O sujeito sabe que deseja, mas não sabe o que deseja. O desejo é a forma de existência de um sujeito que é em si mesmo falta
Tornemos ao espanto. Se virmos bem, ele é feito de visitação e de surpresa. Espantamo-nos pela manifestação de alguma coisa que nos visita, mas não como mera ocorrência: essa surpreende-nos, tem uma luminosidade que nos atinge, que nos apanha desprevenidos, que (misteriosamente, como dizia Aristóteles) estabelece connosco um encontro. Entre o mundo como aporia e o mundo como encontro, dá-se a surpresa. É como se se abrisse uma entrada até então desconhecida, e o que aparece tivesse o poder de reconfigurar a direção habitual das coisas, implicando o nosso olhar. Na experiência do espanto somos atravessados, a surpresa atravessa-nos, pois não se trata tanto de um evento surpreendente quanto do facto de se ser surpreendido. Disso fala, por exemplo, um texto de Adília Lopes. Diz o seguinte: “Lembro-me com gosto do laboratório de Química do Liceu Pedro Nunes. Lembro-me da reação do sódio com a água, liberta uma luz amarela. A reação do potássio com a água liberta uma luz violeta. Tinha um colega, o Pinto, que dizia: ‘Isto para a Maria José é melhor do que ir ao cinema’.” A surpresa é isso. Não é apenas o registo de uma reação que se dá exteriormente. É uma revelação que deflagra em nós uma espécie de luz. Inesperadamente uma coisa surge como nunca antes a havíamos visto. Assim a lemos, pelo menos, alcançando um estádio de consciência novo, não só sobre o agente da revelação, mas também acerca de nós mesmos. O espanto constitui uma rutura com o quadro ordinário e rotineiro em que funcionámos, e face ao qual nos tornámos indiferentes. Basta-nos, contudo, esse instante de graça para intuirmos a possibilidade de uma relação mais profunda e prodigiosa com o real.
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