21 agosto 2016 18:00
ALDEIA DE ERMIDA As terras aráveis em socalcos e as vacas a pastar, resultam num... bilhete postal
joão paulo galacho
Escapadinha na serra Amarela, terra de lobos, orquídeas, aldeias perdidas nos cumes e cascatas
21 agosto 2016 18:00
E se você também é daqueles amigos dos lobos faço-lhe o mesmo que fazia a eles: espeto consigo lá em baixo na barragem.”
Ups... Engulo em seco, omito a minha simpatia por aqueles bichos e, diplomaticamente, tento mudar o rumo à conversa.
Afinal só estava intrigado com as razões que levariam aquele homem a perscrutar o horizonte através daqueles potentes binóculos. E em vez de lhe perguntar o que estava a ver, fui-lhe logo perguntar se estava à procura de lobos. Isto quando o que ele fazia era tentar perceber se as suas vacas não teriam sido comidas... por lobos.
Mas o homem, indiferente à minha conversa forçada sobre o tempo, continuou: “Tanta coisa com a merda dos lobos. Ainda se dessem lucro... Mas não, só dão prejuízo. Querem muito essa merda de volta? Então está bem. Fecham-nos num cercado. Eu tenho uma vaca velha, a mancar por aí” - e aqui simula um idoso de bengala, a coxear - “agarro nela, levo-a lá, os gajos dão-me uns euros por ela e alimentam os lobos.”
ISOLADOS NA SERRA
Esta cena passou-se em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, no pequeno miradouro/santuário que antecede a aldeia de Ermida, nos cumes da serra Amarela. E se tinha subido até aqui aluado com a beleza da paisagem, o balde de 'palavras frias' que este homem despejou sobre a minha cabeça trouxe-me de volta à terra.
Mas não posso julgá-lo. Não vivo isolado no cimo da serra, numa povoação onde a única estrada que me traz até aqui é a mesma que me pode levar daqui para o mundo. Nunca deixei de poder ir ao hospital mais próximo só porque a neve tornou a estrada intransitável, nunca faltei à escola para poder ir socorrer uma vaca que caiu numa ravina, nunca deixei de ler o jornal do dia só porque não se vende na minha terra.

E se logo à noite ao jantar me deliciar com um excelente bife, e elogiar a qualidade da carne ao empregado, e ele me explicar: “esse naco que está a comer é daquelas vacas que viu na serra, que só se alimentam de pasto natural”, vou-me lembrar do homem dos binóculos, da crueldade do seu discurso. E não comungando das suas ideias, vou pelo menos entendê-las nesta pessoa, “neste ermo dos mais perfeitos de Portugal” – como Torga lhe chamou.
Afinal estas pessoas cresceram a ouvir amaldiçoar os lobos, vistos muitas vezes como criaturas do diabo, que ainda por cima lhes atacam o gado, o seu bem mais precioso.
MAIS LOBOS, MAIS ANIMAIS ATACADOS
Nestas serranias é ainda possível observar os fojos de Ermida e de Germil – este recentemente recuperado –, as armadilhas seculares, onde dois muros de pedra em V encaminhavam os bichos para um buraco sem saída, onde eram mortos.
Hoje os lobos são uma espécie protegida e têm vindo a aumentar de número, segundo me garantiu Carlos Moreira, presidente da Associação Cultural e Recreativa Péd'Rios, sediada em Germil, aldeia vizinha de Ermida.
À mnercê. Uma vaca sozinha na serra é uma potencial vítima dos lobos
joão paulo galacho
“Praticamente todos os dias há registo de ataques. Eles alimentam-se sobretudo de corços e javalis, as suas presas naturais, mas ultimamente temos encontrado mais carcaças de garranos mortos por lobos. E claro que também atacam as ovelhas, cabras e vacas, se tiverem oportunidade. Os pastores têm de ter muito cuidado. Um animal velho ou aleijado, um vitelo acabado de nascer, são alvos fáceis”, diz.
A PAPELADA LEGAL E OS UIVOS NA NOITE
Quando questionado sobre as indemnizações que os proprietários recebem do Estado, por animais mortos por lobos, Carlos diz-me que sim, que a lei funciona. “Só que é um processo muito burocrático, com muita papelada, que muita gente nem sabe preencher. E antes de pagarem têm vir comprovar a causa da morte e tudo isso demora, leva dias e dias, e muitos desistem e arcam eles com a despesa.”
SERRA AMARELA A estrada única de acesso a Ermida atravessa o habitat dos furtivos lobos
joão paulo galacho
“As aldeias maiores, com mais gente, conseguem organizar-se, e entre meados de maio e meados de setembro há pastores que vigiam os rebanhos na serra. Nos núcleos mais pequenos pastam só nas imediações do casario e, mesmo aí, convém estar atento. Quem arrisca de mais, ou se descuida, sujeita-se a surpresas desagradáveis.
Em vinte e cinco anos a calcorrear a serra só por duas vezes vi lobos. São muito esquivos e não se deixam ver com facilidade. Mas que os há, isso não há dúvida. É rara a noite, sobretudo no inverno, em que não se ouve o uivar dos lobos. É um som que parece que vem das entranhas da serra.”
A ESTRADA DAS CASCATAS
A estrada que me leva de Lourido até Ermida é uma das mais bonitas que já percorri em Portugal. Até chegar à ponte onde se atravessa o ribeiro de Carcerelha, corre a meia encosta, sobranceira ao cavado curso de água. É sinuosa q.b., estreita, e com poucos locais na berma onde se pode – e deve – estacionar. E sublinho o deve porque existem várias cascatas que só são visíveis quando saímos do carro e nos aproximamos a pé do precipício. Incluindo a maior, com mais de uma dezena de metros, que se vê muito lá em baixo.
Junto à ponte, a zona de estacionamento já acomoda mais carros, e é o sítio ideal para chegar à beira do ribeiro de Carcerelha. Logo depois da ponte existem duas quedas de água seguidas, tendo a segunda dado origem a uma profunda piscina natural, ideal para uns mergulhos. Os mais afoitos podem mesmo complementar o banho com uma vigorosa massagem de água nos ombros e na cabeça - basta que nadem até à base da cascata, e se posicionem no local onde a água se despenha.
A montante da ponte também não faltam lagoas e quedas de água acessíveis, duma dimensão mais pequena, o que as torna indicadas para as brincadeiras dos mais novos - desde que vigiados pelo adultos pois, como é normal nestes cursos de água de montanha, não faltam pedras e limos escorregadios.
O MELHOR MIRADOURO
Quem não se contentar com a observação à distância das várias cascatas deste ribeiro, a partir da berma da estrada, pode sempre agendar uma descida em canyoning - existem várias empresas a trabalhar nesta zona. É um percurso que se inicia junto à ponte e, com caudais moderados, é indicado para quem se queira iniciar na modalidade. Isto apesar de contar com oito quedas de água, quadro delas com dez ou mais metros.
BELAS VISTAS A 0,5 km de Ermida, ao aproximar-me a pé do topo da ravina, avisto a lagoa depois da ponte e várias cascatas que se precipitam dos cumes
joão paulo galacho
Da ponte para cima, com Ermida a 1,5 km, já se vê o ribeiro de Carcerelha numa perspetiva diferente. A 1 km da ponte existe um pequeno miradouro onde se pode estacionar, mas logo depois, numa reta com um grande prado à esquerda, saí do carro e aproximei-me da berma da ravina, onde consegui enquadrar a lagoa maior e respetiva cascata.
CAMINHADAS E ORQUÍDEAS
As vacas a pastar nas bermas da estrada, sem vivalma à vista, anunciam a proximidade de Ermida, cujo casario se vê em pleno junto ao pequeno santuário - onde tive o encontro com o homem dos binóculos. Na aldeia existe um pequeno Núcleo Museológico onde se destaca a Estátua Menir de Ermida, do segundo milénio a.C., a mais antiga escultura antropomórfica encontrada no Parque Natural da Peneda Gerês.
PERIGO Conduza com precaução pois ao sair de uma curva... pode estar uma vaca. Já lobos, nem de binóculos é fácil avistá-los
joão paulo galacho
Não deixe o sol pôr-se sem fazer uma caminhada de 2 km até à Branda de Bilhares, para onde parte da população de Ermida, e respetivos animais, se mudavam no verão. O caminho atravessa um bonito bosque onde, em certos sítios, são visíveis troços de um sistema de regadio do período da romanização.
E se fizer este passeio em junho pode sempre procurar orquídeas entre os lameiros da Branda de Bilhares. Neste local florescem três espécies o que faz dele um dos mais ricos do Parque na ocorrência destas flores.