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O teste à “solidez do estado democrático de direito” e “a antítese raivosa do lulopetismo”: a reação dos jornais brasileiros

O teste à “solidez do estado democrático de direito” e “a antítese raivosa do lulopetismo”: a reação dos jornais brasileiros
ADRIANO MACHADO/ Reuters

E agora? Sem a pergunta ser literalmente colocada nos editoriais dos principais meios de comunicação brasileiros, a questão é lançada aos leitores: E agora? No país que acordou esta segunda-feira para uma nova página da história que ninguém parece conseguir antecipar ao certo no que vai dar, fala-se de um discurso de vitória em que Bolsonaro “amainou a retórica agressiva”, mas sobretudo dos desafios e do que o novo líder precisa de fazer para se mostrar à “altura do mandato recebido”

O teste à “solidez do estado democrático de direito” e “a antítese raivosa do lulopetismo”: a reação dos jornais brasileiros

Marta Gonçalves

Coordenadora de Multimédia

“1 - Reequilibrar o Orçamento com controle dos gastos obrigatório
2 - Conter a escalada de despesas com aposentadorias e pensões
3 - Eliminar privilégios de servidores; ajustar teto salarial
4 - Simplificar a tributação sobre bens; rever incentivos tributários
5 - Elevar a taxação direta sobre as rendas mais elevadas
6 - Vender estatais e ampliar concessões ao sector privado
...”

No total são 15 pontos, uma espécie de lista de tarefas enumerada pelo jornal “A Folha de São Paulo” e dirigidas ao recém eleito Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Chamam-lhe a “agenda virutosa”. É nesta perspetiva de futuro que os editoriais brasileiros desta segunda-feira apostam.

“Ou o presidente eleito decifra a enormidade dos desafios que terá pela frente, ou será devorado, escreve a mesma publicação; “é missão adicional do novo Governo fazer um trabalho competente na formulação de propostas”, sublinha “O Globo”; “o problema é que ninguém sabe quais são as ideias do presidente eleito, admitindo-se que ele as tem”, acrescenta, por fim, o “Estadão”.

No entanto, há mais do que futuro nas páginas dos jornais brasileiros, que assumem a dúvida no que está para vir ao mesmo tempo que tentam explicar o que acabou de acontecer. Como é que Bolsonaro chegou à liderança de um país quando até há pouco tempo o simples lançar dessa ideia seria “provavelmente ridicularizado” - tal como escreve o “Estadão” no editorial “Salto no escuro”, publicado esta segunda-feira pela manhã. A explicação “mais óbvia” é que se tratou de um voto de contestação, uma “antítese raivosa do lulopetismo” e a “ânsia de repudiar tudo o que o PT e Lula da Silva representam”.

“Infelizmente para o Brasil, quem se apresentou para essa missão com sucesso não foi a oposição tradicional, organizada e responsável, e sim um obscuro parlamentar do baixo clero, portador de um discurso raivoso e vazio, que apelou aos sentimentos primários de uma parte significativa da sociedade exausta de tanto lulopetismo – e nisso foi muito bem-sucedido”, descreve o “Estadão”, considerando que este fez campanha pelas polémicas declarações que foi proferindo. No entanto, “Jair Bolsonaro terá de reconhecer que há uma grande diferença entre fazer campanha eleitoral e administrar um país”. E “o problema é que ninguém sabe quais são as ideias do presidente eleito, admitindo-se que ele as tem”.

STRINGER

Sobre as ideias do Presidente, a “Folha de São Paulo” é perentória: “Quase tudo o que Bolsonaro propõe colide com o que esta Folha defende”. E em seguida enumera: mudanças da legislação do porte de armas, maiores restrições à lei do aborto, consumo de droga e flexibilização das leis ambientais, a censura dos professores nas salas de aula e ainda a diminuição do controlo de conduta dos “policiais que matam”. Todas estas temáticas, garante o jornal em “Bolsanaro e a esfinge, “continuarão a ser objeto de crítica nestas páginas”.

Os jornais sublinham que, no discurso de vitória, Bolsonaro “amainou a retórica agressiva” e dirigiu-se “a todos os brasileiros”. Elogiou a Constituição (“Faço de vocês minhas testemunhas de que esse Governo será defensor da Constituição”, disse), celebrou a Democracia e liberdades.

Reconheça-se o gesto, mas sem deixar de apontar que, durante 27 anos como deputado e ao longo desta eleição, Bolsonaro deu inúmeros sinais de que ignora rudimentos da convivência democrática, como o respeito às instituições do Estado, a proteção das minorias e a transigência com diferentes pontos de vista”, critica o jornal paulista no texto “A Constituição acima de todos”. “Também demonstrou desconhecer o papel da imprensa livre nas sociedades modernas”, sublinha ainda o editorial, recordando um episódio em que Bolsonaro processou três jornalistas da “Folha”. “Na melhor das hipóteses, confunde jornalismo independente e crítico com atuação partidária.”

Este é um novo ciclo na democracia do Brasil: mais de duas décadas depois, há um Governo assumidamente de direita (13 anos de poder petista, que haviam sido antecedidos por mais oito anos de liderança dos sociais-democratas PSDB).

“A vitória de Jair Bolsonaro, na oitava eleição presidencial direta depois da redemocratização, é o desfecho de uma campanha intensa, com vários ingredientes de elevada combustão. Por isso mesmo, foi um pleito que serviu para atestar a solidez do estado democrático de direito. E consolidá-lo ainda mais”, considera o jornal “O Globo” em “A hora do rodízio democrático no poder.

O papel do PT

Há muito que o PT não sabia o que era ser oposição. Mas agora vai sê-lo. E, defende o “Estadão”, quando o Presidente é eleito “sem ter a mais remota ideia do que ele fará quando estiver na cadeira presidencial”, a urgência de um opositor forte faz-se sentir. “Resta esperar que as forças políticas tradicionais esqueçam suas divergências e se organizem para reduzir os possíveis danos dessa aventura que só está começando”, pode ler-se.

NACHO DOCE/ Reuters

“Cabe a ela [à oposição], sem abrir mão de seu papel, entender que logo no início da gestão de Bolsonaro estarão em jogo questões das quais depende o futuro dos brasileiros, mais especificamente, de forma imediata, dos 12,7 milhões de desempregados e seus dependentes, cujo destino está ligado à reativação efetiva da economia. Não qualquer bolha induzida por gastos públicos. Os desempregados não podem ser reféns da luta político-partidária e ideológica”, acrescenta “O Globo”.

O partido de Lula da Silva “não pode agir como se estivesse em uma guerra” e apenas com o intuito de destruir o adversário: “Como principal partido de oposição, terá de repensar sua atuação se quiser sobreviver à travessia do deserto.”

E o editorial “Salto no escuro” do “Estadão” termina com uma sugestão: “Um bom começo seria passar a atuar tendo como objetivo primordial ajudar o País, e não, como de hábito, atender apenas aos interesses do partido”.

Bolsonaro precisará assimilar as lições que nunca aprendeu e mostrar-se à altura do mandato recebido. Que faça um bom governo”, conclui a “Folha”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

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