O verão de 1969 foi quente em Nova Iorque. A cidade e o estado a que dá nome assistiram a manifestações que traduziam a sede de mudança na sociedade, agora que entrava na reta final a década que tinha assistido a lutas pela paz e pelos direitos civis. Entre os dias 28 de junho e 3 de julho os motins junto ao bar Stonewall (no Greenwich Village) tinham sido a faísca que depois deu visibilidade à luta pelos direitos da comunidade LGBT+, que seria celebrada um ano depois, na mesma cidade, assim como em Los Angeles e Boston, com as primeiras marchas “pride”.
Em agosto, entre os dias 15 e 19, a menos de duas centenas de quilómetros de Nova Iorque, uma quinta em Bethel acolheu o Festival de Woodstock, que se transformaria (apesar de eventos pré-existentes) no paradigma de uma nova forma de celebrar música e liberdade. A ideia dos três dias de paz e música para uma plateia de mais de 400 mil pessoas acabou mitificada pelo filme de Michael Waldeigh que fixou na memória coletiva as faces mais celebrativas e idílicas do momento. Mas o verão nova-iorquino de 1969 não terminou social e culturalmente em Woodstock.
Iniciado semanas antes, a 29 de junho, e com programação que se estendeu até 24 de agosto – ou seja, em simultâneo com os motins de Stonewall e os concertos de Woodstock – um parque em pleno Harlem (em Manhattan) acolheu, durante seis fins de semana, um cartaz pelo qual passaram nomes como os de Nina Simone, Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, Mahalia Jackson, os Fifth Dimension, Max Roach, B.B. King ou Gladys Knight & The Pips, entre muitos mais. Atuaram para uma multidão que, somando os dias do festival, terá alcançado os 300 mil espectadores... Ali se comungava, através da música, uma celebração da cultura afro-americana, envolvendo também expressões da comunidade latina (e vale a pena sublinhar essa outra história social igualmente feita no próprio Harlem). Como sinais dos tempos, o momento servia igualmente para dar voz a ecos de anos (recentes) de lutas pelos direitos civis e, de resto, havia uma tensão no ar...
Mas apesar das relações de proximidade com Woodstock, tanto no tempo, como no espaço, e sobretudo na forma de usar a música e o palco para falar de comportamentos, de política e da vida em sociedade, o Harlem Cultural Festival acabou praticamente esquecido. Até que, das horas de filmagens de uma equipa de televisão que captou quase todos os concertos, acrescentando novas entrevistas a quem esteve em ambos os lados do palco e juntando uma contextualização destes factos no quadro do mapa político e social de então, eis que nasce “Summer of Soul (... ou Quando a Revolução não pôde ser Televisionada)”, de Amir “Questlove” Thompson (dos The Roots e da banda do programa de Jimmy Fallon). E este é um documentário que não só fixa como enquadra a memória de um festival que, mais de meio século depois, encontra o merecido lugar na história da música popular e da própria sociedade norte-americana.
Tudo aconteceu no Mt. Morris Park, que hoje é conhecido como Mount Gravey Park, onde, em finais de junho de 1969, foi montado um palco com um design de tão marcada identidade que podia ter nascido para um grande programa de televisão da época (e que, convenhamos, ajuda a vincar a continuidade no espaço de imagens captadas ao longo de várias semanas). A irregularidade do terreno do parque ajudou a dar ao local as características de um auditório, que fazia das copas das árvores os camarotes invariavelmente concorridos. Tudo isto sob a vigilância dos Black Panthers... E não houve incidentes. Sob plataformas, uma equipa de televisão, chefiada pelo produtor Hal Tunchin, ia captando imagens dos concertos, só não estando ali presentes a 24 de agosto porque, nesse fim de semana, foram chamados para gravar o episódio-piloto da “Rua Sésamo”.
As imagens captadas pela equipa de Hal Tunchin são agora a principal matéria prima de um documentário que alia a essa memória – tratada num registo “found footage” - o olhar crítico de Questlove, que acrescenta mais planos de leitura (e reflexão). Num deles convida espectadores do festival e alguns músicos que ali atuaram a (re)ver as imagens e comentar, a meio século de distância, o que ali aconteceu. Das pequenas mentiras então contadas aos pais para duas amigas poderem ir ao festival à estranheza causada pelas presenças de um baterista branco e de uma trompetista na banda de Sly Stone, as memórias faladas acrescentam a construção de um discurso sobre o contexto social e cultural no qual estas atuações ocorreram. Um contexto que vinca igualmente a memória política de lutas em curso na década que vira morrer Malcolm X, Martin Luther King Jr. e os irmãos John e Robert Kennedy. Essa dimensão fica sublinhada nas palavras de Jesse Jackson, que falou naquele palco em 1969 e que, em 1984, seria o primeiro afro-americano a concorrer, à escala nacional, a uma nomeação pelo Partido Democrático para a presidência (os casos anteriores foram de candidatos que se tinham apresentado apenas um número reduzido de estados). Esta face política do filme (e do festival) passa ora pelo fulgor da atuação de Nina Simone ou pela presença em palco do “mayor” da cidade, John Lindsay, que é apresentado por Tony Lawrence, da organização, como o “blue-eyed soul brother” da comunidade afro-americana.
Realizado por Mel Stuart e estreado em 1973, o filme “Wattstax” documenta um outro festival realizado em Los Angeles em 72, assinalando por um lado a memória dos motins de 1965 em Watts e opor outro levando a um palco a celebração de formas musicais nascidas da cultura afro-americana através de nomes como os de Isaac Hayes, Rufus e Clara Tomas ou os Bar-Kays, referências do catálogo da Stax Records, editora de Memphis (no Tennessee). Realizado três anos antes, o Harlem Cultural Festival que o filme de Questlove agora recorda, mostra uma ainda mais vasta abertura a géneros e dá à música uma voz maior na construção da própria história. Da soul ao jazz, do funk aos sons afro-latinos, o cardápio traduzia diversidade na representação dos caminhos possíveis sob histórias partilhadas entre heranças comuns. Do sentido de comunhão dos mundos e experiências que se juntaram naquele parque nasce o retrato dos sinais dos tempos que, no jogo entre memórias e novas reflexões, agora encontramos em “Summer of Soul” filme onde, a dada altura, o próprio Questlove dá por si a criar um momento em que vozes de origens diferentes (umas no palco, outras fora dele) se cruzam como quem constrói uma canção usando samples. O realizador é músico, nunca é demais lembrar...
É certo que as mitologias são sempre mais cativantes do que as histórias reais. E a verdade é que, apesar do discurso que acompanhou a chegada do filme, algumas destas imagens passaram na televisão pouco depois do festival, em especiais transmitidos pela NBC e CBS. De resto foi da consulta a publicações com as programações de televisão da época que Joe Lauro, dos Historic Film Archives, descobriu a existência destas imagens (há muito fechadas de facto em bobinas), tendo-se depois juntado aos realizadores Morgan Neville e Robert Gordon para, em conjunto, tentarem criar um documentário sobre este mesmo festival, facto que é contado num texto que a Billboard publicou em 2006 e num outro que a Smithsonian Magazine apresentou em 2007. O documentário então imaginado acabou por não se concretizar, tal como falhara em tempos um projeto do próprio Hal Tunchin. Pelo que a Questlove e equipa devemos o facto de finalmente ter sido levada a bom porto esta ideia. Mesmo assim convém não ignorar que esta não é a primeira utilização pública destas imagens de arquivo. Em 2005 o disco (2CD + DVD) “The Soul of Nina Simone” já incluía excertos da sua atuação no festival ao som de “Revolution", "Four Woman", "Ain't Got No" e "Young, Gifted and Black". E no YouTube encontramos, há já alguns anos, alguns pedaços deste arquivo... Nada disto ofusca, naturalmente, o feito cinematográfico que “Summer of Soul” agora nos proporciona. O filme passa dia 20 na abertura do Indie Lisboa e está disponível na plataforma Disney +.