o modelo americano, de jus soli puro, é problemático. Porque o que se passa dentro de cada país tem necessariamente impacto nos restantes países da UE”, opina o especialista. E dá o exemplo da Irlanda: “Houve um caso, que chegou ao Tribunal Europeu, de um casal chinês que conseguiu a nacionalidade irlandesa e europeia para toda a família. Isto motivou toda uma discussão na sociedade e acabou por dar lugar ao referendo de 2010, na sequência do qual o direito de solo como único critério foi abandonado.” Outro exemplo é o dos vistos Gold, que em Espanha e em Portugal garantem a Autorização de Residência por cinco anos, enquanto em Malta, de início, implicavam a atribuição da nacionalidade. “Houve uma pressão enorme de Bruxelas para que a ilha alterasse a lei, por considerá-la excessiva”, diz Matias, notando que apesar de a UE não ter poder de veto no que respeita a decisões nacionais, o seu poder de influência é real e, nesse sentido, “não somos completamente livres de decidir o que entendermos”.

Em 2015, dois terços dos imigrantes a viver nos Estados-membros da OCDE e da UE por mais de dez anos tinham adquirido a nacionalidade do país de acolhimento. Na UE, 62% dos imigrantes com mais de uma década de residência optaram pela naturalização. Em Portugal, o relatório de 2016 do Observatório das Migrações dá conta de um vincado contraste entre a lei de 2006 e o quadro legal anterior: se de 2001 a 2006 houve um total de 14.865 concessões de nacionalidade e a taxa de indeferimento atingiu os 30%, de 2007 a 2014 o número de cidadãos a adquirirem a nacionalidade — o “direito a ter direitos”, como lhe chamou Hannah Arendt, em 1951 — situou-se nos 301.693, sendo indeferidos apenas 5,7% dos processos.

O caminho para se chegar até aqui foi longo e sinuoso. Historicamente, e ao contrário do que se costuma pensar, foi o princípio de jus soli o mais invocado desde o século XVII para efeitos de concessão da nacionalidade em Portugal. “O critério de solo é típico de estados-império, como Portugal, Inglaterra ou França, porque a ideia de solo reforça o seu poder”, comenta Isabel Estrada Carvalhais, autora do estudo “Citizenship Policymaking in Portugal” para o European University Institute, que contextualiza as políticas de nacionalidade que a cada momento foram predominantes no país. O Ato de Nacionalidade 2098, de 1959, decretado por Salazar, expandiu a noção de jus soli entendendo que todos os indivíduos nascidos em território português deviam ser considerados portugueses. Porém, escreve a autora, nesta fase “a atribuição da nacionalidade por jus soli não deve ser equiparada à cidadania, ou seja, ao acesso aos direitos políticos e cívicos”, que eram bem mais difíceis de adquirir em especial para as mulheres e, por meio do Estatuto dos Indígenas, em vigor até 1961, para muitos portugueses originários das colónias.

Só em 1981 é que a lei portuguesa estabelece como princípio predominante o jus sanguinis, no rescaldo de um processo de descolonização que mudou drasticamente o perfil demográfico do país. Houve também, escreve Estrada Carvalhais, a necessidade de criar proximidade com as crianças da diáspora, descendentes da forte emigração dos anos 60, “que de outra forma teriam perdido a conexão cultural” com Portugal. O movimento imigratório dos anos 90 e inícios do século XXI, bem como a urgência por naturalizar os chamados imigrantes de segunda e terceira geração que se encontravam num limbo legal, fez com que, na lei de 2006, o jus sanguinis fosse atenuado, dando de novo relevo aos jus soli e facilitando a obtenção da nacionalidade.

Neste momento, não sendo uniforme, o mapa da Europa é bastante claro na sua tendência. E, na comparação entre a incidência do direito de consanguinidade para descendentes e a do direito de solo para estrangeiros, o primeiro ganha por ampla vantagem. Porém, uma pesquisa do European Union Observatory on Democracy em 33 países mostra que a maioria tem vindo a flexibilizar o quadro legal da nacionalidade, exigindo um tempo mínimo de residência legal no país de acolhimento que varia entre os três e os dez anos. Em paralelo, a agenda de combate ao terrorismo levou a que países como a Áustria, a Bélgica, a Holanda ou o Reino Unido fizessem emendas à lei no sentido de, sob determinadas condições, poder revogar a cidadania. Por cá não se chegou a tanto, mas foi introduzida uma cláusula de segurança que impede a atribuição da nacionalidade a candidatos envolvidos em atividades terroristas.

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