Uma aula de história, em 11 minutos, para Governo e oposição ouvirem. No discurso dos 112 anos da Implantação da República, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou o gancho histórico para recuar 100 anos e fazer paralelismos. Há 100 anos como agora, vivia-se um pós-guerra (I Guerra Mundial) e um pós-pandemia (gripe espanhola), a inflação disparava e, por toda a Europa, a agitação social dava lugar à fragilização de partidos, de parlamentos e à ascensão de movimentos radicais.
Mas há 100 anos, ao contrário de agora, os países não tinham instrumentos de democracia e liberdade, nomeadamente alternativas democráticas, para se precaverem, e é precisamente aí que Marcelo avisa: esses instrumentos não são eternos e precisam de ser cuidados. “É importante, mais do que nunca, que se leve a sério que a República e a Democracia se constroem todos os dias e que não há construções perfeitas ou acabadas”, disse. É preciso cuidar da qualidade da democracia, da justiça, da administração interna, mas também é preciso construir alternativas próprias da democracia.
As “fragilidades”, “abusos” e “omissões” existem, mas também existem hoje liberdades e instrumentos de fiscalização, de exigência de mais e melhor e, no limite, de “dissolução” que antes não existiam. Daí que seja preciso cada um fazer o seu papel, sabendo que ninguém - nem governos, nem Presidente, nem oposição - são “eternos” nesse mesmo papel. Nem mesmo com maioria absoluta. "Hoje a democracia tem forças para encontrar alternativas”, explicaria mais tarde, já no Palácio de Belém, rejeitando que haja hoje o perigo das ditaduras que havia há 100 anos.
“Encontrar alternativas” dentro da democracia
“O que eu quis dizer foi: não tenham medo porque não vai acontecer o que aconteceu à Primeira República, que acabou em ditadura porque não houve alternativas que nascessem", disse, pondo aqui a carga na oposição: ou a alternativa nasce do próprio partido que está hoje no governo, ou nasce de “outros”. Cada um tem de fazer valer o seu projeto: “É a vida”.
Mas o salto histórico não foi por acaso. Numa altura em que, em Itália, a extrema-direita ganha eleições e ascende ao poder, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou que foi em outubro de 1922, há 100 anos, que milhares de fascistas protagonizaram a marcha sobre Roma que levou à subida ao poder de Benito Mussolini. Nessa altura, também em Portugal a República era jovem e enfrentava os desafios exigentes do pós-guerra. Era preciso a República “reencontrar-se com as pessoas”, num momento em que “novos problemas exigiam novas respostas”. Era preciso “novo alento”, “redobrada atenção”, era preciso “encontrar alternativas dentro de si própria” - “antes que fosse tarde de mais”. E foi, tanto em Itália como em Portugal, que, quatro anos depois da marcha sobre Roma, teve o seu próprio golpe militar de 28 de maio que abriria caminho à ditadura.
O resto, é conhecido. “Sabemos como começam as ditaduras, o que são e o que duram, e sabemos como é difícil recriar a democracia depois delas. Sabemos tudo isto como não sabíamos em 1922, e como temos e sabemos o que não sabíamos há 100 anos, sabemos que só depende de nós, mesmo num mundo em pós-pandemia e guerra, sermos melhores do que somos”, disse, enumerando todas as conquistas democráticas dos últimos 100 anos que nos dão, enquanto país, mais capacidades de responder aos desafios e de encontrar alternativas para travar os autoritarismos que espreitam.
Uma democracia com "mais controlo dos abusos e omissões" e uma oposição mais exigente
Entre essas conquistas estão, à cabeça, a República democrática. É isso que nos dá poderes como o direito de voto, o pluralismo, mais meios de informação, uma Constituição, educação, saúde, segurança social, instrumentos de regulação e de intervenção económica ou um poder em específico que diz respeito em particular ao Presidente da República e que Marcelo sublinhou: o poder de veto e o poder de dissolução do Parlamento ou de queda do Governo.
“Temos hoje uma democracia em que milhões de pessoas votam diretamente no Presidente da República, e o Presidente tem o poder de vetar leis e de dissolver o Parlamento”, avisou, mostrando que o Presidente, se tudo falhar, está atento e ciente da amplitude da sua margem de atuação.
Dito isto, e numa semana em que o Governo teve de lidar com os casos de alegadas incompatibilidades de ministros (da Coesão e da Saúde), Marcelo lembrou que, apesar de todos os instrumentos que temos hoje para evitar os autoritarismos, e que não tinhamos em 1922 para evitar a ditadura, isso não basta. "Não é suficiente termos democracia nas leis e na Constituição, importa termos uma democracia nos factos, uma democracia com mais qualidade, melhores leis e justiça mais atempada, com mais controlo dos abusos e omissões dos poderes e com mais força na prevenção e combate à corrupção”, sublinhou.
E insistindo que não há nada “eterno” em democracia - nem a própria democracia nem quem ocupa os seus vários papéis, no governo ou na oposição -, Marcelo terminou o seu discurso com um piscar de olho a Carlos Moedas, presidente da câmara de Lisboa que tinha discursado antes, e que é muitas vezes apontado como figura-chave do futuro do PSD. É preciso a oposição “exigir mais e melhor” ao governo, mostrando “indignações e insatisfações” - “como bem fez aqui Carlos Moedas” - porque isso é “saudável” em democracia.
É um “sinal de força”, disse, só possível em democracia e impossível em ditaduras onde só “há uma verdade única”. “É saudável a exigência crítica, porque em democracia cabe a todos não estagnar e fazer avançar. Nunca nos resignamos. Há sempre mais realidades, mais soluções, mais energias de mudanças. É isto que celebramos hoje”, disse. Luís Montenegro estreou-se como líder do PSD a assistir na primeira fila e, na semana em que foi muito criticado por ter dado um sinal de “normalização” do Chega ao incentivar os deputados da Assembleia da República a eleger um vice-presidente daquele partido, ouviu com atenção.
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