"Lobo Antunes foi um nome que me habituei a ouvir, desde pequeno, nos telejornais ou nos programas de televisão. Certamente, personificava a imagem de elegância e elevação que qualquer jovem aspirante a médico sonhava vir a ter.
A entrada na Faculdade de Medicina, em Lisboa, longe de casa, trouxe consigo uma serie de novidades. A primeira aula do curso foi dada pelo Professor Lobo Antunes. Confesso que foi um choque. Afinal, o famoso Professor Lobo Antunes, admirado por todos, existia mesmo. Era um Professor de pele, carne e osso.
Da sua primeira aula ficou a lembrança de todas as dimensões não clínicas do médico. Afinal, o grande desafio da medicina estava em abraçar não só a clínica e a ciência, mas também a cultura e a arte, de corpo e alma. Pois cada uma dessas dimensões traz consigo um leque alargado de oportunidades de humanidade, próximidade aos doentes, e mesmo de sermos cidadãos mais completos.
João Lobo Antunes deu-me, nessa altura, a noção do grande caminho que tinha pela frente para tentar tornar-me um aluno digno de tal mestre, de tal escola.
O seu ar elegante, institucional e aparentemente distante intrigou-me. E por isso, na minha rebeldia de jovem de 19 anos, certo dia, bati à porta do seu Gabinete e desafiei-o para um café. Não um café para falar de Medicina, mas um café para falar de tudo aquilo que um médico deveria saber e aprender para além da Medicina. Não tinha real noção do que estava a fazer. Afinal de contas, que mal poderia advir desse convite?
Acho que ele terá achado piado ao miúdo atrevido e com sotaque do norte e, por isso, desse dia em diante os nossos cafés de conversa multiplicaram-se.
O Professor Doutor Lobo Antunes deu lugar ao Professor João. O vulto fez-se homem, e o Professor Catedrático converteu-se num mentor, num Amigo.
Com o professor João aprendi a importância da verdade e da ética em todos os atos da vida. Pelo professor João fui constantemente desafiado a ser um cidadão mais interventivo, correto e verdadeiro.
Ao trabalhar na Assembleia da Faculdade de medicina (órgão político de gestão da Faculdade de Medicina) fiquei maravilhado com o impacto que um médico, homem de cultura e de humanismo, como o Professor João era, podia ter na sociedade.
Chamava-me de “menino” e certo dia, disse-me: “- Menino, tu terás um papel importante a desempenhar na política de saúde! Portugal precisa de médicos com intervenção política e que nunca se esqueçam da sua verdadeira missão: o apoio aos doentes!”
No seguimento dessa conversa, em que o Cirurgião desafiou o jovem médico a enveredar por um caminho desconhecido, a política de saúde, surgiu o projeto de estudar Health Policy and Management no Imperial College de Londres.
O objetivo era colossal mas, vindo de uma família humilde, não tinha dinheiro para pagar tal Mestrado numa das melhores Universidades do Mundo.
A solução estava na arte! João Lobo Antunes foi Curador da minha primeira exposição individual de escultura. Comprou ele próprio a primeira peça. E com base nos donativos decorrentes dessa vernissage, pude partir para Londres.
Escrevemo-nos regularmente. Recordo uma das suas primeiras cartas em que me questionou, no seu tom sarcástico, se já tinha sido feito Sir pela rainha de Inglaterra.
Regressado a Portugal, convidei o “Príncipe João” para jantar lá em casa. O combinado era um jantar cozinhado por alunos para um professor. A responsabilidade era grande...
Nesse jantar, por entre histórias muito interessantes que partilhámos, confessou que a maior pena que tinha era de saber que não teria tempo de nos ver crescer e tornar-nos nos cidadãos que sabia que viríamos a ser.
Com o anúncio da última aula do Professor João fui invadido por uma grande nostalgia. As pessoas acorreram à faculdade de medicina às centenas, só para o ouvir. Eu não tive oportunidade de dar um abraço ao Professor João.
Por isso, decidimos juntar um grupo de estudantes e fazer-lhe uma surpresa bem diferente de qualquer outra presente que, um homem que tinha tudo, tivesse algum dia recebido: uma serenata, ao luar.
Preparámos todos os detalhes no maior dos segredos, tendo a Professora Maria do Céu Machado (esposa do Professor João) como cúmplice.
A noite da serenata foi inesquecível. E o Professor confessou ter vivido um dos momentos mais comoventes da sua vida. Sim! O Professor João comovia-se!
A doença chegou inesperada.
E na sua elegância o Professor João mostrava a supremacia da racionalidade face fraqueza do homem.
Graças a essa capacidade, é essa a imagem que terei sempre dele: o Professor João, mestre, humano, vertical.
E foi assim que nos deixou, vertical! Imaculado e irrepreensível…"