
Em “O Castelo do Barba-Azul” persiste o Javier Cercas que se reinventou como romancista policial com a mestria de sempre
Em “O Castelo do Barba-Azul” persiste o Javier Cercas que se reinventou como romancista policial com a mestria de sempre
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Antes de publicar “Soldados de Salamina”, em 2001, Javier Cercas era o autor relativamente obscuro de livros marcados pelo experimentalismo e a metaficção. Com o romance em que recupera a memória traumática da Guerra Civil espanhola, cruzando personagens reais e inventadas (além de um célebre cameo de Roberto Bolaño), elevou-se de súbito ao panteão das letras espanholas contemporâneas e nunca mais de lá saiu. Depois, em “Anatomia de um Instante” (2009), encapsulou brilhantemente todas as tensões e contradições do processo de transição de Espanha para a democracia, após a morte de Franco, numa análise meticulosa do golpe de Estado de 1981, quando o hemiciclo foi tomado, aos tiros, por um tenente-coronel da Guardia Civil, e só três deputados permaneceram nos seus lugares, enfrentando as balas. Além de voltar repetidamente nos seus livros a estes dois momentos históricos — a Guerra Civil e a transição democrática —, por serem os elementos fundadores do país que Espanha é hoje, Cercas também explorou de diversas formas o registo da autoficção, culminando no seu livro mais pessoal, “O Monarca das Sombras” (2017), em que narra a vida de um tio-avô falangista e questiona o passado da sua família, ao mesmo tempo que revela o próprio processo de escrita do livro, os seus meandros, as dúvidas e inquietações com que se foi deparando.
O sucesso crítico, acompanhado por um vasto culto de leitores fiéis, induziram uma espécie de cristalização. Havia um estilo Cercas, semificcional, feito de contaminações biográficas, a que toda a gente se habituara e que, de alguma maneira, toda a gente aguardava em cada nova obra. Foi para contrariar essa ideia feita que o escritor resolveu seguir um caminho radicalmente diferente, ao publicar um romance policial que não queria ser mais do que um romance policial, sem excessivas preocupações estilísticas, daqueles que são feitos para serem lidos de um fôlego. Ou seja, era Javier Cercas a mostrar que consegue reinventar-se, ser outra coisa, vestindo a pele de um narrador talvez mais previsível, mas com a mestria de sempre.
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