Ventura sugere “campanha dos lábios negros pelo luto” em dia de protesto em Trás-os-Montes
José Fernandes
Em vez de vermelho, “os meus lábios seriam pintados de preto pelo estado da nação”, disse o líder do Chega em Bragança, apontando a falta de condições na saúde, o abandono dos idosos, o esquecimento do interior e a falta de justiça. Numa ação de campanha, cujo formato não pretende alterar, André Ventura teve manifestantes à sua espera em Vila Real e antecipou para o dia 24 “um claríssimo sinal vermelho para o Governo”, que classificou como “pior do que o de Sócrates”
“- Aquela bandeira é de que partido? - Então, aquela bandeira é do LGBT.”
Dois agentes da PSP conversavam enquanto se começava a reunir a cerca de meia centena de pessoas que protestou este sábado contra a presença de André Ventura no Teatro Municipal de Vila Real. Um outro tentava demover os primeiros que chegavam: “Estamos num estado de confinamento que nos obriga a estar em casa, exceto em ações de campanha eleitoral. Agora, vocês estão numa ação anti, não se enquadra nos termos. Se fossem a favor...”. “Eu li o decreto-lei e não o interpretei assim”, respondeu-lhe um manifestante.
A aglomeração e o protesto acabaram mesmo por acontecer, com palavras de ordem como “Fascistas, fascistas, chegou a vossa hora! Os imigrantes ficam e vocês vão embora!”. As três viaturas que transportam a comitiva do candidato presidencial e líder do Chega dirigiram-se para a porta traseira do teatro, onde André Ventura ia ser entrevistado pela associação Youth Academy, não tendo havido qualquer contacto direto com os manifestantes. Lá dentro, Ventura falou durante mais de uma hora, respondendo a perguntas de um painel de jovens. Um deles ofereceu-lhe uma Constituição de bolso, mimetizando um gesto do candidato comunista, João Ferreira, que na véspera respondera de forma idêntica à “má educação desbragada” de Ventura.
No exterior do teatro, Graça Nazaré, de 67 anos, confessa-se “muito assustada”, “não porque ele seja um fascista do tempo da outra senhora, mas porque é um fascista dos novos tempos”. “O autoritarismo toma formas diferentes conforme as épocas e ele pertence a esta época. O grito final é esta espécie de desbragar de ideias que nem sequer são muito novas: aproveitam algumas do passado e tomam algumas formas do presente. E isso é uma verdadeira desgraça para qualquer povo”, sentencia ao Expresso.
Graça já fez “várias coisas” na vida, trabalhou na produção de teatro e foi imigrante em França. Agora é pensionista, pelo que pertence a uma franja da população mencionada diariamente por Ventura em campanha. “Ele não está do lado de ninguém. Tudo o que quer fazer a nível económico só é benéfico para os que têm muito dinheiro, nunca para a maioria da população”, sublinha. Ela, que é “do tempo da ditadura fascista”, lembra-se “muito bem de como a maioria da população vivia”, apesar de na altura “ainda ser jovem”, conta. “Os meus pais tinham dinheiro para me levar ao médico, mas a maioria das pessoas não tinha dinheiro para ir ao médico quando estava doente”, recorda, antes de apelar: “É preciso que toda a gente tome consciência disso e arranje maneira de lutar”.
Com 17 anos, o estudante Elber Marques recusa-se a apoiar “um candidato que incentiva o racismo, a xenofobia e o ódio”, alguém que descreve como “completamente antidemocrático”. E justifica a sua presença naquele protesto: “Já se passaram quase 47 anos desde o 25 de Abril e não queremos voltar a essa época, quando havia censura e discriminação”.
Maria Pinheiro, de 27 anos, foi ali manifestar o seu “repúdio à atividade política deste candidato, que vem falar de problemáticas complexas com soluções simplistas para encher o olho a simpatizantes e eventuais votantes, um candidato que segrega os portugueses entre portugueses de bem e portugueses que não são de bem, que humilha comunidades, nomeadamente comunidades que estão numa posição social mais fragilizada”. A assistente social diz que “quase houve uma tentativa de boicote à nossa atividade”. “Tudo bem que estamos em confinamento, mas se as atividades políticas não estão suspensas, o contraditório, desde que organizado e com regras, como está a acontecer aqui, também não deve ser censurado”, refere.
Em declarações aos jornalistas, após a entrevista no teatro, Ventura lembrou que horas antes o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares, denunciara que há doentes transportados para os hospitais que passam “horas nas macas das ambulâncias”. Um paciente acabou mesmo por morrer dentro de uma ambulância sem dar entrada na unidade hospitalar. O candidato confessou-se “chocado” com estas notícias, que, segundo ele, “mostram que afinal o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que estava tão fortalecido e robusto, é um mito, tem pés de barro e está a cair aos bocados”. “E tudo isto com um Governo que dizia ter reforçado imenso o SNS. Era isto que devíamos estar a discutir hoje: se o SNS está ou não a dar as respostas aos portugueses”, apelou.
E naquele que foi o pior dia da pandemia no país, com 10.947 novos casos e 166 mortes associadas à covid-19, não seria de desmarcar almoços e jantares-comício? Não teme Ventura que esses eventos de campanha possam contribuir para o aumento do número de infetados? “A Comissão Nacional de Eleições já se pronunciou sobre isso”, disse, lembrando ainda o entendimento de que “já não era possível adiar as eleições”. “Portanto, das duas, uma: ou não há campanha absolutamente nenhuma ou ela tem de existir. Temos feito um esforço junto da Direção-Geral da Saúde, com todas as regras cumpridas, de máscara, de separação. Mudámos completamente o modelo da campanha. Estamos a cumprir as regras todas”, insistiu.
Por isso, “em vez de nos preocuparmos com os auditórios do Chega e com a campanha, devíamos perguntar aos ministros e ao Governo porque é que permitem que às não sei quantas da manhã haja uma fila de ambulâncias, onde os doentes não têm lugar lá dentro. Isso é que era importante”, sugeriu. “Devíamos estar a discutir o falhanço deste Governo em matéria de saúde e o falhanço de um Presidente que permitiu que isto acontecesse”, reforçou.
Ventura também falou de corrupção e disse não ter dúvidas de que “este Governo nesse aspeto é o pior que Portugal já teve, é o pior inimigo da luta contra a corrupção, é aquele que mais a tem permitido”. “Quando nós esperávamos que depois de José Sócrates nunca viesse nada pior, eu hoje penso termos muitos elementos que nos permitem afirmar que este Governo é pior do que o de José Sócrates”, classificou.
Quanto aos manifestantes, “têm todo o direito de se manifestar por todo o país, andem por onde andarem”, declarou. E arrumou o assunto, dizendo: “Eles têm o direito de estar aqui e eu tenho o direito de fazer a minha campanha. Se os manifestantes quiserem acompanhar-nos até ao fim da campanha, podem acompanhar, não vão desviar-me um milímetro daquilo em que acredito e daquilo que acho que é positivo para o país”.
À noite, já em Bragança, e depois de visitar a Oficina da Castanha, desafiou os seus apoiantes a responderem ao movimento ‘#VermelhoemBelém’ com uma “campanha dos lábios negros”. “Meus amigos, os meus lábios seriam pintados de preto pelo luto que tenho pelo estado da nação. De luto pela falta de condições na saúde, de luto pelo abandono dos nossos idosos, de luto pelo esquecimento do interior, de luto pela falta de justiça, de luto por terem esquecido os portugueses de bem. Lábios negros e não lábios vermelhos: é o que temos de fazer até ao fim da nossa campanha”, apelou.
No Auditório Paulo Quintela, Ventura impôs condições ao primeiro-ministro e ao Presidente recandidato. “Se esta candidatura ficar à frente da esquerda e da extrema-esquerda, é um claríssimo sinal vermelho para o Governo, que terá de inverter aquilo que tem feito ao país. E é um claríssimo sinal vermelho para Marcelo Rebelo de Sousa que, se vencer, terá de inverter o seu estilo de presidência”, advertiu. Logo de seguida, inaugurou a sede de campanha numa sugestiva Avenida Sá Carneiro, onde dois ciganos viriam a aparecer em seu apoio num momento de contornos pouco claros. Este domingo a campanha presidencial do Chega prossegue em Guimarães e em Braga.