A dignidade de saber ler e escrever. E de compreender
Nos últimos dois anos Edna esteve a aprender a ler e a escrever. Em Portugal, cerca de 5,2% da população é analfabeta (dados de 2011)
Luis Barra
Aos 54 anos, Edna decidiu voltar a estudar. Começou a trabalhar aos nove e, por isso, as palavras que poderia ler e escrever ficaram pelo caminho – aprendeu-as na 1ª e 2ª classe mas acabou por esquecê-las, guardando na memória apenas o nome e algumas letras, soltas, desordenadas. Hoje, após dois anos de aulas, já não contribui para as estatísticas oficiais de analfabetos (eram 5,2% em 2011), mas tem pela frente a barreira da iliteracia - tal como muitos portugueses (eram 48% em 2005) que não conseguem compreender totalmente o que leem. Este é o 12ºartigo da série “30 Retratos” que o Expresso está a publicar diariamente. São 30 temas, 30 números e 30 histórias que ilustram o que Portugal é hoje em vésperas de eleições
Quando escreve o nome, não se limita a escrevê-lo. Procura desenhar bem a letra. “Edna Maria de Lurdes Pais Lima.” É com a mesma dedicação de uma criança que cuida das primeiras letras (e com a consciência, do alto dos seus 56 anos, da importância de saber ler e escrever) que o faz. Já o país onde nasceu parece estar escondido num qualquer recanto da memória: sabe dizê-lo, o difícil é transpô-lo para o papel.
“C-a… v? Já me esqueci da letra.”
“Não. B, o… Então, agora Cabo e depois Verde.”
“Ah… Põe aqui para me lembrar.”
A educadora põe e Edna lembra-se. Sorri: Cabo Verde. Escreve e volta a escrever, para melhorar a letra que ficou riscada. No final, na pequena folha A5 ficam gravadas algumas palavras que revelam a sua identidade: o nome, o país onde nasceu, a nacionalidade portuguesa.
Edna é um dos alunos do Centro Cultural e Social da Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, em Loures, que nos últimos dois anos se reuniam das 10h às 12h, duas vezes por semana, para ter aulas de alfabetização. Era uma de duas turmas que juntava guineenses, cabo-verdianos, portugueses e pessoas de etnia cigana num total de sete alunos, todos com níveis de aprendizagem muito diferentes. “A nossa dificuldade era precisamente essa”, diz a assistente social Tatiana Nunes. “Tínhamos alunos que precisavam de começar do início, treinar a caligrafia, outros como a Edna que necessitavam apenas de recordar… E não é fácil encontrar materiais direcionados à alfabetização de adultos, tínhamos que improvisar.”
Apesar das dificuldades, Edna recorda este percurso com carinho. Decidiu percorrê-lo porque os filhos já eram crescidos, não trabalhava e tinha tempo para regressar aos estudos. “Aos poucos fui aprendendo o que tinha esquecido... Já sabia escrever as letras, mas não sabia juntá-las.” Exceto o próprio nome: nunca esqueceu a forma de o passar para o papel. Se tivesse continuado os estudos poderia ter ido ainda mais longe, mas foi obrigada a deixar a escola muito cedo, aos nove anos, rumo a Angola para trabalhar “em casa de senhora”. O sorriso fecha-se quando evoca essas memórias: “A senhora que me levou para Angola disse que me metia na escola, mas não o fez”.
Viajou depois para Portugal, empurrada pelos ventos da revolução de Abril. “Aos 16 vim para aqui e comecei a trabalhar para a patroa. Fui mãe aos 18”, ri-se suavemente. “Trabalhei muito, tive oito filhos, a vida era difícil. Já deixei de trabalhar há muito tempo, mas o que aprendi em Portugal foi muito bom: sei cozinhar, costurar… e agora ler.”
Muito mais que não saber ler ou escrever
Edna parece ser, à primeira vista, um caso raro em Portugal. Não encontramos adultos que não sabem ler e escrever ao virar da esquina. Pouco ou nada ouvimos falar deles, na televisão ou nos discursos políticos. Não os vemos, não os ouvimos, não os encontramos. Mas os números explicam que 5,2% da população portuguesa não sabe ler ou escrever (ou seja, cerca de 550 mil pessoas), segundo revelam os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), baseados no recenseamento de 2011. Desde aí, pouco ou nada se sabe sobre a evolução da população analfabeta em Portugal.
“Os últimos dados que temos dizem respeito aos Censos de 2011”, explica o investigador da Universidade do Minho Licínio Lima, especializado na área de Educação de Adultos, referindo que nos anos seguintes esta taxa não deverá ser muito diferente. “Estes são os indicadores clássicos, mas muito grosseiros, já que apontam apenas para uma média nacional. Nem sempre nos dão, por exemplo, uma variação regional - e temos ainda freguesias em Portugal com taxas acima dos 20%.”
O investigador da Universidade do Minho alerta para o facto de o INE definir o analfabeto como “o indivíduo com dez ou mais anos que não sabe ler nem escrever”, o que, na sua opinião, é um conceito redutor para os países desenvolvidos. Estes 5,2% (na sua maioria idosos, do sexo feminino) aumentariam “consideravelmente” se incluíssemos a “população com baixa escolaridade que não consegue ler uma carta, um aviso das finanças, preencher uma proposta de trabalho e, por isso, é analfabeta do ponto de vista informacional.” E até já há uma palavra para isto: analfabetismo funcional (ou iliteracia).
A realidade é, pois, mais complexa do que parece. Em 2005, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) revelou que 48% dos portugueses não conseguiam perceber o que liam ou tinham dificuldade em entender parte da informação (enquanto a taxa de analfabetismo literal se situava situava entre os 9% e os 5%). E dez anos mais tarde, o relatório da World Literacy Foundation avança que não saber ler, escrever ou ainda interpretar o que se lê vai custar 4,02 mil milhões de dólares (3,5 mil milhões de euros) ao PIB português só este ano. No mundo, existem 765 milhões de pessoas nesta situação, com Portugal a ocupar o 37º lugar da tabela, imediatamente atrás da Grécia.
Luis Barra
O fim do analfabetismo (ou a morte dos idosos)
Há duas formas distintas de olhar para os 5,2% de analfabetos em Portugal, assevera Licínio Lima. Podemos dizer: “nunca na história de Portugal, pouco letrada, tivemos uma taxa tão baixa de analfabetismo.” Ou, por outro lado, podemos ainda perguntar: “como é possível, depois de uma revolução democrática, termos uma taxa de analfabetismo com estas caraterísticas?”.
Ainda que reconheça que Portugal fez muito pelo sistema educativo a partir de 1974, Licínio Lima considera que pouco fez para combater esta realidade. “O que tem feito mais pelo fim do analfabetismo? A morte dos idosos. É lamentável, mas é assim que esta taxa tem vindo a diminuir.” Rui Seguro, presidente da associação O Direito de Aprender, explica. “A educação de adultos em Portugal sempre foi ‘o parente pobre’ da educação, já que era a que recebia menos verbas e também porque as questões de educação se centravam essencialmente na escola (e esta nunca valorizou a educação de adultos).”
Defensores da alfabetização e educação de adultos em Portugal, os dois criticam assim as assimetrias produzidas pelo sistema educativo português, dirigido aos jovens, realçando que Portugal “nunca teve” políticas consistentes neste sentido, apenas intermitentes. “Neste momento não temos uma política para a educação de adultos. Antes tínhamos as Novas Oportunidades, mas não tínhamos uma política para a educação de adultos – esta foi uma boa campanha, mas que prometia muito mais do que aquilo que podia dar”, sublinha o investigador, criticando o facto de Portugal investir apenas em programas de curto prazo, com um carácter de urgência e não em políticas estruturais, recusando-se a construir estruturas no terreno e a contratar pessoas.
“Queremos resultados rapidamente e em força, sem investir dinheiro nisso. Andamos sempre a mudar as políticas. E nem sempre a política muda por mudar o partido no Governo - às vezes muda o Governo do partido e a política também muda”, critica, acrescentando que para os governantes o analfabetismo é uma “perda de tempo”. “Não tem visibilidade estatística, não tem movimentos a lutar por isto. Em Portugal, os grandes aliados dos adultos são os académicos – e quando isto é assim estamos conversados.”
Luis Barra
Não se aprende de um dia para o outro
Têm sido, pois, as associações civis ou ligadas à Igreja que, aqui ou ali, assumem um papel de relevo na alfabetização de adultos (a tentativa de o Estado chamar a si esta responsabilidade, com a criação do Plano Nacional de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos em 1979, acabaria por ser substituída pela aposta no ensino politécnico e superior) – e hoje não é fácil encontrar uma escola que lecione um destes cursos. É sobretudo da vontade de voluntários que vão surgindo projetos nesse sentido. O da Paróquia de Santo António dos Cavaleiros é um deles e Edna é o resultado vivo da sua ação.
Não tem diploma ou certificação (o curso não o permite) que comprove que sabe ler e escrever. Mas Edna não se importa. “O que sei, sei. O que vivi, vivi.” E di-lo com a alegria de quem sente na pele o valor de (re)aprender a ler e a escrever.
Edna lembra-se do grande dia, aquele em que as letras deixaram de ser apenas gatafunhos, em que começou a juntá-las e “a ler frases completas”. Não se aprende a ler e a escrever de um dia para o outro, mas há um dia que - subitamente - parece ser diferente de todos os outros.
“Um dia a Edna chegou toda contente ao pé de mim porque já conseguia ler as frases da Maia na televisão”, recorda Tatiana Nunes. “Pois foi”, ri-se. “E agora até as instruções do autocarro consigo ler: via Padre Cruz, via Odivelas… Mesmo a conta da luz ou da água já consigo ler. Quando vamos viajar e tenho que preencher o papel para ir para Cabo Verde… antes pedia sempre a alguém para preencher, agora já consigo eu.” E remata, com o mesmo sorriso que a acompanhou durante toda a conversa: “Foi por isso que vim fazer este curso.”