“Não tem nenhum senso de decência, senhor Trump?” Em agosto de 2016, decorria a corrida para a presidência norte-americana, era esta a pergunta colocada em título num artigo em destaque no “Politico”. O colunista residente Zachary Karabell, autor de vários livros, alegava então que os dias seguintes mostrariam se Donald Trump tinha ultrapassado a linha invisível da decência, aquela que traçava a fronteira a partir da qual os muitos eleitores que o apoiavam deixariam de ter estômago para aguentar. Referia-se, com elevada dose de inocência, às críticas feitas pelo candidato presidencial aos pais, imigrantes paquistaneses, de um capitão americano do Exército que fora morto em serviço no Iraque em 2004. “A nação parece ter-se tornado muito mais tolerante com discursos ultrajantes. Quanto mais tolerante é outra questão”, questionava.
Karabell acertava no diagnóstico do aumento da tolerância, mas falhava redondamente nos seus limites. A condescendência com a indecência em 2016 já foi enorme (tanta que Trump conseguiria uma vitória eleitoral) e continuou a crescer exponencialmente nos anos que se seguiram. Depois disso, Donald Trump já fez e disse tudo e mais alguma coisa — ofensas, injúrias e impropérios disparados a toda a hora e em todas as direções —, passando sempre alegremente entre os pingos da chuva da indignação coletiva.
Coisas que outrora, noutros tempos e noutros modos, pareceriam simplesmente inconcebíveis e sobretudo inaceitáveis de tão chocantes tornaram-se frequentes, quase banais.
Aqui estamos, pois. No dia em que comecei a escrever este texto, Donald Trump sugeriu que se colocasse a republicana Liz Cheney, que apoiou Kamala, “com uma espingarda de nove canos a disparar sobre ela”. Nos últimos dois anos já afirmou que o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior do Exército, mereceria ser executado; que não será um ditador, “exceto no primeiro dia”; que se não ganhar as eleições “será um banho de sangue”; que os “imigrantes estão a envenenar o sangue do país” e que vai ordenar “deportações em massa”; que os adversários “vivem como vermes” (ecoando ideias e expressões que, como bem sublinhou Anne Applebaum num artigo recente na revista “The Atlantic”, remontam a Hitler, Estaline ou Mussolini). Até já simulou sexo oral com um microfone, porque este estava demasiado baixo. No seu estilo populista e desbragado, quase boçal, muitas vezes ridiculamente infantil, ultrapassou linhas antes tidas como vermelhas e verbalizou coisas que antes seriam indizíveis. Além disso, vários dos seus outrora mais próximos vieram a terreiro alertar para a sua personalidade egocêntrica e para o seu perfil totalitarista, que ficou bem patente na forma como se recusou a aceitar o resultado das eleições e incentivou a insurreição popular em 2021.
Apesar de tudo isto, que muitos consideram indecências fatais, Trump ganhou novamente a Casa Branca e foi o vencedor no voto popular, numas eleições que se mantiveram renhidas até ao último minuto. E, com um Senado republicano e o Supremo conservador, tem campo aberto para as pôr em prática.
Quase tudo parece, hoje, defensável.
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