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TC chumba lei da eutanásia mas aponta saída: "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância"

TC chumba lei da eutanásia mas aponta saída: "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância"
TIAGO PETINGA

Tribunal Constitucional deu razão ao Presidente da República por uma maioria de 7-5, mas foi além do que Marcelo perguntara, alargou a análise ao princípio da inviolabilidade da vida, e aponta saída para uma nova lei da eutanásia. "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância", diz o presidente do TC, para quem a inviolabilidade da vida "não constitui obstáculo inultrapassável". Os deputados estão convidados a contornar o impasse.

Marcelo Rebelo de Sousa foi criativo e constitucionalmente muito prudente quando mandou a lei que despenaliza a eutanásia para o Tribunal Constitucional (TC) - em vez de ir pela pergunta mais óbvia, sobre a inviolabilidade da vida, questionou a imprecisão de alguns conceitos da lei - e a decisão dos juízes deixam perceber porque é que o Presidente escolheu este caminho.

É que aos olhos do TC, "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância" e o Presidente estava informado do risco que correria se tivesse invocado a inviolabilidade da vida.

Assim, da segunda vez em que recorreu ao Tribunal Constitucional - a primeira foi em 2019, sobre a lei das "barrigas de aluguer" e Marcelo também viu as suas dúvidas confirmadas pelos juízes - o PR volta a ganhar no TC. Só que, desta vez, são os próprios juízes que, indo além do que ele perguntara, apontam solução para o impasse.

O que os juízes pedem agora ao legislador, que poderá fazer uma nova lei após o Presidente vetar a atual (e Marcelo está obrigado a vetá-la por inconstitucionalidade), é que apresente "condições claras, precisas, antecipáveis e controláveis" para que a morte medicamente assistida seja possível.

“Na verdade, a concepção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe - sublinham os juízes -, legitima que a tensão entre o dever de protecção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida". Como? "Por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”, lê-se no comunicado enviado à imprensa.

Ou seja, apesar de o pedido de fiscalização preventiva da lei feito pelo Presidente da República não ter referido a questão da inviolabilidade da vida humana, os juízes decidiram apreciá-la e concluiram que o artº 24º nº1 da Constituição “não constitui obstáculo inultrapassável”.

Pelo contrário, apontam uma porta de saída quando afirmam que a questão da eutanásia “pode ser resolvida pela Assembleia da República”, desde que se faça uma lei com condições “claras, precisas, antecipáveis e controláveis”, como explicou João Caupers, o atual presidente do TC.

Na óptica dos juizes, essas condições não estão reunidas neste diploma, devido ao conceito de "lesão definitiva", sobre o qual o Presidente da República tinha pedido a fiscalização preventiva

“O conceito de ‘lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico’, pela sua imprecisão, não permite, ainda que considerado o contexto normativo em que se insere, delimitar, com o indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado”, defendem os juízes. A norma é, assim, “desconforme com o princípio da determinabilidade da lei”.

Mudança de relator para ir além de Marcelo

Ao que o Expresso apurou, a decisão de alargar a análise do diploma enviado por Marcelo ao Tribunal abrangendo o princípio da inviolabilidade da vida (artigo 24º) motivou acesa discussão entre os juízes e levou mesmo a uma mudança do relator que não era e passou a ser Pedro Machete.

Em vez de se debruçarem apenas sobre a fiscalização dos aspetos da lei sobre os quais o Presidente da República levantou dúvidas (e que se prendiam com o caráter "excessivamente indeterminado" das regras previstas para um doente poder pedir a morte assistida), uma maioria de juízes entendeu dever dar um passo em frente. E, antecipando a questão que mais cedo ou mais tarde vários setores já tinham ameaçado querer suscitar junto do TC - a da inviolabilidade da vida, que os detratores da eutanásia consideram impossibilitar só por si a despenalização - essa maioria decidiu responder já a essa questão.

A decisão não foi unânime e levou mesmo ao afastamento do primeiro relator escolhido para este processo. Mas a vontade da maioria vingou e fez doutrina, ficando claro que, para o atual elenco do TC, esta lei da eutanásia era inconstitucional mas a eutanásia não o é necessariamente. Os juízes deixam, aliás, pistas para contornar a questão.

O Presidente da República pedira a fiscalização preventiva de alguns artigos da lei aprovada pelo Parlamento em finais de janeiro com base no facto de a regra para o doente poder pedir a antecipação da sua morte recorrer a “conceitos excessivamente indeterminados”. E em causa estavam os conceitos de "situação de sofrimento intolerável" e de "lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico". , que são as justificações - somadas à de "doença incurável e fatal" - para q ue o doente possa pedir a morte assistida.

Já no caso do outro conceito, o de sofrimento extremo, o TC considera que ele é possível de determinar “pelas regras da profissão médica”, pelo que não sofreu a censura constitucional. No entanto, os juízes consideraram o artigo como um todo e nesse sentido concluiram que ele é “desconforme ao princípio da determinabilidade da lei”, razão que justifica o chumbo.

Assim, dos cinco artigos que suscitaram dúvidas a Marcelo, quatro - os 4º, 5º 7º e 27º - foram chumbados pelo Tribunal.

Recorde-se que a legislação foi aprovada a 29 de janeiro na Assembleia da República - com os votos favoráveis da maioria da bancada do PS, 14 deputados do PSD, BE, PAN, PEV, IL, e deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira; votos contra de 56 deputados do PSD, nove do PS, PCP, CDS-PP e Chega - e a 18 de fevereiro enviada para o TC pelo Presidente da República a solicitar a sua fiscalização preventiva por utilizar "conceitos altamente indeterminados" além da "total ausência de densificação do que seja lesão definitiva de gravidade extrema".

Esta foi a segunda vez que o Presidente enviou uma lei para o Tribunal Constitucional. Da primeira, em 2019, tratou-se da chamada lei "das barrigas de aluguer".

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