A maior desvantagem do candidato da direita em relação a Jorge Sampaio era a notoriedade. Daí que Marcelo tivesse apostado em ideias loucas como o mergulho no Tejo, a condução de um táxi pela cidade ou a participação numa noite de recolha de lixo. O espetáculo de natação fluvial pretendia transmitir uma sensação de juventude e rebeldia, que Sampaio não tinha. A resposta de Sampaio à questão da poluição do Tejo seria não um banho espetacular na água suja, mas um passeio civilizado de traineira pelo rio. “O Marcelo é endiabrado, todos os dias tinha uma ideia e era muito difícil aguentar esse ritmo”, contaria Sampaio. “A nossa candidatura era uma coisa mais lenta, tinha de responder a um trabalho de consenso.” Com o PCP, claro.
Em nome da popularidade, Marcelo fazia tudo. Como nada é melhor em política do que cavalgar a notoriedade do adversário, a candidatura da direita decidiu ir à boleia do socialista, exigindo debates na televisão: debater com Jorge Sampaio era colocar Marcelo ao nível do secretário-geral do PS, que por sua vez só devia aceitar equiparar-se ao primeiro-ministro. Acontece que a experiência de um líder partidário não é de menosprezar, como se verá...
"Meu caro amigo", uma troca azeda de cartas públicas
As campanhas não se entendem sobre como combinar o debate. O desacordo leva à lavagem de roupa em público com a publicação de cartas fac-similadas em jornais. A primeira é de Marcelo, a propor “debates públicos sectoriais entre candidatos e técnicos das duas coligações, que culminariam num frente a frente em novembro” de 1989. Na resposta paternalista, Sampaio ironiza com as fraquezas conhecidas do seu adversário:
"Meu caro amigo,
Acuso a receção da sua carta de 21 de setembro. Mas devo dizer-lhe com frontalidade (e procurando preservar um estilo de relacionamento adulto, sóbrio e responsável, como Lisboa merece) que, pela primeira vez, não a agradeço. Aquela carta não é para mim, é para a imprensa. E esse é um fingimento que me incomoda. (...) V. carece de notoriedade e quer ganhá-la a qualquer preço. No plano subjetivo compreendo. V. mergulha no Tejo, passeia de táxi, faz o que entender para ter manchetes de imprensa ou registo no Telejornal que o seu Governo domina. (...) Em suma, não quero ser envolvido em garotices. (...) Assim, meu caro Rebelo de Sousa, não me diga, em carta que já está na Lusa, o que nunca me disse na frente: que eu me furto a debater consigo. Mas vá buscar notoriedade ao Tejo e ao táxi, e não à minha conta. (...) Fico ao seu dispor para coisas sérias.
Saudações cordiais."
Jorge Sampaio acaba por propor que os operacionais das candidaturas se juntem para combinar um confronto, fazendo um “pedido conjunto à RTP para um debate político global” entre os dois. Marcelo responde em tom mais justificativo, mas não deixa de procurar o calcanhar de Aquiles da personalidade de Sampaio: a angústia.
"Meu caro amigo,
Acuso a receção da sua carta de hoje. Ela é lamentável a vários títulos. Tenho-me recusado a atacar pessoalmente a sua candidatura (...). Infelizmente, isso não tem acontecido da parte da coligação que encabeça.(...) A sua carta de hoje é lamentável, meu caro Jorge, porque perde aquele fair-play que em si, desde há muito, tanto aprecio. Fala a despropósito do meu mergulho ou da condução de um táxi, para os criticar, dizendo que não os critica. Menciona o estilo para, em jeito que, no fundo, só visa a comunicação social, tentar chamar a si o monopólio do bom senso, da serenidade, da compostura. (...) Não sou um candidato angustiado! (...) Desculpe este desabafo Jorge, mas a sua carta foi para mim uma grande desilusão, espero que passageira."
Campanha é campanha, luta é luta, era o ringue mais importante do combate autárquico: se para um líder partidário como Sampaio uma derrota era o fim, a vitória poderia ser um passo para dali a dois anos ganhar as legislativas ao cavaquismo reinante. Estranhamente, Marcelo ia liderando as sondagens publicadas no Expresso.
A preparação: uma gripe e um calmante. "Marcelo vai destruí-lo!", diz Guterres
"A autenticidade de Jorge Sampaio foi o fator capital na primeira campanha que travou para a presidência da Câmara Municipal de Lisboa, em que derrotou a coligação PSD/CDS liderada por Marcelo Rebelo de Sousa”, diria António Costa em 2017, no lançamento do segundo volume da biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista do Expresso José Pedro Castanheira. “Nessa campanha, partiu em desvantagem e esteve mesmo quase até ao fim em desvantagem". Segundo Costa, peça fundamental no staff da campanha da esquerda, "Sampaio estava preocupado com esse debate, achando que inevitavelmente o levaria à derrota”. Não podia estar mais enganado. “Dizia que o professor Marcelo é brilhante, fala muito bem, é criativo e, como tal, é imbatível em debate. Nós dissemos a Jorge Sampaio que o debate, pelo contrário, era o momento para ele marcar a diferença. Dissemos-lhe que havia uma coisa fundamental a fazer no debate, ser autêntico", recordou o líder socialista por ocasião do lançamento do livro.
Na equipa estratégica do socialista, Joaquim da Silva Pinto diz a Sampaio que "nem deve hesitar". António Guterres é contra: "O Marcelo vai destruí-lo!". E Gomes Mota estava reticente, segundo o biógrafo José Pedro Castanheira. Um debate na AECOPS (uma associação de empresas de construção), serve-lhes de ensaio. Aqui Marcelo ganha e preocupa a equipa socialista. Mas na semana que antecede o confronto, de acordo com José Pedro Castanheira, Sampaio prepara-se "intensamente", com uma lista enorme de perguntas. Na véspera fechou-se em casa a ouvir Mozart, Haendel e Lizt. Horas antes, o líder do PS tomou um calmante. De facto, tudo mudaria radicalmente em hora e meia nos estúdios da RTP.
Quando Sampaio, Marcelo e Hermínio Martinho (o terceiro candidato, líder do PRD) chegaram ao local do duelo, caía uma chuva miudinha. Marcelo confessaria: “Estou nervoso, mas lá dentro isto passa-me. Sampaio impacientava-se com os fotógrafos mas os comprimidos tinha-no tranquilizado, e Martinho conversava com os jornalistas. Marcelo não estava só nervoso, diria mais tarde estar fisicamente debilitado depois de uma gripe agravada pela campanha e uma angina, que lhe dava febre e levava no bolso uma estratégia com gravidade e peso, para atenuar as loucuras iniciais da campanha.
Às 21h00, o genérico anunciava o programa: “1ª Página”. A seguir aparece o jornalista Mário Crespo, o moderador, com uns óculos enormes, superados apenas pelos óculos ainda maiores de Jorge Sampaio. No começo das hostilidades, dá a palavra a Marcelo Rebelo de Sousa, tinha-lhe calhado abrir o debate no sorteio realizado minutos antes.
Round 1: nada de doutores, golpe de Sampaio
O jornalista começa por enfatizar que Marcelo desafiou “bactérias e coisa ainda mais feias” quando mergulhou no Tejo e quer saber por que razão quer ele ser presidente da Câmara. Marcelo usa uma linguagem muito cifrada, cita a frase de uma personagem de Cervantes sobre Lisboa e vende-se: “Sou uma pessoa ambiciosa, não o nego, já geri um Ministério, já fui secretário de Estado, fundei dois jornais e dirijo uma faculdade com seis mil alunos…” Refere-se ao adversário direto como “Dr.” Jorge Sampaio, e anuncia que vai “suspender todas as atividades inclusive partidárias”, para sublinhar que o secretário-geral do PS tem outras ambições e interesses para além de Lisboa e dos lisboetas. Aliás, um tema recorrente nas campanhas autárquicas da capital, com outros protagonistas.
Assim que fala, Jorge Sampaio usa um tom mais direto, começando por se referir a Marcelo como “Dr. Rebelo de Sousa”, para logo se corrigir:
– Vou passar a não o tratar por Dr. Rebelo de Sousa porque nos conhecemos todos há muitos anos, vou tratá-lo por Rebelo de Sousa e você trata-me por Sampaio, senão isto seria uma encenação gigantesca e não teria qualquer sentido...
Touché. A pessoalização do debate é o primeiro tiro de Jorge Sampaio para anular Marcelo. Na mira do segundo tiro estão, como seria de esperar, as iniciativas amalucadas do candidato da direita, mas é escusado Sampaio nomeá-las, basta-lhe insinuar.
Round 2: o brincalhão
– Eu não ando a brincar com Lisboa e os lisboetas. Não assumiria esta responsabilidade se estivesse a brincar, não estou a brincar com um milhão de pessoas... - atira Sampaio.
Quando volta a ter a palavra, Marcelo ainda está em condições de lutar, os golpes de Sampaio não o parecem ter afetado, mas engrena na armadilha do socialista:
– Acho bem a sugestão do meu amigo Jorge Sampaio, acho bem a sua sugestão de não o tratar por dr...
A seguir, insiste num dos pontos mais fracos de Jorge Sampaio, o facto de ser secretário-geral do PS e ter como aspiração ser primeiro-ministro em 1991:
– Não o vejo a ser presidente da Câmara a tempo inteiro...
– Agradeço-vos muito a esperança que estão a lançar para a opinião pública portuguesa sobre as virtualidades do PS para 1991... – retribui Sampaio.
O líder socialista tem uma presença de espírito maior, está mais rodado, passara os últimos anos em debates parlamentares. Marcelo não punha os pés no hemiciclo da Assembleia da República desde que saíra de ministro há cinco anos, tinha perdido o treino. E a estratégia ali era não ser ele próprio, era outra coisa...
– Você quer-me convencer que não tem ambições e que é uma figura angélica?... – aponta Sampaio.
– ... Pois, as pessoas têm ambições. Embora não esteja neste momento no meu horizonte ser primeiro-ministro, mas vamos supor que há essa ambição. Só que o Jorge Sampaio tem ambição com hora marcada. Eu tenho de ser um grande presidente da Câmara de Lisboa para poder ser primeiro-ministro daqui a quatro, oito ou doze anos. A minha ambição só seria satisfeita com um grande mandato na Câmara...
O golpe tinha sido bem aplicado, e Jorge Sampaio chutava a bola para a bancada insistindo sempre no mesmo ponto:
– Não há nenhuma campanha séria não brincalhona que se faça sobre Lisboa em torno destes temas...
Round 3: "O Rebelo de Sousa é um rapaz divertido"
Ao minuto 21 de um debate que teria uma hora e 26 minutos, Mário Crespo decide então passar aos “temas”. A discussão esmorece. Marcelo fala de “microestruturas” que entram em choque com “macroestruturas”, e de desconcentração administrativa, defende a criação do provedor do lisboeta, e o discurso torna-se muito codificado e técnico. Um cidadão comum tem dificuldade em perceber o que cada um deles está a discutir.
O tom doutoral de Marcelo estava a deixar os seus assessores gelados. Ao intervalo, o candidato da direita está mais fraco mas ainda não tinha ido ao tapete. Na segunda parte não conseguirá recuperar. Parece intimidado, tende mais a concordar com Sampaio do que a atacá-lo. Enreda-se num discurso cheio de números sobre a atribuição de casas de habitação social e a erradicação das barracas. Marcelo parece uma máquina de calcular, mas falta-lhe empatia.
Jorge Sampaio é o patrão da mesa, consegue condicionar o debate, intervém sem ser interrompido e fala muito. Mais importante do que o conteúdo é a forma como o diz, com uma voz mais funda e serena do que o tom metálico e nervoso de Marcelo. Tem uma gravitas natural e tira proveito disso. Rebelo de Sousa está sempre a mexer nos papéis, é o que tem mais dossiers em cima da mesa, e às tantas justifica a sua proposta para que os corredores de bus possam ser usados por carros com quatro pessoas. Sampaio já está com grande vantagem e não perdoa, usando um tom assassino entre o paternalista e o complacente:
– O Rebelo de Sousa é um rapaz divertido... e digo isto com toda a simpatia...
Marcelo não se sente, não contra-ataca, gosta de Sampaio e gostava que Sampaio gostasse dele, tem dificuldade em ser agressivo. Nunca ataca Sampaio pela aliança com o PCP, está tímido, deixa o socialista comandar a conversa, falta-lhe killer instinct, reage a rir:
– ... Sou tão divertido quanto o Jorge, conhecemo-nos há muito tempo, somos os dois divertidos...
– ... Sim, sou bastante, agora não sou divertido em matéria de corredor bus – replica Sampaio com ironia. – Dizer que os corredores bus vão ser para carros com quatro pessoas ao fim de semana... Mas quem é que vai controlar as pessoas que vão nos carros? Isso era um pandemónio...
Marcelo assume a derrota e a campanha vira
À saída, era tão evidente que o debate lhe correra mal que Marcelo admitia ao Expresso: “Tenho a impressão de que desiludi os meus apoiantes. Apostei numa imagem de seriedade e sou capaz de ter usado uma dose de elefante.” A inibição televisiva que o paralisava era uma doença política que o havia de molestar até ao fim dos anos 1990. Mais tarde perceberá que é preciso estar em boa forma física e psíquica para momentos decisivos como este.
“Não teve [killer instinct] para minha surpresa. E eu aparentemente ganhei o debate e com isso a eleição”, recordaria Jorge Sampaio décadas mais tarde. “Ele não gostou daquela experiência. Se há pessoa que merecia mais pelo seu gabarito intelectual, cultural, é ele. É uma pessoa séria. Mas que depois, pela sua capacidade de criar factos e de fazer pequenas histórias e divertir-se com isso, acaba por perder.” Silva Pinto diria a José Pedro Castanheira que Sampaio levou Marcelo "ao tapete". A vitória eleitoral deveu-se muito ao fulgurante desempenho que teve na televisão".
O comentário de José António Saraiva no Expresso seria premonitório: “Rebelo de Sousa foi um mau ator: optando por não utilizar o repentismo, a capacidade de improviso e até um certo maquiavelismo que habitualmente lhe são atribuídos, em favor de uma postura séria e responsável, acabou por dar de si uma imagem falsa que resulta insegura e intranquila. Este debate televisivo pode ter decidido as eleições.” E acrescentava aquilo que havia de se tornar realidade: “Se há um mês uma vitória de Jorge Sampaio, não sendo impossível, constituiria ‘uma surpresa’, a surpresa no domingo será uma vitória de Marcelo Rebelo de Sousa.”
Na guerra desses dias decisivos, os adversários colam nos seus cartazes, antes do seu nome escrito a vermelho, as letras a dizer “TV”, o que dá “TV Marcelo”, na época uma conhecida empresa de reparação de televisores (ainda faltam uns anos para Marcelo ser uma estrela televisiva). Uma maldade. Ideia de quem? Marcelo achará sempre que foi obra de um dos braços direitos de Jorge Sampaio, um jovem político seu delfim chamado… António Costa.
No último dia de campanha, o socialista já tem uma vantagem de 13 pontos percentuais nas sondagens internas. No dia eleitoral decisivo, a aliança da esquerda liderada por Sampaio obtém 49% dos votos. A lista da direita do PSD-CDS-PPM, encabeçada por Marcelo tem 42%. A esquerda ganha a capital pela primeira vez, com uma coligação nunca experimentada. Hermínio Martinho, do PRD, fica-se pelos 3%.
A seguir, a coabitação na câmara é mais amigável do que a refrega eleitoral. Presidente da autarquia e líder da oposição colaboram em muitos momentos. Para Jorge Sampaio, a atitude de ambos ajudou a melhorar a perceção sobre os autarcas. “Há de repente um secretário-geral e uma figura da envergadura do Marcelo a concorrer a uma câmara, isso contribuiu para figuras políticas de renome começarem a aparecer nas autarquias”, diria Sampaio mais tarde. Apesar das diferenças políticas entre a esquerda e a direita, muitas decisões são tomadas por consenso. “Ainda não havia PDM. Então, fizemos o PDM em três anos e o PSD aprovou”, lembraria Jorge Sampaio.
As vidas de Sampaio e de Marcelo continuariam a cruzar-se em muitas ocasiões depois da câmara de Lisboa, fosse por razões pessoais ou políticas. Na hora da morte do ex-Presidente, o atual PR faria um discurso visivelmente emocionado em Belém, para evocar "um grande senhor da nossa democracia", um político que "nasceu e se formou para ser um lutador e que tinha como causa da sua luta a liberdade e a igualdade", e que "provou que pode-se nascer privilegiado e converter a vida numa luta pelos não privilegiados". Toda a evocação de Marcelo falava de um amigo - "um homem bom na partilha da alegria e da dor alheia" - que lhe apareceu no Expresso no dia 25 de Abril de 1974 para saber novidades. O passado destas disputas políticas que ambos recordavam com um sorriso ficou lá atrás.
Nota: as declarações de Jorge Sampaio foram feitas ao autor deste texto em 2012, no âmbito da biografia “Marcelo Rebelo de Sousa”, de onde são adaptadas partes do artigo