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Mitra, o “depósito” de Lisboa onde o Estado Novo fechava os indesejáveis

Mitra, o “depósito” de Lisboa onde o Estado Novo fechava os indesejáveis
Arquivo Nacional/Torre do Tombo

Nos armazéns de uma antiga fábrica de cortiça, em Lisboa, a ditadura prendeu quem queria ‘limpar’ das ruas — pedintes, vadios, aleijados, loucos e prostitutas. Era a cidade dos mal-amados. Rapavam-lhes o cabelo, metiam-lhes uma farda de cotim e um número ao pescoço. Controlados pela PSP, mais de 20 mil adultos e crianças foram ali escondidos do olhar público, muitos por várias décadas. Catarina Maria entrou há 70 anos. E ainda lá está

Naquele dia, os dois irmãos afastaram-se de casa mais do que o costume. A dois quilómetros, já na Graça, pararam num sítio onde a calçada perdera as pedras e a terra fazia covas perfeitas para jogar ao berlinde. Estavam a brincar quando um polícia os chamou. “Acompanhem-me à esquadra!” Carlos e Jorge, com 7 e 5 anos, obedeceram, a medo. Durante hora e meia interrogaram-nos sobre o que faziam. E eles sem nada de monta para dizer, só que escaparam de manhã à escola para brincar, que eram órfãos de mãe e que o pai estivador os esperava. O relato não convenceu o agente, que os confundiu com ladrões de laranjas, meninos pobres que matavam a fome nas quintas de Lisboa.

“Normalmente só andávamos onde toda a gente nos conhecia, mas nesse dia distanciámo-nos, até para lá do quartel de Sapadores. Ali era tudo barracas e os polícias pensaram que a gente também pertencia àquelas pessoas. Disseram-nos: ‘Vocês são uns malandros. Já vão ver para onde vão’ e meteram-nos numa carrinha com dois guardas”, recorda Carlos Silva. Foi há 68 anos mas nunca mais esqueceu o episódio e ainda menos o “pesadelo” onde os enfiaram a seguir.

A carrinha azul escuro, de transporte de presos, conhecida por ‘ramona’, parou no Beato, junto aos portões de ferro de uma antiga fábrica de cortiça, transformada em 1933 no Albergue de Mendicidade de Lisboa. Ao fundo, na fachada do edifício fronteiro, na extremidade de uma alameda ladeada a pavilhões de camaratas, lia-se, em maiúsculas, um nome que se tornou maldito: Mitra.

“Estão aí mais dois!”, disseram aos agentes que controlavam a entrada. E, sem mais, atiraram-nos lá para dentro. “Fiquei parvo. Foi a pior coisinha que vi na minha vida. Era tudo ao monte, desde bebés de poucos meses até velhos muito velhos e havia alguns 100 gatos e cães. As pessoas, coitadas, andavam todas rotas, algumas sem sapatos, sem calças, com as pernas em ferida, sempre a coçar-se. Eram postas lá para morrer. Urinavam em qualquer lado, faziam as necessidades no chão. A calçada estava muito negra, muito suja, cheia de porcaria. Nunca vi tanta miséria”, conta Carlos.

Mal chegaram, os irmãos foram agarrados por dois homens que lhes deram banho com uma escova “que arranhava o corpo”, besuntaram-nos com “um óleo muito malcheiroso” para os desparasitar, raparam-lhes o cabelo para eliminar possíveis piolhos e vestiram-nos com uma farda velha. “Ficámos os dois encostadinhos à parede, agarrados um ao outro a chorar, cheios de medo. E um guarda ainda nos ameaçou: ‘Já estão a chorar muito, daqui a pouco levam.’”

O pai de Carlos e Jorge foi buscá-los várias horas mais tarde, já ao anoitecer. Quando saiu do trabalho e não os encontrou em casa procurou-os, desesperado, pelas ruas do Alto do Pina, onde moravam. Sem informações, acabou por se dirigir a uma esquadra, onde lhe indicaram o destino das crianças. Chegado à Mitra, também ele ficou em choque. “Começou a mandar vir com eles pelo que nos tinham feito e ficou maluco a olhar para aquilo. Era assim que Salazar escondia a miséria que havia na rua, para que não se visse. Agarravam nas pessoas todas e Mitra com elas.”

Carlos recorda o episódio que o marcou para a vida no mesmo local onde tudo aconteceu. Naquele dia saiu com o pai, sem sonhar que quase 70 anos depois haveria de lá voltar. E desta vez para ficar. Em junho deste ano, após um internamento hospitalar de vários meses, sem família nem possibilidade de viver sozinho, foi-lhe sugerido que desse entrada na Mitra. A ideia aterrorizou-o. “Eu disse logo: para a Mitra não vou! Até tremi com medo. Mas asseguraram-me que estava muito diferente. E é verdade.”

Depois de várias transformações, e obras profundas de modernização, o antigo albergue da mendicidade é agora um lar de idosos, gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Mas, mesmo hoje, quem cruza os portões de ferro e circula pela alameda — onde havia parada militar obrigatória —, passa pelos 11 pavilhões outrora apinhados de gente, vislumbra os respiradouros dos calabouços, vê o sino da chamada, as malgas das sopas de pão ou um rolo de cotim das fardas esquecido numa prateleira, ainda sente o peso de décadas de reclusão e tristeza.

“Recolher o refugo das ruas”

Nos anos 30, Portugal vivia mergulhado numa profunda crise económica, provocada pelas ondas de choque da Grande Depressão, que afetou vários sectores, fazendo disparar o desemprego e agravando a miséria e a fome. Desesperadamente em busca de sustento, famílias inteiras rumavam a Lisboa ou mandavam os filhos pequenos para pedir esmola na cidade.

A imprensa da época descrevia, sem tato nem pudor, o “espetáculo simultaneamente repugnante e confrangedor” provocado por uma “horda de vagabundos e maltrapilhos” que então enchiam as ruas. “A falta de trabalho, a paralisação de inúmeras atividades, outrora prósperas, arremessou para a via pública uma nuvem de pequenos mendigos, que se encarniçam sobre os transeuntes, com a fúria ou a pertinácia de parasitas”, escrevia “O Século”, num artigo de 10 de outubro de 1932, referindo-se à “abundância de crianças de todas as idades, esmolando e vadiando” na capital. A notícia terminava com a exigência que a sociedade lisboeta, em protesto, há muito clamava: “Urge pôr termo a semelhante abominação.”

Um ano antes, o decreto-lei 19.687/31 já tinha criminalizado a mendicidade, ordenando a sua “repressão nas ruas e lugares públicos” para imprimir à sociedade “um aspeto de limpeza moral”. Mas os efeitos práticos da legislação foram escassos. Os calabouços do Comando da PSP de Lisboa estavam longe de dar vazão aos magotes de detidos e, na ausência de alternativas, rapidamente vadios de todas as idades, incluindo “inválidos, doentes e dementes”, eram devolvidos à rua, para indignação da opinião pública.

A solução foi encontrada numa fábrica abandonada no Beato, construída nos terrenos do Palácio da Mitra, onde a PSP decide criar um “depósito de mendigos”. Inaugurado a 6 de março de 1933, o albergue é programado para acolher, em camaratas montadas em pavilhões industriais, 700 pessoas, mas rapidamente esgota a sua capacidade. Só no primeiro dia dão entrada, depois de “limpos e despiolhados”, quase 200 e o ritmo mantém-se nos dias seguintes, de tal forma que a diminuição é visível na cidade.

Num artigo publicado logo no final da semana e intitulado “O fim duma vergonha”, o jornal “O Século” saúda a criação da instituição “destinada a recolher o refugo das ruas de Lisboa”. Dois anos depois, um relatório do Fundo de Assistência à Mendicidade já contabilizava entre 1200 e 1300 albergados, garantindo que a capital “estava praticamente limpa de mendigos”. E o número continuou a subir. “Em 1936 já tinha mais de 1700 pessoas lá dentro, de todas as idades e sexos e com diferentes problemas”, diz a historiadora Luísa Colen, que estudou e organizou para a Santa Casa da Misericórdia o extenso arquivo da Mitra.

Com o tempo, o conceito de “limpar as ruas” deixou de se restringir a pedintes, inválidos e “desamparados”. Em 1945, para efeitos de detenção na Mitra, passam a ser equiparados a mendigos os proxenetas, as prostitutas de rua e todos os que praticassem “a depravação” e “vícios contranatura”, desafiando a ordem moral em que assentava o Estado Novo. Como Manuel, de 61 anos, que em 1949 foi detido junto às casas de banho públicas do Rossio e preso no albergue “por suspeita de vadiagem e homossexualidade”.

Aos poucos, sempre à guarda da PSP, foi crescendo dentro dos portões da Mitra a cidade dos indesejáveis. Vestidos com fardas de pano grosso e identificados por um número gravado numa chapa de metal que traziam pendurada ao pescoço, a lembrar um campo de concentração, novos e velhos, homens e mulheres, inválidos e capazes viviam ali fechados, longe dos olhares públicos. “Para poderem sair, tinha que haver alguém que se responsabilizasse por eles e garantisse que não voltavam a pedir esmola na rua. O fiador tinha que pagar uma caução em dinheiro, geralmente no valor de 50 escudos, que era uma quantia muito elevada para a época, tendo em conta que se tratava de pessoas pobres. Mas podia ir até aos 200 escudos”, explica Luísa Colen.

As crianças eram tantas — entre 1939 e 1946, por exemplo, mais de 30% dos entrados tinham menos de 14 anos — que foi necessário abrir lá dentro creche, escola e catequese. Da mesma forma, criaram-se oficinas de alfaiataria, sapataria, serralharia, carpintaria ou latoaria, para aprenderem ofícios e onde trabalhavam “os internados válidos”.

De acordo com o regulamento da Mitra, os detidos só deviam ser ali recolhidos “pelo tempo indispensável a dar-se-lhes o conveniente destino”. Os que estavam aptos a trabalhar eram “compulsoriamente submetidos a alguma ocupação”, nomeadamente enviados para fábricas, campos agrícolas ou obras públicas — como a construção da Estrada Marginal Lisboa-Cascais. Já as raparigas saíam para trabalhar como criadas em casas de família. Como Laurinda, que entrou no albergue com 7 anos e aos 14 deixou a Mitra para servir na residência de um oficial do Governo.

Os outros — idosos, doentes, inválidos, dementes ou deficientes — deveriam ser recambiados para as terras de origem e entregues às famílias, que teriam de responsabilizar-se pelo seu sustento. Mas a maio­ria não tinha quem pudesse ou lhes quisesse valer. Entre 1933 e 1951, mais de um terço dos albergados acabaram por morrer lá dentro. “Para quem não tinha suporte familiar ou sofria de problemas físicos ou mentais, a Mitra foi uma prisão para o resto da vida”, remata a historiadora.

Foi o caso de Manuel Correia — albergado nº 13.735 — que lá morreu há poucos meses. “Filho ilegítimo de pai incógnito”, tinha um atraso cognitivo e foi institucionalizado num lar de crianças, depois de a mãe emigrar e a avó morrer. Aos 18 anos, é forçado a sair por ultrapassar a idade de acolhimento na instituição e termina na rua, onde é apanhado pela PSP, que o leva para a Mitra em março de 1953. E de lá nunca saiu.

Nos últimos anos, passou a colaborar na portaria e a fazer pequenos recados. Todos os dias cruzava o portão para ir até ao café Mar da Vila, nas redondezas, onde entregava um jornal aos donos do estabelecimento. Às quartas-feiras, dia de cozido, retribuíam-lhe o favor com o almoço. Em sua memória, mantêm na vitrina a última edição que lá deixou. Foi a 30 de janeiro de 2024. Passou 71 anos na Mitra. E nem o 25 de Abril o tirou de lá.

A Revolução não chegou ali

A Liberdade tardou a chegar ao albergue. Com a Revolução, abriram-se as prisões políticas, mas o “depósito dos miseráveis” ficou esquecido. “Dentro da Mitra não mudou nada, nada, nada. Ficou tudo como dantes”, admite o antigo agente Rodrigues, ali colocado em 1972, ao serviço da PSP.

Não só os portões não se abriram como as condições lá dentro se degradaram ainda mais, com a saí­da de vários agentes, entretanto colocados noutros serviços e nunca substituídos. Só quatro anos depois de cair a ditadura se avançou para a “reconversão e transformação” da Mitra, após uma visita do então ministro dos Assuntos Sociais. Numa reunião do Conselho de Ministros de 19 de abril de 1978, António Arnault expôs “a situação degradante” em que se encontravam os albergados e a urgência de adotar “medidas imediatas” para dar às instalações “requisitos mínimos” de habitabilidade.

É então que entra a primeira leva de funcionários civis. A auxiliar Goreti Costa, que lá trabalhou 45 anos, não esquece até hoje o que viu quando se apresentou no primeiro dia, juntamente com outras sete funcionárias. “Encontrámos pessoas com bolor em cima do corpo. Quando fomos para lhes dar banho, tivemos de esfregar primeiro a banheira com potassa e lixívia para tirar a gordura que lá estava acumulada. Não havia sanitas, mas buracos no chão, com as listas de páginas amarelas penduradas ao lado num aramezinho para servirem de papel higiénico. Depois do primeiro dia de trabalho, cheguei a casa e fartei-me de chorar”, recorda.

A democracia já levava quatro anos e a Mitra continuava a funcionar como prisão para desvalidos. “O portão estava sempre fechado e a ‘ramona’ não parava de levar gente. Entravam muitas prostitutas, raparigas lindas, muitas com filhos pequeninos. Elas ficavam lá internadas e as crianças eram postas na creche. Cheguei a querer levar uma menina para mim”, conta a antiga auxiliar.

Só no final de 1978, um ano depois de revogada a norma que criminalizava a mendicidade, a Segurança Social assume a tutela da instituição, que progressivamente deixa de estar sob a alçada da PSP. É aí que se inicia um esforço de humanização do espaço. A primeira medida foi a retirada das chapas de metal que os albergados traziam ao pescoço com o número que os identificava. Também o nome Mitra desapareceu, na esperança que levasse com ele o estigma que há décadas carregava e que, durante gerações, chegou a servir de bicho-papão para crianças desobedientes: “Portas-te mal, vais para a Mitra!”

A instituição passa então a chamar-se Centro de Apoio Social de Lisboa (CASL), sendo mais tarde, já no século XXI, transferida para a Santa Casa da Misericórdia. Catarina, de 93 anos, assistiu a todas essas mudanças. Depois da morte de Manuel Correia, passou para ela o estatuto de mais antigo residente do albergue. Está lá há 70 anos, completados em fevereiro.

“Pobre, aleijada e anormal”

É Catarina Maria, de nome completo. Nunca teve apelidos por ser filha de “pais incógnitos”. Em 1954, quando entrou na Mitra, aos 23 anos, juntaram-lhe um número: 14.378. Ainda é a referência que identifica o seu processo. Catarina não fala, diz apenas algumas palavras soltas ou expressões que lhe permitem ter o que não dispensa nos seus dias — o “cigarrinho”, o “cafezinho”. O que se sabe da sua história é uma reconstrução da informação que, ao longo das décadas, foi sendo acrescentada nos “despachos respeitantes ao albergado”. São poucas folhas para tão longa vida.

Alentejana de Silveiras, concelho de Cercal do Alentejo, foi criada por uma suposta tia, que tinha também a seu cargo dois rapazes, alegadamente irmãos de Catarina. Todos nasceram com deficiências. Ela tem os pés deformados, o que nunca lhe permitiu andar. Quando deu entrada na Mitra nem cadeira de rodas tinha — deslocava-se rastejando no chão. “É muito defeituosa”, lê-se no processo original. Abusada por um dos irmãos, engravidou e foi enviada pela junta de freguesia para Lisboa, onde teve o filho em novembro de 1953. O bebé viveria pouco mais de um mês. Morreu a cinco dias do Natal.

“Era de toda a conveniência o internamento desta rapariga num asilo, por ser pobre, aleijada e anormal e, sobretudo, para evitar que amanhã lhe voltem a faltar ao respeito”, pediu então o Instituto Maternal, onde se encontrava após o parto. Catarina foi enviada para a Mitra, enquanto aguardava vaga no Asilo de Marvila. Mas nunca, em lugar nenhum, houve espaço para ela fora dali.

Em 1970, 17 anos depois, tentou-se que saísse do albergue, tendo sido pedido à GNR da terra de origem que lhe procurasse parentes e, caso existissem, apurasse quais eram “as suas condições económicas e morais”. O inquérito enviado pela Mitra e redigido pela Guarda é revelador da desumanidade com que eram tratados estes casos. “Mostrou de jovem tendência para vagabundo? Mostrou, por não ter noção para mais.” “Gostava de trabalhar? Não o podia fazer por ser anormal.” “Doenças que sofreu? Foi sempre anormal.” As respostas foram dadas pela suposta tia, que nunca a visitou e que garantiu que só não lhe prestava auxílio por falta de possibilidades. Dada a situação, a Mitra conclui pela permanência de Catarina no albergue: “Parece-nos um caso sem solução.”

Como Manuel e tantos outros, é lá que Catarina há de morrer. Vive num quarto, que partilha com outra residente, mas nada ali mostra as suas sete décadas de morada na Mitra. Não se veem fotografias nem objetos pessoais, apesar de os poder ter, sem limites. Só duas santinhas e um terço. Já teve uma gata, que estava sempre ao seu colo, mas morreu. Tudo o que juntou nestes anos cabe num armariozinho de pinho com meia dúzia de cabides e espaço de sobra. Na mesa de cabeceira guarda as cartas que recebe, na Páscoa e no Natal, de Maria Augusta, uma ‘amiga’ protetora que a apoia há vários anos. Dentro do envelope vai sempre uma nota de 20 euros, para o café.

Maria Augusta conheceu-a um dia que ia a passar perto da Mitra. Catarina, que estava na sua cadeira de rodas junto ao portão, chamou-a — “Nina, nina [menina]!” — e pediu-lhe um cigarro. Comoveu-se com a sua situação e começou a visitá-la e a levar-lhe doces, até que a pandemia travou os contactos presenciais. Mas as cartas continuam a seguir. “Impressiona-me a vontade que tem de viver, apesar de tudo o que passou. Se fosse eu não faria mais nada do que gemer e queixar-me. Mas a Catarina não. Ela gosta tanto de estar viva”, conta ao Expresso.

Antes de Maria Augusta quem escrevia a Catarina era Mimi, a única mulher a quem chamou mãe. Mas na verdade não lhe era nada. Senhora da alta burguesia lisboeta, Mimi integrava os grupos de benfeitoras que iam à Mitra fazer caridade, levando brinquedos às crianças e lembranças aos crescidos. Visitou-a enquanto a idade deixou, e levava-a sempre em janeiro, no aniversário, a passar uns dias a sua casa, com a família. Há inúmeros registos que o provam no processo de Catarina.

Mimi e Maria Augusta foram as únicas pessoas que a visitaram em 70 anos. Mas dentro da instituição, e na vizinhança, é acarinhada por todos. Diariamente vai ao café do bairro, conduzida por outro utente, e reclama quando demoram a levá-la. Quando lá chega, tem à sua espera um café cheio de açúcar e um cigarro oferecido. “É uma pessoa com muita personalidade, gosta de marcar a posição dela e faz-se entender muito bem com sons e gestos. É muito engraçada e toda a gente a conhece. É quase a nossa ‘mascote’. É a única pessoa que sobra da velha Mitra”, conta Anabela Rodrigues, terapeuta ocupacional que lá trabalha há 23 anos.

Quando Anabela entrou, em 2000, a grande maio­ria dos utentes que encontrou na instituição ainda vinha do tempo do Estado Novo. Como Maria dos Anjos, que ali foi presa em 1959 por ser prostituta e que lá dentro ganhou a alcunha de “Maria dos Polícias” por ‘servir’ os agentes que controlavam a Mitra. Com a confiança conquistada ao longo dos anos, a terapeuta e outros funcionários foram conhecendo as histórias mais negras daquele tempo. Ouviram falar de abusos sexuais, confidenciaram-lhes os castigos físicos que a polícia aplicava com cassetetes, os banhos punitivos com água fria dados durante a noite em plena parada, ou as idas para o calabouço, localizado na cave de um dos pavilhões.

“Era tudo ao monte, de bebés até velhos. As pessoas eram postas lá para morrer. Nunca vi tanta miséria”, conta Carlos Silva, levado para a Mitra aos 7 anos

“São histórias muito pesadas que raramente eram faladas. As pessoas só queriam esquecer e seguir em frente. Mas algumas, por defesa ou por nunca terem conhecido mais nada, até encaravam os castigos que tinham sofrido com alguma naturalidade”, explica Anabela Rodrigues.

A transferência para o “Centro de Trabalho” da Colónia do Pisão, em Sintra, era vista como a pior das punições. A quinta, 500 hectares no meio da serra, num local de difícil acesso e pior clima, foi comprada pela Comissão Administrativa do Albergue da Mitra em 1940 para “pôr a trabalhar mandriões e vadios” e empregar, na agricultura, os seus braços “que nada produziam de útil”. Era para lá que eram transferidos, muitas vezes por tempo indeterminado, os albergados da Mitra que se portavam mal. Chegou a ter 500. Nos relatórios confidenciais da PSP não faltam registos dos castigos naquela colónia de trabalho: “Este internado é uma língua depravada (...) Segue para a Colónia para amansar”, lê-se num. “É punido com cinco dias de calabouço, no Pisão, por transacionar pontas de cigarros dentro das camaratas”, regista outro. “Segue para a colónia. É um louco perigoso. Não deve ser muito contrariado.”

Licínio Fernandes também lá foi parar muitas vezes. Nasceu a 14 de dezembro de 1953, em Viseu. A mãe, “provavelmente oligofrénica” e prostituta, vivia sozinha com os sete filhos. Uma tia ofereceu-se para ficar com Licínio, então com 4 anos, para a ajudar no comércio que tinha em Lisboa, mas como não se adaptou ao trabalho deixou de lhe ter serventia e abandonou-o. Deu entrada na Mitra com essa idade, com o nº 17.371. Cresceu “rebelde, conflituo­so, com baixa autoestima” e sem aproveitamento escolar. Mandaram-no para a tropa mas veio de volta como “incapaz para todo o serviço militar”. Tornou-se colchoeiro.

O seu processo está repleto de entradas na polícia, na Justiça ou simples apontamentos de furtos e agressões praticados no albergue e também fora, durante as incontáveis fugas, a que se seguia uma estadia forçada no Pisão. O álcool acompanhou-o sempre. Teve várias autorizações de saída da Mitra e chegou a ter empregos ocasionais no exterior, mas acabava sempre por voltar. Mais do que uma vez foi à esquadra pedir que o pusessem de novo no albergue.

A história de Licínio foi a que mais impressionou a atual diretora da Mitra, Maria Pego, que entrou em 2011, quando a instituição passa a ser gerida pela Santa Casa da Misericórdia. Na altura, os técnicos fizeram um estudo caso a caso de todos os utentes para identificar os que tinham condições para voltar a ter “uma vida mais integrada na sociedade” e Licínio, então com 58 anos, foi um dos escolhidos. É transferido para outro equipamento da Misericórdia onde podia viver com mais autonomia. Mas a experiência não funcionou. “Há essa tentativa de o reintegrar, mas ele regride no seu comportamento. Deixa de conseguir alimentar-se sozinho, de vestir-se, de tomar banho. Ficou completamente desenquadrado e perdeu todas as referências. Estava cá desde os 4 anos. Nunca tinha conhecido mais nada para além disto. Não foi capaz de viver fora da Mitra e ele próprio pediu para regressar. Acabou por morrer aqui connosco, há quatro anos”, conta.

"Entre 1933 e 1951, mais de um terço dos albergados morreu na Mitra. “Para quem não tinha suporte familiar ou sofria de problemas, era uma prisão para a vida”

Luísa Colen
Historiadora

Mas houve alguns casos de sucesso, ainda que não tenham sido muitos, de antigos utentes, ainda da velha Mitra, que conseguiram ter uma nova vida no exterior. Para os que não tinham hipótese de sair, também quase tudo mudou. A Misericórdia fez uma requalificação profunda do espaço e uma das prioridades foi retirar todos os residentes dos antigos pavilhões fabris, transferindo-os para outro edifício, dentro da Mitra, onde têm quartos personalizados e cuidados 24 horas. Já não há camaratas, nem colchões de palha e os velhos portões de ferro passaram a estar permanentemente abertos. “Os nossos utentes podem sempre sair. E mesmo os que não saem, conseguem ver o que está para além. Queremos que pertençam à comunidade e que a comunidade possa olhar para eles. Isso dá uma enorme sensação de liberdade”, descreve a diretora.

“Para que não fiquem esquecidos” no lar, a direção organiza com frequência passeios no exterior, idas à igreja, a espetáculos e até ao futebol. Catarina está sempre presente. E lá dentro, no jardim, brincam muitas vezes as crianças de um infantário do bairro. Os antigos pavilhões, agora totalmente renovados, são alugados para exposições — como a retrospetiva de Pedro Cabrita Reis — para desfiles, filmagens ou espaços de trabalho de empresas criativas e startups. O antigo albergue abriu-se à cidade.

A única coisa que se mantém do passado é o nome. Quando assumiu a tutela do espaço, em 2011, a Misericórdia recuperou a designação que a Segurança Social tinha eliminado. Voltou a ser Mitra. “Se se mudar só o nome, não muda nada. Por isso, não mudámos o nome, mas a forma como olhamos para estas pessoas, como cuidamos delas e como queremos que tenham a sua dignidade e bem-estar assegurados. Vamos dar um cunho tão positivo que pertencer à Mitra vai tornar-se um motivo de orgulho”, acredita a diretora.

Mas não vai ser fácil. A existência da Mitra — um dos capítulos mais negros e menos conhecidos do Estado Novo — pode ter sido praticamente apagada da memória coletiva, mas o estigma dos miseráveis outrora fechados naquele depósito é tão pesado que manchou para sempre a própria palavra, como uma nódoa. Para a população de Lisboa, mesmo que a maioria não saiba o horror que ali se viveu, “mitra” tornou-se sinónimo de indigente, pessoa reles, desqualificada, inferior e vulgar. E chegou até ao Dicio­nário.

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