Revolução na Rússia. Abdicação do czar. Advento do sistema liberal. Esta revolução é um facto de terrível significação para o destino das dinastias austro-alemãs. É um exemplo, é um contágio.” Assim escreveu no seu diário, a 16 de março de 1917, João Chagas, ministro português em Paris e feroz defensor da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. Para Chagas, a revolução desse mês (ou, na própria Rússia, graças ao calendário juliano ainda em vigor, de fevereiro) vinha confirmar a justiça da causa intervencionista em Portugal. De acordo com a leitura ideológica do conflito feita por Chagas e outros republicanos radicais, a guerra era necessária, porque representava um passo definitivo no progresso da Humanidade em direção à liberdade, à democracia e, ironicamente, à paz universal. O czar fora o primeiro monarca a cair, por ser o mais despótico de todos, mas outros teriam, em breve, o mesmo destino. Mais do que isso: a revolução russa, ao transformar os antigos súbditos do czar, pouco mais do que autómatos, em cidadãos, viria fortalecer o esforço de guerra daquele país e apressar a queda dos impérios centrais. Fora esta a lição da revolução de 1789 e da levée en masse decretada quatro anos mais tarde pela jovem República Francesa: um povo livre era imbatível. Eram, pois, excelentes as notícias que chegavam de Petrogrado. Cinco dias depois, Chagas, de novo no seu diário, descrevia a proclamação de uma República na Rússia como “o caso não digo do dia mas do nosso tempo”. Entretanto, em Lisboa o único deputado socialista, Costa Júnior, apresentava na Câmara dos Deputados uma saudação ao povo russo, aprovada unanimemente, que elogiava as garantias reconhecidas pelo recém-constituído Governo Provisório (incluindo o direito à greve), a libertação de “todos aqueles que, vítimas da autocracia russa, gemiam nas masmorras imperiais” e, por fim, a garantia dada de que da guerra iria ressurgir a Polónia, “nobre nação há mais de um século escravizada pela Alemanha, pela Áustria e pela autocracia da Rússia”. Podia-se agora admitir abertamente nos círculos intervencionistas o que durante anos se havia negado veementemente: que a Rússia dos czares era, numa luta pela democracia, pela justiça e pelos direitos das pequenas nações, um aliado extremamente embaraçoso.
Do outro lado da barricada política nacional, “O Dia”, jornal monárquico da capital, considerava os eventos em Petrogrado uma vitória da demagogia e duvidava dos benefícios da queda do czar para o esforço de guerra aliado: “Como tudo isto concorrerá para intensificar a guerra por parte da Rússia não o percebemos nós, e até por defeito do nosso acanhado entendimento nos parece exatamente o contrário.” O desenrolar dos acontecimentos demonstraria que nem Chagas, nem Costa Júnior, nem os jornalistas de “O Dia” tinham razão. Se, por um lado, a guerra provocou a derrocada de todos os impérios europeus (alemão, austríaco e otomano), por outro consumiu também a jovem República Russa, incapaz de reformar o país e, simultaneamente, sustentar a beligerância. Os impérios centrais ganharam a guerra na Frente Oriental, infligiram uma derrota terrível à Itália em outubro de 1917 (batalha de Caporetto) e quase fizeram o mesmo na Frente Ocidental em 1918. Porém, na primavera de 1917, pareciam ser positivas as indicações chegadas da Rússia e claras as intenções das novas autoridades: prosseguir com a guerra, se não já de forma a expandir as fronteiras do velho império Romanov (a última vitória diplomática do czar fora precisamente o direito, reconhecido por Paris, de determinar, após a guerra, as fronteiras ocidentais do seu país), então certamente para demonstrar que o conflito nunca teria fim pela simples via militar e que, por isso mesmo, uma solução negociada era necessária.
Falou-se muito de paz nesta fase da guerra. 1916 fora um ano dececionante para todos os beligerantes, com custos humanos e materiais incalculáveis. A Alemanha apostou forte em Verdun contra o exército francês e perdeu. A Grã-Bretanha, detentora, finalmente, de um grande exército continental, desperdiçou-o no Somme. E a ‘Ofensiva Brusilov’, lançada pela Rússia no verão, abalou seriamente o exército austro-húngaro, sendo depois travada e derrotada pelos alemães. Entusiasmada pelo êxito inicial desta operação, a Roménia entrou na guerra do lado dos Aliados, sendo rapidamente esmagada pelos seus inimigos. E a Itália continuava, sem qualquer sucesso, a lançar os seus homens em direção a Trieste. O impasse era total em todas as frentes.
Em dezembro, o chanceler alemão, Bethmann-Hollweg, propôs uma ronda de negociações, sem condições prévias, para explorar a possibilidade de pôr fim ao conflito. Woodrow Wilson, recentemente reeleito, seguiu-lhe o exemplo, em janeiro de 1917, oferecendo-se como mediador e sugerindo a criação de uma nova organização internacional, a Sociedade pela Paz, um primeiro esboço do que se tornaria mais tarde a Sociedade das Nações. Em julho, novamente na Alemanha, seria a vez de os partidos de esquerda e do centro aprovarem, no Reichstag, uma resolução exigindo uma paz sem anexações e indemnizações. Por fim, em agosto, o Papa Bento XV lançaria o seu plano de paz. Uma paz com honra que abrangesse todos os beligerantes era o propósito de Alexander Kerensky, ministro da Guerra e mais tarde primeiro-ministro da República Russa; para o alcançar, precisava que o seu exército se mostrasse imbatível, de forma a manter viva a ideia de que a guerra não tinha solução militar. Uma vez negociado o fim da guerra, poderia o Governo Provisório saído da revolução de março debruçar-se sobre os enormes problemas domésticos com que tinha de lidar. De momento, os sovietes, assembleias de trabalhadores e soldados com os quais o Governo Provisório partilhava de mau grado o poder, pareciam estar de acordo com a estratégia e, como primeiro passo, concordaram com a realização de uma conferência da Segunda Internacional, em Estocolmo, que juntasse delegados dos partidos socialistas europeus (oriundos de países beligerantes e neutros). Em Estocolmo discutir-se-ia uma plataforma de entendimento que cada partido defenderia perante a respetiva opinião pública, forçando os governos a negociar o fim da guerra. Reuniões semelhantes haviam sido realizadas em Zimmerwald (1915) e em Kienthal (1916); a de Estocolmo prometia ser maior e, tendo em conta os insucessos militares do ano anterior e as várias propostas de paz entretanto apresentadas, mais profícua.
As estratégias de Kerensky e da Segunda Internacional foram subvertidas por um golpe inesperado e genial do governo alemão: o transporte de Lenine, líder da fação bolchevique (maioritária) do Partido Social-Democrata russo e feroz opositor da guerra, desde a Suíça até Petrogrado (cidade que mais tarde seria rebatizada em sua honra), através da Alemanha, Suécia e Finlândia, num comboio selado. Em Zimmerwald e Kienthal, Lenine descrevera o conflito como a antecâmara da revolução profetizada por Marx. Assim sendo, o dever de cada socialista digno desse nome não era colaborar com os governos beligerantes ou tentar conduzi-los, pela negociação, à paz: era, antes, canalizar a crescente frustração da população civil e dos soldados para expulsar esses mesmos governos do poder político e a burguesia do poder económico. Lenine saiu desses encontros derrotado pelo número mas convencido de que os seus colegas reformistas, obcecados pelo jogo parlamentar, se haviam tornado, no mínimo, irrelevantes. O governo alemão calculou que ao possibilitar o regresso do líder bolchevique ao seu país natal estaria a dificultar a obra do Governo Provisório; o sucesso da manobra seria maior do que alguma vez se sonhara em Berlim. A chegada de Lenine à Rússia iria transformar o panorama político e minar por completo a jovem República. Lenine insistiu em entregar todo o poder aos sovietes, entidade revolucionária por excelência, condenando o Governo Provisório à irrelevância. O slogan rapidamente propagado pelos bolcheviques — “terra, pão e paz” — subverteu a obra paciente de Kerensky, sobretudo nas fileiras do exército.
Os governos aliados proibiram a ida de delegados dos respetivos partidos socialistas a Estocolmo, inutilizando a conferência. Kerensky, acossado, decidiu-se por uma ofensiva em julho de 1917, jogando o tudo por tudo. Uma demonstração inequívoca de que Petrogrado dispunha ainda de um exército forte e disciplinado convenceria Berlim e Viena da necessidade de negociar o fim da guerra e ajudá-lo-ia a derrotar Lenine. Errou Kerensky; grande parte das unidades nas linhas de combate, sujeitas já à propaganda bolchevique, recusou a ordem de avançar. Semanas depois, tirando partido do caos nas trincheiras russas, partiram os alemães para um ataque que lhes devolveu a esperança na vitória final. Os enormes sucessos agora obtidos na Frente Oriental permitiram ao governo e às autoridades militares ignorarem a já mencionada proposta de paz do Reichstag: porquê pedir a paz quando se estava a ganhar a guerra? Após revoltas em Petrogrado das unidades fiéis aos bolcheviques e uma tentativa de golpe de Estado empreendida pelo general Kornilov, comandante-em-chefe do exército russo, a República Russa estava de rastos. Apenas restava aos seus defensores a esperança de que as eleições para uma Assembleia Constituinte, a 25 de novembro, dessem um novo fôlego ao regime. Foi para impedir que se realizassem que os bolcheviques tomaram o poder a 6 e 7 desse mês, primeiro nas ruas da capital e depois no congresso nacional dos sovietes. Curiosamente, as eleições realizaram-se, participando nelas 44 milhões de eleitores. Foi o maior escrutínio democrático até então realizado em qualquer parte do mundo; mas foi também um gigantesco exercício de futilidade, já que os bolcheviques, derrotados nas urnas, decidiram ignorar o resultado: a legitimidade era-lhes conferida não pelo eleitorado mas antes pela História, na vanguarda da qual afirmavam marchar.
Tal como na Rússia, 1917 foi um ano agitado em Portugal. A partida do Corpo Expedicionário Português (CEP) para os campos de batalha da França, a partir de janeiro, não impediu que se agudizassem as lutas políticas entre as várias fações republicanas. Os governos da “União Sagrada” também não souberam resolver as crescentes dificuldades económicas e sociais. Entre estas (que resultaram na falta de produtos alimentares e combustível, motins populares e greves de toda a espécie e por todo o território nacional), a luta pelo poder e a guerra em que Portugal se via envolvido relegaram a atualidade internacional, incluindo os acontecimentos na Rússia, para segundo plano. O estado de espírito de grande parte da população ficou patente no número, cada vez maior, dos que todos os meses se fizeram à estrada para presenciar, em Fátima, as alegadas aparições da Virgem. Neste contexto, as duas revoluções russas, dada a sua enorme complexidade, foram exploradas politicamente pelos partidos sem serem necessariamente compreendidas. Os sucessos de março e de novembro coincidiram, em Portugal, com períodos de enorme especulação, que acompanharam a queda do primeiro governo da “União Sagrada”, liderado por António José de Almeida (chefe do Partido Evolucionista), e a iminente queda do segundo, liderado por Afonso Costa (chefe do Partido Democrático). Se os monárquicos viam no triunfo de Lenine e Trotsky a confirmação de todos os seus preconceitos sobre regimes republicanos — entendidos simplesmente como uma via rápida para o caos —, já os republicanos não escondiam a sua deceção, reproduzindo nas páginas da sua imprensa os rumores sobre a natureza do governo bolchevique que começavam a circular por todo o mundo e, de tempos em tempos, tentando fazer o ponto da situação.
A 29 de novembro, “A Capital” — cuja atenção estava virada quer para a situação política portuguesa quer para a vida do CEP em França — afirmava que em Petrogrado funcionava “um governo presidido por Lenine e Trotsky, dois cidadãos assalariados pela Alemanha”; nessa cidade, “os maximalistas prendem todas as pessoas bem trajadas que se atrevem a sair à rua”. Concluía o diário republicano: “A Rússia, em suma, chegou a uma dessas históricas ‘anarquias eslavas’ que acabaram sempre pelo triunfo de um ditador, de um Ivan, o Terrível, saído espiritualmente do fermento asiático da raça...” Desencadeado alguns dias depois da publicação deste artigo, o golpe de Estado conduzido por Sidónio Pais iria transformar o panorama político português, reduzindo ainda mais o interesse pelo que se passava na outra ponta da Europa. A construção da “República Nova” sidonista começou com o denegrir a obra da “Velha”, desenterrando escândalos e desencadeando paixões partidárias. O resto do mundo que esperasse enquanto os jornais se deleitavam com a devassa feita à casa, escritório e cofre de Afonso Costa. A hora era de vingança.
O evoluir da situação na Rússia veio dar alento à minoria de antiguerristas que, a partir da extrema-esquerda, vinham em Portugal denunciando a guerra como uma contenda imperialista, na qual a classe trabalhadora europeia estava a ser sacrificada impiedosamente. O Partido Socialista Português (PSP) estava comprometido com a participação portuguesa no conflito, interpretado como a defesa quer da tradição democrática europeia contra o assalto militarista conduzido pela Alemanha quer dos direitos das pequenas nações. Mas o PSP, ultrapassado logo à nascença pelo movimento republicano, para pouco contava na vida política. O mesmo não se podia dizer, porém, da União Operária Nacional (UON), central sindical portuguesa, fundada em 1914, de inspiração anarcossindicalista. Muito mais poderosa do que o PSP, a UON fez a propaganda possível, apesar da censura, contra o esforço de guerra português, explorando as dificuldades económicas enfrentadas pela população para se fortalecer. Afonso Costa, o ‘racha-sindicalistas’, tornara-se ainda antes da guerra um inimigo de eleição, mas o conflito tornara-lo vulnerável. Para a UON, a evolução da situação na Rússia, onde os sovietes disputavam o poder com o Governo Provisório, era uma fonte de inspiração e entusiasmo (mesmo sendo mínimo o papel dos anarquistas russos). Neste sentido, a diplomacia paralela empreendida pelos sovietes, sobretudo a conferência socialista agendada para Estocolmo, foi vista com enorme agrado: quanto mais depressa chegasse a paz, melhor. Enquanto o PSP denunciava a iniciativa como uma manobra alemã, destinada a semear a divisão primeiro no movimento operário internacional (leia-se, no que restava da Segunda Internacional) e depois nos países aliados, a imprensa da UON descrevia Estocolmo como a última oportunidade de devolver a paz à Europa. É na imprensa anarquista, sobretudo na revista “A Sementeira”, que se encontra a cobertura mais sistemática dos acontecimentos russos feita em Portugal.
A partir da revolução de novembro e da vitória dos bolcheviques, esta corrente tornou-se ainda mais destemida, sobretudo após o golpe de Estado sidonista. Abriu-se uma (curta) lua de mel entre as hostes governamentais — menos constantes no seu intervencionismo do que os recém-depostos democráticos de Afonso Costa — e a UON. O jornal sindicalista “A Greve” começou em janeiro a apregoar, de forma aberta, a sua oposição à guerra, aproveitando o fim momentâneo da censura à imprensa: “Nem germanófilos, nem francófilos, nem neutrais disfarçados, nós, como trabalhadores, somos contrários à guerra, porque ela só beneficia a governantes e a capitalistas.” A vitória de Lenine despertou o apetite revolucionário em Portugal.
Ao triunfo bolchevique, em novembro de 1917, seguiu-se o tratado de Brest-Litovsk, que pôs cobro à participação russa na Primeira Guerra Mundial. Para alcançar a paz, Lenine e Trotsky fizeram enormes concessões territoriais aos impérios centrais. Custou-lhes, claro, mas não muito, pois acreditavam que o exemplo dado iria contagiar os exércitos alemão e austro-húngaro, tornando-os uma força revolucionária disposta a virar as armas contra os seus governantes. Enganaram-se; ao tratado seguiu-se a transferência de grande parte do exército alemão para a Frente Ocidental, onde se decidiria na primavera a guerra. Conseguiria a Alemanha, à beira da exaustão e da fome, derrotar os Aliados antes da chegada maciça de soldados norte-americanos? A seguir a uma primeira ofensiva nos campos de batalha do Somme, em março, seguiu-se outra, na Flandres. Assim sendo, os primeiros portugueses a serem afetados diretamente pela revolução de novembro foram os soldados e oficiais do CEP, cuja 2ª Divisão foi pulverizada na batalha de La Lys. Os sobreviventes foram depois empregues em tarefas secundárias, como a preparação de trincheiras e outras posições defensivas — menos arriscadas mas sem dúvida nenhuma desprestigiantes para o país.
Incapaz de resolver os grandes problemas económicos enfrentados por Portugal, a “República Nova” de Sidónio Pais ficou ainda marcada por uma enorme instabilidade política. Duravam pouco os governos, e Sidónio Pais apoiava-se cada vez mais em figuras desconhecidas da opinião pública. Sempre perigosos quando apeados do poder, os democráticos começaram a preparar o contragolpe. Acusavam Sidónio de traidor a soldo de Berlim; a sua destituição era, diziam, necessária para resgatar a honra da nação. Tentaram a sorte em outubro de 1918, mas fracassaram, enchendo-se as prisões de civis e militares comprometidos com o golpe de Estado, alguns deles oficiais regressados de França. No mês seguinte arrancou uma greve geral revolucionária, lançada pela UON. Fora curta a trégua entre Sidónio Pais e a central sindical, ficando 1918 marcado por várias greves de grande dimensão. Uma moção do Conselho Central da UON, em março, afirmou já nada esperar a classe operária do governo; mais tarde recusar-se ia a central sindical a colaborar na eleição do Senado, de cariz corporativo, uma das inovações da “República Nova”. Em troca, o sidonismo não resistiu à tentação de denunciar a existência em Portugal de sovietes, de forma a fortalecer a sua posição, precária, junto da opinião pública, justificando a sua política de força. O anarquista Pinto Quartin, em entrevista a “O Século”, ridicularizou a “alucinação que o ‘perigo russo’ traz apavorados quantos receiam serem as vítimas do extravasamento do ódio recalcado das massas populares”.
Em setembro de 1918, uma série de comícios a nível nacional, destinados a sufragar uma extensa lista de reivindicações sociais, económicas e políticas, foi proibida pelas autoridades; apenas restava à UON, concluíram os seus líderes, uma arma. Prevista para outubro, foi a greve geral revolucionária adiada em função do golpe de Estado do Partido Democrático. Saiu então à rua já finda a guerra, a 18 de novembro; tinha como fim derrubar o governo, mas este defendeu-se; após dois dias de confrontos, a situação estava resolvida a favor de Sidónio Pais. A imprensa republicana aplaudiu a determinação do governo e salientou a fraca adesão do operariado à greve, descrita como uma “aventura criminosa”. Segundo “O Século”, “foi a massa dos trabalhadores honestos que repelou toda a ideia de solidariedade com os dirigentes do movimento”; “A Capital” saudou os lisboetas que não se deixaram intimidar pelos boatos de “subversão total da ordem e [...] distribuição equitativa das riquezas, com sovietes e o resto. Uma Rússia em ponto pequeno!” E se o primeiro jornal acusava a UON de se ter desviado “do caminho reto por onde devia seguir”, o segundo tentava inserir os recentes sucessos num contexto europeu. Governada por Kerensky, combatera a Rússia do lado da liberdade, com os Aliados; sob Lenine, estivera “do lado do despotismo”, fazendo o jogo dos alemães. Vivia agora aquele país “sob a ação do terrorismo que representa a mais opressiva das tiranias”. Os Aliados (Portugal incluído) rejeitavam o bolchevismo, o que não significava que com a guerra se não tivesse aberto uma nova era de progresso social — mas seria a evolução deste pautada pelo respeito pela lei. O operariado português entendia a situação, rejeitando “as manobras subversivas de um espírito bolchevista incipiente”.
Finda a guerra, e assassinado Sidónio Pais em dezembro de 1918, o movimento operário português não cessou de evoluir. A República, transitando agora da guerra para a paz e do sidonismo para a “Nova República Velha”, mas já sem o concurso de Afonso Costa, viu-se a braços com a Monarquia do Norte e revelou-se incapaz de solucionar rapidamente as dificuldades económicas herdadas da guerra. Entretanto, numa Rússia consumida pela guerra civil e sujeita a uma intervenção militar estrangeira, Lenine, em março de 1919, criava a Terceira Internacional, agência através da qual esperava poder exportar o seu modelo revolucionário para o resto do mundo. Num segundo congresso da Internacional, no ano seguinte, seriam anunciadas as 21 Condições para a adesão de partidos políticos à Internacional, transformando-se assim em partidos comunistas. Resolveu-se criar uma Internacional Sindical Vermelha (ISV), de forma a coordenar a ação dos sindicatos que aceitassem integrar a corrente comunista. A crise interna e a situação na Rússia foram lembradas em Lisboa, a 1 de maio de 1919, quando 30 mil trabalhadores se juntaram no alto de Campolide, convocados pela União dos Sindicatos Operários da capital. A moção entregue ao governo reclamava as oito horas de trabalho por dia, a “gradual e progressiva socialização da terra e da indústria” e o regresso à metrópole de “todos os camaradas desterrados em África por questões sociais” (muitos dos quais tinham sido enviados para as colónias após a greve de novembro de 1918). Afirmava ainda a simpatia dos presentes “pelos princípios eminentemente socialistas que a revolução do Oriente está efetivando”, resolvendo protegê-la “com toda a energia contra a intervenção armada e o bloqueio com que os Estados capitalistas pretendem fazer baquear a revolução social”. Estava dado o mote para os próximos anos.
Em setembro de 1919, a UON cedeu o lugar à Confederação Geral do Trabalho (CGT), mais bem organizada e dotada de um jornal, “A Batalha”, de largo alcance. Foi a CGT posta em contacto com a ISV, mas as diferenças ideológicas com Moscovo eram grandes. Filiar-se-ia a CGT antes na Associação Internacional de Trabalhadores, de cariz anarquista. Mas foi precisamente da frustração de alguns sindicalistas com o alegadamente mau aproveitamento dos ensinamentos russos que nasceu o Partido Comunista Português (PCP). Em setembro de 1919, lado a lado com a CGT, surgiu a Federação Maximalista Portuguesa, composta essencialmente por sindicalistas revolucionários desejosos de seguir o guião revolucionário de Lenine, embarcando na via insurrecional de forma a conquistar o poder. O seu jornal, “A Bandeira Vermelha”, prestou grande atenção à política russa, divulgando os escritos das suas principais figuras e atacando ferozmente os governos republicanos portugueses. O seu dirigente mais destacado, Manuel Ribeiro, foi preso em 1920 durante uma greve dos ferroviários, não sobrevivendo a organização ao golpe — mas estavam lançadas as sementes para a transformação da Federação, alguns meses mais tardes, no Partido Comunista Português. Sobre as origens do PCP escreveu César Oliveira que o partido foi “um caso único na história do movimento operário internacional”; surgiu não de um “poderoso movimento de massas” nem de uma cisão no Partido Socialista existente mas antes “da revolução russa e da consciência que um limitado número de militantes sindicais e membros das juventudes sindicalistas tinham sobre as insuficiências da CGT.”
Seriam lentos o desenvolvimento e a homogeneização ideológica do PCP, apesar da colaboração direta da Terceira Internacional nesses processos. Não é difícil entender porquê. Dadas a elevada taxa de analfabetismo em Portugal, que rondava os 70 por cento, a restrição do sufrágio a homens letrados, a fraqueza histórica do Partido Socialista Português e a péssima relação entre o movimento sindicalista e o regime republicano, a maioria do operariado — uma classe ainda pequena em Portugal — vivia de costas viradas para a política partidária, da qual nada esperava já. A mobilização política dos trabalhadores agrícolas do Alentejo mal se tinha iniciado; faltavam os meios para a empreender. E custou aos homens que transitaram do anarquismo para o comunismo a adaptação ao rigor ideológico e às estruturas internacionais (e à disciplina) deste movimento. Em 1922 filiou-se o PCP na Internacional Comunista, enviando uma delegação ao quarto congresso desta. Mas era ainda o PCP uma força marginal na vida política do país quando se realizou o golpe militar de 28 de maio (na véspera, aliás, do seu segundo congresso, em Lisboa), que iria desencadear a primeira grande onda de repressão contra o partido. Por cada passo dado em frente, dois, parecia, eram dados para trás.
*Historiador, professor na National University of Ireland, Maynooth, e autor, entre outros, de “Franco and the Spanish Civil War” e “Salazar — Biografia Política”
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