Da oficina Lombo do Ferreiro saem apenas modelos tradicionais, muitos deles recriações históricas, feitas sem pressa e no melhor aço. Carlos Norte ficou surpreendido quando descobriu um vasto mercado para as suas facas e para a sua arte
A cutelaria acompanhou-o desde criança, mas foi preciso crescer para descobrir o “valor” do ofício. Carlos Norte é um apaixonado pela arte de fazer facas, que de brincadeira passou a modelo de negócio. Tradicional, mas ao mesmo tempo tão moderno que a melhor forma de o conhecer é procurá-lo na loja criada na internet
Carlos Norte é a pessoa certa para nos ajudar a distinguir uma navalha Caneças de uma Cabriteira. Ou para nos explicar por que existe um canivete chamado Capa-grilos, e logo depois passar em revista as características da Falcata Lusitana, a arma favorita de Viriato. Na verdade, o artesão sabe tudo sobre facas, e o que possa ainda não conhecer investiga avidamente, com a paixão de quem não se cansa de aprender e o método preciso que fez dele um mestre.
Entre ferro e aço, as suas recreações nascem na oficina Lombo do Ferreiro, ali para os lados de Caldas da Rainha. É preciso anotar Relvas no GPS, cruzar algumas pequenas localidades e estar atento a uma ou outra curva mais apertada, mas, chegando perto, não há como enganar. O espaço térreo forrado a cortiça escura tem atraído gente de muitas paragens - de dentro e fora de Portugal - e embora aparentemente pequeno, guarda lá dentro todos os segredos de uma arte milenar.
Como projeto, Lombo do Ferreiro nasceu em 2008 como uma loja online, dedicada à venda de navalhas e facas artesanais. Mas cresceu para lá das expectativas, até evoluir para o que é descrito na internet como “um grupo de artesãos apaixonados por forja artesanal”, unidos “com o intuito de dar visibilidade à Arte Cuteleira”. A marca homenageia o sítio arqueológico homónimo, situado no concelho de Alcobaça, no Oeste, onde foram identificados vestígios de atividade metalúrgica desde a Idade do Bronze Final; ainda que a sua singularidade resida no facto de aliar aos métodos antigos as novas tecnologias.
DE BRINCADEIRA A NEGÓCIO A SÉRIO
Engenheiro mecânico de formação, para Carlos Norte tudo começou como “uma brincadeira”. O universo não lhe era estranho, já que o pai teve uma fábrica de cutelaria, mas foi depois de crescido que aprendeu o “valor” do ofício. Ainda assim, no início, a atividade era apenas um passatempo que o juntava aos amigos, para fazerem “umas coisas”, sem intenção de negócio.
Um dia surgiu o desafio de mostrarem as suas peças numa exposição em Barcelos. A organização queria que estivesse representado o trabalho de um ferreiro, Carlos aceitou, e surpreendeu-o o interesse que despertaram. Fizeram um primeiro ‘workshop’, organizado para que os participantes fabricassem uma faca em dois dias, e a atividade esgotou rapidamente, sucesso que se foi repetindo, fazendo germinar a ideia de criar uma corporativa virada para a formação.
A empresa, como negócio, veio depois, associada à surpresa que foi descobrir que havia um mercado – e grande – para as facas tradicionais.
“Visitei muitas feiras artesanais em Espanha e França”, recorda Carlos Norte, que foi percebendo como o artigo interessava a muitos colecionadores. “As feiras não são apenas importantes pela questão da divulgação”, conclui, “compensam também bastante financeiramente”.
Fiel ao objetivo de aliar a tecnologia à tradição, para o artesão seguiu-se a necessidade de aprender. “Em busca do “autêntico”, foi “falando com as pessoas”, procurando informação, investigou muito sobre a cutelaria portuguesa.
“Ao contrário dos espanhóis”, que usam muitos recortes e embelezavam muito os seus modelos, “a nossa cutelaria está ligada ao trabalho, mais focada nos aspetos funcionais”, explica, dando o exemplo do canivete de enxertio ou do canivete de marinheiro, “com 4 peças: argola para prender, punção para atar e desatar nós, cunha para desencravar e a característica lâmina sem ponta, com grande poder de corte, embora com menor poder de penetração, para evitar acidentes”.
Apaixonado pela sua arte, estudou as origens. “Em 1950 aqui na zona estavam registados 40 artesãos, que foram absorvidos com a chegada da eletricidade”, conta. Mudou tudo. Nas fábricas, com a popularização da robótica, abandonaram-se alguns materiais, apressou-se o processo de fabrico, perderam-se certas particularidades. “Há canivetes que continuam nos catálogos das fábricas, mas que já não existem para entrega, porque a sua montagem é complexa, demora, e não foi dada formação a quem o possa agora fazer”, explica Carlos Norte.
Por oposição, esse é um dos seus segredos: não ter pressa. Não é a vontade de fazer crescer o negócio que o move - “chegaria ao ponto de, para ter capacidade de resposta, voltar às máquinas e ao conceito de indústria”, de que não gosta. O que o motiva é o gosto por fazer bem, “a magia de bater o aço”, o cheiro dos materiais...
E nem sempre é fácil descobrir os materiais certos. Carlos gosta de trabalhar o aço damasco russo e sublinha como voltou a ser procurado o aço carbono. “É um aço que oxida. Se um chefe o usar para cortar um limão tem de o limpar logo em seguida. Mas a sua qualidade fá-lo durar uma vida”.
A área da restauração, aliás, é uma das que lhe tem trazido muitos clientes. “Os chefes de cozinha gostam de personalizar as suas facas”. Nada de plásticos, sorri o artesão, que depois se queixa da dificuldade que tem para comprar chifres, material típico para fazer os cabos das facas e navalhas. “Nos outros países são vendidos e encontra-se com facilidade, em Portugal é difícil, com exceção das hastes de veado, que são mais fáceis de obter”.
Recentemente, Carlos Norte teve a honra de aparecer no Story Channel. A equipa produtora do programa “Forged in Fire” (Forjado no fogo) visitou a oficina de Relvas para fazer umas filmagens destinadas à promoção da quinta temporada da série, com estreia em outubro, e a referência valeu-lhe “vender 40 falcatas até ao Natal”.
Fabricar armas históricas é uma das áreas de que mais gosta. Agora tem em mãos a encomenda de 50 espadas, réplica das usadas pelos cavaleiros Templários e “ainda nem há quinze dias saíram da oficina umas outras recreações para uma produção do teatro Politeama, em Lisboa”.
Muitas das encomendas chegam online, através da loja, cujo sucesso reflete também um claro investimento da empresa, apostada em ser uma montra aberta para todo o mundo. Quem abrir a página, verá também como a procura fez acrescentar à cutelaria a oferta de acessórios em cortiça.
Mas há outra componente do ofício que agrada a Carlos Norte. Passa os olhos pelas muitas prateleiras da oficina, com modelos de facas variados, novos e velhos, a estrear ou com marcas profundas de uso. Não se despede sem falar da vertente educativa, “que passa por ensinar que uma faca não é uma arma, mas um instrumento que se deve aprender a respeitar”.