Sociedade

A Vitória que derrotou um mioma

Elisa, em Luanda, com Vitória, nascida após tratamento com acetato de ulipristal
Elisa, em Luanda, com Vitória, nascida após tratamento com acetato de ulipristal
Duarte Lima Villas

Medicamento evita a retirada do útero e mantém a possibilidade de engravidar para mulheres com tumores

Em doses elevadas, o medicamento provoca abortos. Em dosagens controladas e utilizado intermitentemente, o acetato de ulipristal pode ajudar uma mulher a engravidar. Pelo menos é o que terá acontecido com Elisa Reis. Aos 14 anos, esta angolana engravidou e teve um rapaz. E, 12 anos depois, quando o desejo de ser mãe voltou e se tornou enorme, foi tão grande quanto os problemas que surgiram quando tentou engravidar. Sobretudo, um mioma de dimensões consideráveis, acompanhado por fortes hemorragias e nenhuma luz ao fim do túnel.

Elisa partiu de Luanda para o Rio de Janeiro à procura de solução mas foi em Lisboa que uma obstetra lhe sugeriu um tratamento experimental. Com 36 anos e quase a desistir, arriscou e, durante um mês, tomou acetato de ulipristal. O mioma diminuiu de tamanho e não voltou a crescer. Elisa engravidou e agora conta a sua história, cheia de entusiasmo pela “bolinha”, a forma carinhosa como chama a filha Vitória. A médica diz que ela está pronta para outra gravidez, mas há uma nova surpresa na família: em breve Elisa será avó.

Um mioma é um tumor não cancerígeno que se desenvolve a partir do tecido muscular liso do útero (miométrio), quando uma única célula se divide repetidamente até criar uma massa distinta dos tecidos próximos. É o tumor que mais afeta as mulheres. Estima-se que cerca de 40% de pessoas do sexo feminino em idade reprodutiva sejam portadoras de miomas e, destas, pelo menos um terço precisa de tratamento devido aos sintomas. A principal terapêutica é a cirurgia para retirada do mioma ou mesmo do útero (histerectomia), mas investigações sobre o acetato de ulipristal indicam que este medicamento pode evitar cerca de 70% deste ato cirúrgico.

Em Portugal, as estimativas apontam para que entre 800 mil e dois milhões de mulheres sofram as consequências de miomas: abortos espontâneos, partos prematuros, dores abdominais e hemorragias. Há três anos, a Autoridade Europeia do Medicamento (EMA) aprovou a introdução do acetato de ulipristal no mercado e, em abril deste ano, estendeu o seu uso como tratamento pré-cirúrgico para o tratamento dos sintomas dos miomas. A indicação prevista é que o comprimido seja tomado diariamente durante um período não superior a três meses, embora o ciclo de tratamento possa ser repetido.

A aprovação foi baseada nos resultados de pesquisas que avaliaram a eficácia e segurança da utilização do medicamento em mulheres com miomas e hemorragias intensas. Há dois anos, os resultados foram apresentados à Sociedade Europeia de Ginecologia, apontando para uma eficácia de cerca de 80% nos casos de perdas de sangue e de à volta de 50% nas situações de diminuição da dimensão dos tumores.

Fazer contas em português

Para difundir o acetato de ulipristal em Portugal e defender o aumento da comparticipação do valor do medicamento dos atuais 37 para o intervalo entre 90 e 100%, foi realizado um estudo que visou a avaliação económica da sua utilização no tratamento dos miomas uterinos. A investigação foi apresentada há cerca de duas semanas num encontro para especialistas na Batalha.

Na altura foi explicado que o acetato de ulipristal terá um efeito direto sobre os miomas ao atuar sobre o eixo hipotálamo/hipófise, inibindo a ovulação e induzindo à cessação das hemorragias. Apesar dos resultados divulgados, a utilização ainda é restrita e, para Daniel Pereira da Silva, presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, “na Medicina, como sempre, a mudança de paradigma é difícil e é natural que exista resistência devido à falta de experiência”. Ao Expresso, o especialista alertou, contudo, para “a necessidade de se aumentar a acessibilidade ao medicamento, o que passará pela redução do preço”.

Ana Paquete, do Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa (CISEP) do ISEG, explicou que o objetivo do estudo apresentado na Batalha foi estimar o impacto orçamental para o Serviço Nacional de Saúde nos dois anos posteriores à comparticipação da utilização do acetato de ulipristal.

Facilitar o acesso

O documento foi entregue à Autoridade Nacional do Medicamento como elemento de apoio ao pedido para aumentar o nível de comparticipação. O estudo do CISEP avaliou o rácio custo/utilidade do medicamento no tratamento de sintomas moderados a graves de miomas uterinos como forma de substituir as cirurgias. Feitas as contas, os investigadores avançam com uma poupança de 4,7 milhões de euros, após dois anos de uso. O Infarmed e o Ministério da Saúde confirmaram ao Expresso a receção da pesquisa e disseram que o pedido está a ser avaliado.

Há que explicar ainda que a utilização do medicamento implica custos para o Estado na sua aquisição e que a economia avançada resulta da redução dos encargos com a redução da produtividade das mulheres que passariam pelas cirurgias, muitas delas têm de ser operadas duas vezes (35%), os custos de Segurança Social e os gastos decorrentes do acompanhamento clínico das doentes. Nos hospitais públicos, as cirurgias são uma fonte de receita, enquanto a aquisição dos medicamentos, uma despesa.

Países como a Alemanha, Inglaterra, Espanha, Suécia ou Bélgica já adotaram a comparticipação a 100%. Mas em Portugal, o diretor do serviço de Ginecologia do Hospital de Santa Maria, o maior do país, defende a necessidade de maior recuo temporal para uma avaliação definitiva. “O acetato de ulipristal é útil para parar hemorragias quando há miomas uterinos e os estudos parecem demonstrar que há um conjunto de mulheres que reagem à medicação, mas cerca de 20% não respondem a este tratamento”, explica Carlos Calhaz Jorge, para quem ainda falta esclarecer o que acontece às mulheres que utilizem o acetato de ulipristal por períodos mais prolongados. Este novo tratamento não está a ser utilizado em Santa Maria, mas o hospital já pondera fazê-lo. “Não pode ser considerado uma panaceia porque há sempre que individualizar cada doente”, conclui o especialista.

Números

70% das cirurgias de retirada de úteros ou de miomas atualmente realizadas, segundo avançam investigações recentes, poderão ser evitadas com o novo medicamento

4,7 milhões de euros é a poupança estimada por um estudo do ISEG ao fim de dois anos de utilização do acetato de ulipristal

40% quase metade das mulheres em idade fértil estima-se que sejam portadoras de miomas uterinos

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CAMartins@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate