‘Muitos prometem, Eanes cumpre’: como se fazem slogans e cartazes históricos
Cartaz da campanha de Ramalho Eanes à Presidência da República m 1976
DR
Ninguém imaginaria que substituir a figura do candidato nos cartazes por personalidades portuguesas em 1986 pudesse ter tanto impacto, mas a verdade é que teve. Nem ninguém imaginaria que optar por um slogan tão simples quanto “Soares é fixe” pudesse resultar tão bem, mas a verdade é que resultou. E não só resultou como se entranhou e conquistou um lugar na história da política portuguesa. De tal modo que durante a atual campanha houve um candidato que viu esse slogan ser-lhe oferecido de bandeja e, não fosse o seu bom senso, teria feito dele o mote da sua campanha. A história e os mistérios de quem constrói as mensagens políticas
Nessa manhã de dezembro de 1985, Alfredo Barroso e António Pedro Vasconcelos tomavam o pequeno-almoço com Harry Walter, do Partido Democrático Liberal (FDP, na sigla original em alemão), no antigo hotel Le Méridien, em Lisboa. Antes de deixar a América Latina, onde passara os últimos meses em contacto com líderes e militantes socialistas, e aterrar na Alemanha, Harry Walter oferecera-se para fazer escala em Lisboa e encontrar-se com alguém da campanha de Mário Soares, seu amigo.
Estávamos em princípios de dezembro, ou seja, a pouco mais de um mês das eleições presidenciais. Além de Mário Soares, candidatavam-se à Presidência da República Francisco Salgado Zenha (apoiado pelo PRD e pelo PCP), a independente Maria de Lourdes Pintasilgo e Diogo Freitas do Amaral, o único candidato à direita, apoiado pelo PSD e CDS.
A visita de Harry Walter nessa manhã de dezembro, que na realidade acontecia a pedido de Soares, tinha um objetivo muito concreto: ajudar Alfredo Barroso, então chefe do gabinete de Mário Soares e coordenador do núcleo político incumbido de conceber a propaganda eleitoral, e o realizador António Pedro Vasconcelos, que à época integrava esse núcleo, a conceber os cartazes da campanha.
Soares estava numa posição delicada – o seu mandato como primeiro-ministro, que terminara em novembro daquele ano, tinha ficado muito marcado pela intervenção do FMI e pelos difíceis anos de governação do bloco central, e por isso podia dizer-se que partia em desvantagem.
Walter, que Alfredo Barroso recorda como um “homem cheio de talento”, sugeriu-lhes que em vez da imagem do candidato, “cujo rosto já era tão conhecido”, optassem por recorrer a figuras públicas de mérito reconhecido, convidando-as a expressar o seu apoio a Soares através de uma frase que seria impressa também no cartaz.
Figuras como o atleta Carlos Lopes, o ex-jogador Humberto Coelho e António Ribeiro, dos UHF, surgiam nos cartazes da campanha de Mário Soares à Presidência em 1986. "Voto em Mário Soares porque ele nos fez sair do isolamento", lê-se no cartaz de Humberto Coelho
DR/ARQUIVO GESCO
Para quem não conhece o passado das campanhas eleitorais em Portugal poderá parecer estranho que tal estratégia tivesse sido recebida com tão grande surpresa e euforia, mas a verdade é que foi. Ou que tivesse sido preciso vir um tipo de fora apresentá-la, mas a verdade é que ele veio, que a apresentou e que os socialistas ficaram maravilhados.
Na altura, estava mais ou menos instituído que deveria ser o candidato a aparecer nos cartazes. O contrário disso seria inaceitável, quase absurdo, mas foi precisamente isso que aconteceu, pela primeira vez na história das campanhas eleitorais em Portugal.
Figuras públicas como o atleta Carlos Lopes, a fadista Hermínia Silva e o pianista Adriano Jordão viram os seus rostos e palavras estampados nos cartazes de apoio a Mário Soares. “Foi um êxito”, recorda Alfredo Barroso.
A campanha para a segunda volta, que ninguém sonhava que viesse a acontecer – Soares derrotara os candidatos da esquerda, mesmo tendo partido com apenas 8% das intenções de voto, e preparava-se para enfrentar o candidato da direita, Diogo Freitas do Amaral – foi mais discreta, não houve visitas-relâmpago nem experts atrevidos e sem receio de mandar os velhos costumes para o galheiro.
Uma única fotografia de Mário Soares – “ele sem gravata e com um ar muito cosy” – e um slogan escolhido por Vasco Pulido Valente (“O voto do povo”), que fazia parte do núcleo político da campanha, foram replicados nos vários cartazes, conta Alfredo Barroso.
“Soares é fixe”
Mas o recurso a figuras públicas não foi a única novidade desta que foi a mais longa – e provavelmente a mais intensa – campanha de sempre. Paula Espírito Santo, professora e investigadora do ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), em Lisboa, explica que foi nesta campanha que as dimensões dos cartazes começaram a ser repensadas, tendo sido produzidos cartazes com tamanho superior ao habitual, já muito próximos dos atuais “outdoors”.
Outra novidade foi a simplificação da mensagem. O tal slogan de Vasco Pulido Valente é um exemplo, mas há mais, e ainda mais célebres. É o caso do famoso “Soares é fixe”, que, ao contrário do que se poderia pensar, foi sugerido por um jovem do CDS, Adelino Vaz, “que detestava o Freitas e apoiava o Soares”, diz Alfredo Barroso.
Ou até do arrojado "Prá Frente Portugal!", que se lia nos cartazes de campanha de Diogo Freitas do Amaral. José Ribeiro e Castro, que foi diretor executivo da campanha do candidato apoiado pela direita, diz que esse slogan “representava bem o espírito da campanha”.
“Freitas do Amaral estava em excelente forma. Era, aliás, o melhor Freitas do Amaral que eu via em muitos anos, e o slogan traduz isso”, explica Ribeiro e Castro.
“Além disso, a ideia era transmitir otimismo. O país estava a sair de uma situação difícil, com a segunda vinda do FMI a Portugal e a crise do bloco central. As pessoas estavam a passar dificuldades, havia fome, manifestações, muito desemprego. O país precisava de esperança e Freitas do Amaral percebeu isso. A ideia que se queria passar era de que era preciso andar para a frente. Não para a esquerda ou para a direita. Mas para a frente”, acrescenta.
A campanha do candidato da direita, em contraste com a de Soares, acabou por ser mais virada para festas e desfiles de jovens. Havia os famosos sobretudos verdes, iguais ao ‘loden coat’ de Freitas do Amaral. José Ribeiro e Castro recorda ainda os “palhinhas”, inspirados num dos chapéus típicos da Madeira, mas feitos em plástico e com uma tira à volta com as cores da campanha, em vez da tradicional fita preta.
Agora os números. Soares gastou 17.292 contos (292 mil euros a preços de 2016, feita a conversão de escudos para euros e tendo em conta a taxa de inflação) em publicidade e propaganda, e Freitas do Amaral gastou 16.941 contos (286 mil euros), aos quais se somam ainda as despesas da segunda volta: mais 7.608 contos (128 mil euros) de Mário Soares e 8.037 contos (134 mil euros) de Freitas do Amaral, segundo as contas apresentadas pelos candidatos à Comissão Nacional de Eleições.
Hoje os valores são diferentes e os gastos com cartazes são uma das rubricas de despesas de campanha que todos os candidatos são obrigados a discriminar nas contas. Os orçamentos apresentados pelos dez candidatos para as próximas eleições presidenciais oscilam entre não gastar nada em cartazes – como o caso de Marcelo Rebelo de Sousa – e gastar 150 mil euros, como prevê Edgar Silva. Já Maria de Belém estima gastar 130 mil euros e Sampaio da Nóvoa, 120 mil.
“Até os muros se tornaram se tornaram livres e populares”
Até 1974, ano da revolução, a produção de cartazes era escassa. Com a proliferação de novos partidos políticos, associações, movimentos e sindicatos, a partir de 1974, a situação alterou-se radicalmente.
O escritor José Cardoso Pires tem um texto (“E agora, José?”) em que descreve bem o ambiente da época e de que modo o fim da ditadura fez da rua palco privilegiado da ação política. “Até os muros, que dantes eram vedações impávidas ou autoritárias (na realidade recusavam qualquer aproximação com a ameaça do proibido: 'proibido afixar', 'proibido estacionar'), até os muros se tornaram livres e populares”.
O texto é longo, mas vale a pena recordar aqui outro trecho. “Portanto, viajar hoje em dia no meu país é percorrer uma cartilha de pedra e cal ilustrada de sentenças populares. Muito do nosso saber está resumido ali, nos muros, e foi escrito por todos e ninguém – o homem que passa e o militante noturno, o artista de mão ignorada e o profeta comum. E frase a frase, caminhando e lendo, vamos aprendendo à flor das cidades e dos tapumes os abecedários da democracia, cada qual com seus apelos e seus avisos.”
É difícil medir a importância do cartaz
As primeiras eleições presidenciais realizaram-se 1976. O general António Ramalho Eanes foi eleito Presidente da República, com 61,5% dos votos. Os seus adversários eram o major Otelo Saraiva de Carvalho (que ficou em segundo), o almirante Pinheiro de Azevedo (terceiro) e Octávio Pato, o único civil na corrida eleitoral, apoiado pelo PCP, que terminou em quarto, com 7,5% dos votos.
O slogan de campanha de Ramalho Eanes – “Muitos prometem... Eanes cumpre. Vota Eanes. O candidato de Portugal” – é um bom exemplo do que vínhamos falando há pouco, a tal simplificação da mensagem, que foi sendo conseguida ao longo dos anos. Mas a principal mudança no que diz respeito a cartazes presidenciais terá ocorrido ao nível dos aspetos técnicos de produção, como o grafismo e a cor, salienta Paula Espírito Santo.
Desafiada a avaliar a importância destes cartazes ao longo dos últimos 40 anos, a professora e investigadora do ISCSP dá a entender que a questão é bem mais complexa do que se julga. E que não se resolve em meia dúzias de linhas. “A importância do cartaz não será mensurável, de per si, com precisão, mas pode assumir-se, em termos gerais, como efetiva e relevante no plano da estratégia da comunicação de qualquer força política em 1976 e nos anos subsequentes”, diz Paula Espírito Santo.
Nem mesmo nos finais dos anos 80 e princípios dos anos 90, “com a renovação da oferta televisiva, a diversificação das rádios e da imprensa local e nacional, que acrescentaram um novo vigor à comunicação política”, os cartazes perderam força. O que mudou, diz, foi a sua “visibilidade”.
Os cartazes passaram a ser afixados, ou colocados, no caso dos “outdoors”, em locais estratégicos, com regras e ordem, ao mesmo tempo que foram evoluindo em termos de qualidade gráfica e técnica.
Essa maior qualidade foi possível não só graças aos avanços da tecnologia, como também à “entrada em Portugal de um marketing político brasileiro que veio revirar as formas de mobilização política, rejuvenescer a propaganda e dar-lhe novo alento e alcance prático”, conclui a professora e investigadora.