Livre avança com queixa sobre Ventura no Parlamento: “Aguiar-Branco tem sido cúmplice com a atuação do Chega”
Matilde Fieschi
Em entrevista ao Expresso, a líder parlamentar do Livre alerta para as “linhas vermelhas” ultrapassadas na Assembleia da República e avalia negativamente um Governo “mais focado na propaganda e no show off” do que em governar, mas traça também o perfil do próximo ocupante de Belém
Primeiro os insultos, depois as “colchas” à janela. Para o Livre, o Chega continua a “escalar” e a criar “ruído” na Assembleia da República, mas com o discurso na sessão solene do 25 de Novembro fez uma “clara ameaça aos deputados de esquerda”. Altamente crítico da atuação do Presidente da Assembleia da República, o partido levou o tema à Comissão de Transparência e Estatuto dos deputados desta quarta-feira. Em reunião de Mesa e Coordenadores, iniciou-se o processo para que seja enviada uma queixa ao Grupo de Trabalho do Código de Conduta dos deputados.
Em causa está o polémico discurso que André Ventura concluiu com a evocação de um major-general da guerra colonial. “Como dizia Jaime Neves sobre a guerra do Ultramar, era mesmo assim: 'Quando nos mandavam limpar, nós limpávamos tudo.' Já começámos, vamos continuar”, afirmou enquanto apontava para as bancadas da esquerda. O líder do Chega já assumiu que o gesto foi intencional, mas acusou o Livre de querer “ganhar protagonismo à custa do Chega”, argumentando que “todos compreenderam” que se referia a uma “limpeza do sistema político”.
“É essencial que os democratas e as instituições sinalizem” e não permitam que este tipo de discurso passe “sem contraditório” ou condenação, defende a líder parlamentar, Isabel Mendes Lopes, em entrevista ao Expresso.
Em que é que este episódio difere de outros a que temos assistido nos últimos meses no Parlamento?
Já tivemos insultos, tanto a deputados como a pessoas no exterior. Já tivemos insultos a grupos, como se fosse admissível fazer generalizações. E aqui houve uma ameaça muito clara, muito direta e que só pode ser interpretada assim. Foi mais uma linha vermelha que o Chega vai passando todos os dias.
O Livre criticou José Pedro Aguiar-Branco por não ter feito uma nota de repúdio. O Presidente da Assembleia da República (PAR) esteve mal?
Parece-nos claramente que Aguiar-Branco devia ter repudiado, como antes também já devia ter chamado a atenção sempre que há discurso de ódio e ameaças. O PAR tem o dever de sinalizar e pelo menos dizer que isto não é admissível. E não é o que tem feito. Na verdade, tem sido cúmplice com a atuação do Chega no Parlamento.
Está-se a normalizar um discurso de ódio e uma linguagem tão violenta quando são totalmente inadmissíveis. E o problema é que isto não tem só impacto aqui no Parlamento. Tem um impacto na sociedade. Não é à toa que o discurso de ódio tem aumentado nas redes e nas ruas.
E em relação à colocação das tarjas? Ficam-se pela condenação verbal? Há algo a fazer?
Parece que já há uma denúncia anónima no Ministério Público. Vamos ver como o processo se desenrola. Foi mais uma ação do Chega que vem desprestigiar a Assembleia da República com o intuito de criar ruído. Mas foi exatamente na mesma semana em que André Ventura fez a ameaça e portanto também me choca que a discussão seja tão viva em torno das colchas que o Chega pendurou à janela, quando algo de mais grave se passou sem reação.
Que balanço faz dos primeiros oito meses de governação da AD?
É de facto uma governação muito mais de propaganda do que de governação real, e isso viu-se muito durante o processo orçamental. Desde que tomou posse, que o Governo diz que é um Governo de diálogo, mas depois a verdade é que mesmo as reuniões que temos não dão frutos e não há seguimento. Isto acontece com várias medidas. Às vezes até tem que voltar atrás nas medidas ou dados que apresenta. Parece-nos um Governo pouco disposto a dialogar e muito focado na propaganda e no show off, muito mais do que na concretização.
Uma das questões que se acentuou desde as eleições legislativas é discussão à volta da “sensação de insegurança”. Há ou não um problema de segurança?
O que os dados nos dizem é que nós temos vários problemas de segurança, mas não são nos locais onde o governo está a atuar. Temos um grande problema de segurança na violência doméstica, mas essa não tem sido a vertente da segurança que o Governo tem abordado. É verdade que há uma sensação de insegurança, mas que tem sido fomentada por quem interessa fomentar o medo (que gera discórdia e não permite fazer pontes uns com os outros). E o Governo tem ido atrás disso. Quando o primeiro-ministro faz a conferência de imprensa às oito da noite para anunciar medidas que já estavam a ser tomadas ou quando são ordenadas operações policiais muito aparatosas no Martim Moniz, isso é que vai contribuir para a perceção de insegurança.
Como responder a desacatos como os que aconteceram no princípio de novembro?
Quando alguém morre às mãos da polícia é preciso ser muito claro em relação ao que vai ser feito, instaurar imediatamente o inquérito e perceber-se o que é que aconteceu. Depois é preciso tomar medidas para resolver problemas que existem estruturais na nossa sociedade.
Que balanço faz da atuação do governo nesta matéria?
Parece-nos que não tem sido a gestão mais feliz, nem mais bem conseguida.
A par com esta questão têm estado as migrações. Que preocupações suscita este tema?
Este tema suscita-nos grandes preocupações, porque estamos a criar não só injustiças, mas dificuldades reais na vida de tantas pessoas, com medidas que são tomadas de repente e sem perceber as consequências dessas medidas. O fim das manifestações de interesse de uma forma tão abrupta deixou muitas pessoas sem chão. Pessoas que já cá estavam, que cá trabalham e que cá vivem. As coisas não podem ser feitas assim e tanto não podem que o próprio Governo foi reabrindo aos poucos as possibilidades de manifestações de interesse.
Mas o Livre defende que as manifestações de interesse deviam continuar?
Acho que poderíamos pensar de que forma é que todo o sistema poderia funcionar melhor, mas enquanto não há um sistema melhor, as manifestações de interesse deviam-se ter mantido e deviam-se manter.
Portugal tem as “portas escancaradas” como tem sido repetido?
Não tem as portas escancaradas e choca-nos muito a adoção de linguagem típica da extrema-direita por partidos que supostamente seriam moderados. Portugal tem portas escancaradas, mas para quem tem mais. Para quem compra casas de um ou dois milhões de euros. Todo esse sistema tem de ser revisto para ser mais justo para quem vem e também para quem cá está.
O próximo ano será de autárquicas. O Livre mostrou-se disponível para uma frente de esquerda. Esta opção tem tido andamento?
Depois das conversas que tivemos com vários partidos, continuamos localmente e por todo o país, a continuar estas conversas. 2025 é a oportunidade para recuperarmos uma série de cidades e de lugares para uma política de facto progressista e ecologista que ponha a qualidade de vida no centro das políticas.
O Livre terá no início de 2025 as primárias, agora para escolher candidatos autárquicos. Sendo este um processo que já mostrou ter problemas - nomeadamente depois do que aconteceu nas europeias - continua a fazer sentido este processo desta forma?
As primárias têm problemas como todos os processos, mas também têm muitas vantagens e têm-nos trazido boas surpresas. Há uma série de pessoas que atualmente até fazem parte do Livre que vieram através das primárias. É uma forma de o Livre se mostrar aberto à à sociedade. O que nós estamos a fazer é aquilo que fazemos a seguir a todas as eleições primárias, que é afinar o processo e a fazer uma revisão do regulamento.
Muito se tem falado de potenciais candidatos à Presidência da República. Para o Livre, qual deve ser o perfil do próximo ocupante de Belém?
As próximas presidenciais são o fechar de um ciclo e a abertura de um novo que deve ser liderado por alguém com um perfil muito claro na defesa do Estado de Direito e da democracia, que tenha muita noção do tempo que estamos a viver. Por outro lado, depois de 20 anos de Presidência de direita, seria altura para a esquerda se organizar e para apresentar uma candidatura que reunisse um consenso mais alargado. Também a questão do género é muito relevante. Nunca tivemos uma Presidente da República. Simbolicamente e na prática faria também muita diferença.
O Livre pode vir a ter candidato próprio?
Sim, mas entendemos que o ideal seria uma candidatura que reunisse maior consenso.
Dos nomes já conhecidos, o Livre está disponível para apoiar algum?
Não vamos entrar agora nessa discussão.
Olhando para os próximos meses de atividade parlamentar, que propostas é que o Livre quer levar ao Parlamento?
Há uma proposta que vem do mandato anterior que tem que ver com a regulamentação do estatuto dos apátridas. Em Portugal não tínhamos, foi uma vitória do Livre no mandato anterior, mas agora falta regulamentar. Outra questão que vai estar em cima da mesa é a interrupção voluntária da gravidez. O Livre apresentará uma proposta para aumentar o prazo e melhorar as condições em que possa ser feita.
O Livre levou o tema da tributação dos super ricos a plenário em antecipação da Cimeira do G20. Finda essa reunião onde Portugal esteve presente, acha que o Governo esteve à altura?
É importante esclarecermos que estamos a falar de três mil pessoas no mundo inteiro. Não estamos a falar de pessoas que herdaram uma casa dos pais ou que tenham não sei quantos mil euros no banco. Estamos a falar de fortunas de milhões e milhões de euros.
Há imensas questões que devem ser tratadas a nível global. E, do nosso ponto de vista, a taxação também deve ser. Até porque são fortunas de tal forma que influenciam os destinos do mundo. Quando temos pessoas que têm fortunas equivalentes ao PIB de um país, são pessoas que têm também meios de comunicação social, redes sociais, o poder de comprar um exército e a capacidade de influenciar eleições. Como aconteceu nos Estados Unidos, em que Elon Musk entrou ativamente na campanha de Donald Trump. São pessoas que têm uma capacidade de ir acumulando poder, mas não são democraticamente eleitas.
Esta discussão é muito importante. No G20 foi tida e há países que são claramente contra, mas há países que estão a forçar muito a discussão. Pelo menos saiu [da cimeira] a continuação da discussão.
Do lado do nosso governo, a postura tem sido de ‘vamos pensar, vamos estudar, é uma posição interessante, mas…’ Quando nós achamos que Portugal devia ser muito mais perentório nesta questão e estar claramente ao lado dos países como o Brasil, Espanha, África do Sul, que dizem que a taxação destas super hiper mega fortunas é essencial, urgente e tem de ser feita já.