No dia do funeral do agente da PSP Fábio Guerra - que morreu esta segunda-feira na sequência de um espancamento à porta de uma discoteca em Lisboa, depois de tentar separar uma rixa com fuzileiros -, o almirante Gouveia e Melo, chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), quis marcar o momento com um discurso duríssimo no Alfeite, ao Corpo de Fuzileiros (mas que também era dirigido a toda a Marinha). O antigo coordenador da task-force das vacinas, censurou os “desacatos e rixas”, ao mesmo tempo que enalteceu “o profissionalismo” e as “qualidades militares daquela força especial. “Quando vejo alguém a pontapear um ser caído no chão, vejo um inimigo de todos nós, dos seres decentes, vejo um selvagem, vejo o ódio materializado e cego, vejo acima de tudo um verdadeiro covarde”, disse Gouveia e Melo numa intervenção escrita que foi disponibilizada depois na intranet da Marinha e a que o Expresso teve acesso.
Com os dois militares daquela tropa de elite em prisão preventiva, o CEMA quis marcar as linhas vermelhas éticas e de comportamento do pessoal sob o seu comando, embora tenha a certeza, apurou o Expresso, que os fuzileiros não se reveem neste tipo de comportamento e que mantém a confiança naquele corpo. No fim do discurso, os militares fizeram um minuto de silêncio pelo polícia falecido. As palavras que o almirante empregou foram violentas: “Os acontecimentos do último sábado já mancharam as nossas fardas independentemente do que vier a ser apurado. O ataque selvático, desproporcional e despropositado não pode ter desculpas e justificações nos nossos valores, pois fere o nosso juramento de defender a nossa pátria. O Agente Fábio Guerra era a nossa pátria, a PSP e as Forças de Segurança são a nossa pátria e nela todos os nossos cidadãos”, disse o almirante.
Henrique Gouveia e Melo, que no discurso de tomada de posse também já tinha falado nos valores éticos dos militares e da Marinha, aqui foi mais longe, ao afirmar que “ver fuzileiros envolvidos em desacatos e em rixas de rua, não demonstra qualquer tipo de coragem militar, mas sim fraqueza, falta de autodomínio, e uma necessidade de afirmação fútil e sem sentido”.
E recorreu a um ditado popular, para que não houvesse justificações quanto à formação de militares que é suposto serem violentos na guerra - mas sem espaço para o “desprezo pela vida alheia” ou pelo “sofrimento” - mas que não o podem ser na vida. “Já ouvi vezes demais que não se pode ter cordeiros em casa e lobos na selva, eu digo-vos enquanto comandante da Marinha que se não conseguirem ser isso mesmo, lobos na selva, mas cordeiros em casa, então não passamos de um bando violento, sem ética e valores militares, sem o verdadeiro domínio de nós próprios e, se assim for, não merecemos a farda que envergamos, nem os 400 anos de história dos fuzileiros”.
Gouveia e Melo telefonou à família com um “nó na garganta”
“Estou profundamente triste”, assumiu Gouveia e Melo perante os seus homens, e contou que telefonou à família para lhes dar os pêsames: “Não sabia o que dizer, não sabia como justificar, como explicar, só uma profunda tristeza e um nó na garganta que me sufocava as palavras”, confessou. O submarinista admitiu a dificuldade em “explicar a aridez desta morte sem sentido”, e porque estavam envolvidos dois homens sob o seu comando: “Não consegui dizer nada mais que prometer justiça e lutar para que não voltasse a acontecer”. E pediu que os marinheiros fossem exemplares: “Teria sido muito mais fácil e consolador poder ter dito que os meus homens tinham defendido o agente caído na rua, não permitindo que alguém o tivesse agredido cobardemente, já inanimado”.
Recordando que aqueles subordinados têm direito à presunção de inocência, disse ser agora tempo de acreditar “na justiça, ajudando a que ela se realize nas instâncias adequadas, de modo a sabermos realmente o que aconteceu, evitando a justiça mediática, ou popular, mas intransigente com a realidade e connosco próprios”.
A terminar a intervenção foi ainda mais claro: “Não quero arruaceiros na Marinha; não quero bravatas fúteis, mas verdadeira coragem, física e moral.”
O CEMA já tinha recordado as missões que, nos submarinos e na fragata “Vasco da Gama” tinha desempenhado com os fuzileiros. E apelou a que não se deixassem tentar pelo lado negro da força: “Camaradas, nós carregamos os ideais dos homens do mar, devemos ser nobres nos nossos atos, com corações limpos e despejados de qualquer ódio, no entanto, firmes nos nossos propósitos de justiça e da afirmação do Bem sobre o Mal. Não queremos ser cavaleiros das trevas transportando dentro de nós o mais baixo da alma humana, mas sim da Luz e dos valores verdadeiramente militares”. Gouveia e Melo não quer as suas tropas em “rixas de rua” e “disputas de gangues” e apelou ao “amor a algo maior”. Palavras para uma tragédia, que devem perdurar…