O Governo vai entregar esta quarta-feira o Orçamento do Estado para 2022, ensombrado pela inflação que se fixa já nos 4% (após uma revisão em alta). Mas não sem antes fazer algumas alterações em relação ao documento que tinha entregue ao Parlamento em outubro, e que acabaria chumbado e a encaminhar o país para eleições.
As previsões de crescimento económico serão revistas em baixa, ainda que o défice se mantenha nos 1,9%. A direita alerta para uma nova austeridade encapotada, enquanto PCP e Bloco de Esquerda querem combater a inflação através da combinação de dois instrumentos: fixação de preços máximos e aumento dos salários e pensões, para que não haja uma diminuição do poder de compra. O Governo, contudo, não prevê mexer na política de rendimentos e salários, entendendo que o aumento da inflação e "temporário e conjuntural". Englobamento dos rendimentos em sede de IRS avança mesmo.
De acordo com informações avançadas aos jornalistas pelo líder parlamentar do PSD, o primeiro a ser ouvido no âmbito das habituais audições do Governo com os partidos para apresentar as linhas gerais do documento, as alterações passam por uma revisão em baixa do cenário macroeconómico, sem que isso afete a previsão do défice para 2022 (1,9%). Quer isto dizer que o Governo está a contar com um aumento da receita fiscal para compensar o comportamento mais negativo da economia devido à tensão inflacionista que se faz sentir, nota o social-democrata. Segundo Paulo Mota Pinto, trata-se de um "regresso encapotado da austeridade", mesmo que o Governo não o admita.
"O Governo assume que está a cobrar mais impostos, porque a receita tem corrido melhor; assume que o cenário macroeconómico se está a degradar, mas que se mantém o defice. E assume que não pode garantir a recuperação dos salários em relação à inflação - embora haja, claro, o objetivo de evitar a contaminação da inflação ao poder de compra", disse o novo líder parlamentar dos sociais-democratas em declarações aos jornalistas no Parlamento.
Foi também Mota Pinto a avançar o calendário da aprovação do OE: apesar de ter dito que o Orçamento será entregue esta quinta-feira, fonte das Finanças confirmou ao Expresso que o documento será aprovado em Conselho de Ministros já esta quarta e, ao que tudo indica, deverá seguir nesse mesmo dia para o Parlamento, para ser depois apresentado ao país.
Segundo o PSD, o Governo mantém o que disse aos partidos durante o debate do programa de Governo, na semana passada: a austeridade é "temporária e conjuntural", logo, não haverá lugar a acertos nos salários da função pública para acautelar a subida temporária dos preços.
"O Governo reiterou a sua convicção de que a inflação que estamos a ver em várias áreas provocada pelo aumento dos preços da energia é um cenário temporário ou conjuntural, embora não consiga quantificar o temporário, e não garantiu que não haverá perda de rendimentos", disse, ressalvando contudo que o Governo tem a intenção de travar essa espiral inflacionista, mas não através da compensação salarial. Para o PSD não há dúvidas: "Há aqui um regresso encapotado da austeridade pela previsível perda de rendimentos nos salários mais controlados diretamente pelo eEstado que são os da função pública."
Chega diz que vem aí um "certo nível de austeridade"
Também o líder do Chega alinhou pelo mesmo diapasão, falando em austeridade. André Ventura disse que o Governo não avançou para já com nenhum aumento de impostos, mas só o aumento de custos sem consequentes apoios corresponderá a mais austeridade.
"É de facto algo preocupante o que está a acontecer e aí concordo com o PSD, o país deve preparar-se para um certo nível de austeridade", afirmou Ventura, em declarações aos jornalistas. "O que sinto é que vem aí uma certa dose de austeridade, isso sente-se na incapacidade do Governo em fazer apoio direto aos contribuintes em matéria de combustíveis e energia", reforçou.
Reiterando que o Executivo mantém a meta de 1,9% do défice para este ano, Ventura considerou que o ministro das Finanças "parece estar muito pouco à vontade" para discutir os dados macroeconómicos do país. "O Governo não está a adaptar os objetivos de política financeira ao contexto que vivemos atualmente", sustentou.
Para o Chega, seria fundamental que o Executivo estivesse disposto a mexer não só no ISP, como no IVA dos combustíveis e de outros bens, para fazer face à inflação. E criticou ainda que esteja indisponível para a subsidiação direta de combustíveis, ou seja descontos imediatos quando se coloca gasolina ou gasóleo, à semelhança do que acontece em Espanha.
Pela positiva, o Governo destacou vários sectores que foram afetados pela covid-19, como o turismo e restauração, que já estão em "níveis pré-pandemia", o que poderá ajudar à recuperação económica. "Isso pode ajudar um pouco a mitigar o efeito da inflação, a guerra e cenário internacional", observou Ventura.
IL acusa equipa das Finanças de "desorientação"
João Cotrim de Figueiredo disse ter sair da reunião com o ministro das Finanças e a ministra dos Assuntos Parlamentares com a sensação de que há "alguma desorientação" por parte da nova equipa das Finanças. Porque se, por um lado, o Executivo admite que o "cenário macroeconómico será revisto com profundidade", por outro, mantém a meta do défice para 2022.
"Isto não nos permite saber se este OE vai ser ou não de resposta efetiva a esta crise que a guerra na Ucrânia nos traz de novo", declarou o líder da Iniciativa Liberal (IL). Questionado sobre a taxa de inflação estimada, Cotrim de Figueiredo adiantou que o Executivo reviu-a em alta para 4%.
Admitindo, por isso, que sai com uma expectativa "não positiva" do encontro com o Governo, Cotrim de Figueiredo criticou ainda o facto de algumas exigências do Bloco e PCP se manterem neste Orçamento, apesar de o PS ter agora maioria absoluta.
"Seria de esperar que as exigências mais recambolescas do BE e PCP se deixassem cair. Mas a maior parte das opções fiscais de IRS e IRC constantes do que foi discutido em outubro vão-se manter, incluindo as que pareciam ter sido incluídas por exigência do BE e PCP", explicou o líder dos liberais, apontando ainda para aquilo que considera ser a "opção bizarra" de manter o englobamento de todos os rendimentos em sede de IRC.
Se os escalões de IRS não forem revistos, todos os aumentos salariais face à inflação irão corresponder a um "aumento dos escalões", alertou. Por último, Cotrim lamentou que a IL não tenha obtido hoje qualquer resposta sobre o crescimento previsto, rácio da dívida pública ou carga fiscal no final de 2022, remetendo o Governo respostas para a próxima quarta-feira.
PCP quer fixação de tetos máximos para os preços
Agora na oposição pura e dura, o PCP saiu da reunião com a delegação do Governo a antever o pior: se em outubro, o PCP já achava o Orçamento insuficiente para fazer face à crise que se fazia sentir no rescaldo da pandemia, agora ainda mais insuficiente é devido à crise inflacionista que se acentuou com a guerra na Ucrânia. Para a líder parlamentar comunista, fixar preços máximos, subir salários e pensões e aumentar o investimento público são prioridades.
"Há neste OE uma obsessão pela redução do défice e uma transferência do agravamento do custo de vista para os trabalhadores e o povo", disse Paula Santos aos jornalistas, sublinhando que é importante o Governo pôr a tónica na recuperação do poder de compra dos portugueses - agora dificultado com o aumento dos preços. "Tudo indica que o Governo do PS não está disponível para intervir nesse sentido [não transferir custos para os trabalhadores] e para aumentar salários", decretou Paula Santos.
No entender do PCP, o importante é o Governo fixar preços máximos "para que os grupos económicos não estejam a acumular lucros a pretexto da epidemia, primeiro, da guerra e das sanções, depois, que é o que tem sido usado como pretexto para o aumento dos preços".
BE diz que inflação é corte nos salários e pensões
O Bloco de Esquerda alinhou na mesma linha de argumentação do PCP e disse ser "inaceitável" que o Governo não preveja fazer nada para evitar que a inflação represente um corte nos salários e nas pensões dos portugueses. "É inaceitável", disse Pedro Filipe Soares aos jornalistas no Parlamento, sublinhando que o pacote de medidas para estancar a inflação hoje apresentado pelo ministro da Economia é "limitado" e "manifestamente insuficiente".
"O Governo recusa controlar os preços de alguns setores que se estão a aproveitar da crise para retirar lucros incompreensíveis", começou por dizer o líder parlamenta bloquista referindo-se à Galp, EDP, Pingo Doce ou Continente, que estão a aumentar preços continuando a ter "lucros incompreensíveis". "O Governo encolhe os ombros perante esta situação", afirmou o bloquista lembrando que a taxa sobre os lucros "caídos do céu" que o ministro da Economia chegou a admitir criar no último debate no Parlamento já caiu por terra, tendo António Costa Silva dito hoje que nada estava previsto nesse sentido.
No entender do Bloco de Esquerda, o facto de o Governo não agir neste sentido nem mexer na política de rendimentos e salários tem apenas um resultado: "A inflação é em si mesmo um corte nos salários e pensões". "Não ter nenhuma ação contra isto é inaceitável", disse Pedro Filipe Soares, evitando falar em austeridade encapotada, como o PSD e o Chega chegaram a falar, mas dizendo o mesmo por outras palavras: "A inflação é um corte nos salários e pensões, é um corte no poder de compra", reiterou.
Um aumento intercalar dos salários para responder à tensão inflacionista e uma resposta ao nível do controlo de preços seriam as propostas do Bloco de Esquerda para travar a crise, com Pedro Filipe Soares a rebater o "dogma económico" do Governo, que diz que aumentar salários faz disparar ainda mais a inflação. "O que nós sabemos é que controlar preços ajuda a estancar a inflação e aumentar salários ajuda a aumentar o poder de compra". É na combinação destes dois instrumentos que o BE entende estar a resposta à crise. Não o fazer é apenas "teimosia".
PAN pede mais "ambição" no Orçamento
Para o PAN, a proposta do OE2022 do Governo contém a marca da "instabilidade económica" resultante da guerra na Ucrânia e da pré-pandemia, mas peca por falta "ambição" e respostas para garantir a autonomia energética e a soberania alimentar.
"A revisão de uma eventual retoma só tem espelho em alguns sectores como turismo, muito pelo contrário, com inflação estamos a ter um cenário mais negativo", advertiu Inês de Sousa Real.
Considerando que as alterações no quadro macroeconómico " têm espelho a dez anos, pelo menos” , a deputada única do PAN pediu mais medidas a nível fiscal para contornar a atual conjuntura: "Se o Governo não quer aumento salarial nesta altura tem que garantir a retoma pela via fiscal permitindo aliviar as famílias e empresas", insistiu.
Sousa Real defendeu ainda "taxa zero de IVA" para produtos essenciais, como pão, frutas, legumes, e mais medidas de resposta à crise energética, sublinhando que a redução do ISP não é "solução única". Sousa Real considerou ainda que será fundamental o Executivo apostar mais na instalação de painéis fotovoltaicos e no reforço dos transportes públicos para que se tornem "tendencialmente gratuitos".
A nível do desdobramento dos escalões de IRS, a líder do PAN voltou ainda a insistir que o Governo deveria ir mais além e "não deviam ser só o terceiro e o sexto escalões", mas haver um desdobramento "entre o terceiro e o sexto” escalão.
Livre não quer mero "Orçamento de transição"
Rui Tavares defendeu que o OE2022 não deve ser visto apenas como um "Orçamento de transição", uma vez que vai enfrentar os "primeiros impactos da crise internacional" causada pela guerra na Ucrânia. E reconheceu que há diferenças de perspetiva entre o Governo e o Livre, "mas não inconciliáveis".
"O Livre acha que o país se deve preparar para o pior, mesmo esperando o melhor. Devemos olhar para este OE , embora vá ser aplicada durante um período mais curto, não apenas como um orçamento de transição, concentrando esforços em 2023", declarou o deputado do Livre.
Para Rui Tavares, há uma clara diferença na forma como o Executivo e o seu partido vem a atual situação económica e financeira na Europa: se o primeiro acredita que estão em causa problemas "conjunturais" o segundo defende, por sua vez, que são problemas "estruturais".
O deputado único do Livre considerou ainda que estão em causa problemas "estruturais", na medida em que irão mudar o mundo e que mesmo em face a questões conjunturais a resposta que Portugal deve ter é "estrutural". "A cada momento, [o Governo] deve ter medidas, planos, projetos que tratem essa mudanças como estruturais e para ter o país mais bem preparado para o futuro", acrescentou.