Marisa e João. Um debate que mais pareceu um serão à lareira
PEDRO PINA / Lusa
Só a agenda fraturante, o estado de emergência e o Orçamento do Estado dividiram os candidatos apoiados por BE e PCP. Marisa Matias sugeriu que a opção dos comunistas vai sair cara aos utentes do SNS; João Ferreira lamentou que haja uma esquerda que desiste a meio do caminho. Pormenor: este foi o único frente a frente em que Ventura não foi assunto
Às 21h20, no exterior dos estúdios da RTP, os termómetros marcavam 6.ºC. A noite fria desta sexta-feira aconselhava o aconchego do lar, mas Marisa Matias e João Ferreira tinham um debate marcado e não podiam furtar-se a travá-lo. Carlos Daniel, o moderador, procurou, logo a abrir, que os espíritos de ambos aquecessem, desafiando-os a apresentarem, mais do que os pontos que os unem, as fronteiras que os dividem, mas entre a esquerda progressista (que o BE costuma encarnar) e a esquerda conservadora (com que o PCP é conotado) as diferenças foram residuais.
Marisa e João, destacados quadros do partido de Catarina Martins e de Jerónimo de Sousa, velhos conhecidos do Parlamento Europeu, economizaram nas hostilidades. Concordaram em quase tudo: na centralidade que o trabalho e a proteção dos trabalhadores devem ter, na oposição ao encerramento da refinaria da Galp em Matosinhos e até na assunção de que o ambiente tem servido para inúmeros discursos políticos vazios.
PEDRO PINA / Lusa
Os problemas ambientais e climáticos, observou o comunista, são "bandeirinhas de propaganda apenas quando convém". "A questão da descarbonização é usada, muitas vezes, como um slogan vazio", anuiu a bloquista.
Até mesmo quando Marisa Matias procurou explorar as posições mais ortodoxas do PCP na chamada agenda fraturante - como no casamento entre pessoas do mesmo sexo (legalizado há 11 anos), a adoção por casais homossexuais, a despenalização do consumo de drogas leves ou o fim das touradas -, João Ferreira reconheceu que "existirão diferenças" entre as duas candidaturas, mas que "não vale a pena inventá-las". E até deu exemplos de outras lutas em que as duas esquerdas ali em disputa, no futuro, poderão voltar a estar do "mesmo lado".
Numa conversa morna e sem atropelos como se viu noutras discussões destas presidenciais, só um aspeto separou verdadeiramente os candidatos que, segundo as sondagens, disputam o quarto lugar das presidenciais (ou a segunda posição da esquerda, se se preferir): a votação dos respetivos partidos no Orçamento do Estado - o BE esteve contra e o PCP absteve-se, viabilizando a proposta do Governo.
"Se toda a esquerda tivesse sido mais firme", os problemas do Serviço Nacional de Saúde estariam mais perto da sua resolução, sugeriu Marisa Matias, apontando a saída de médicos pela via da reforma e o reconhecimento de carreiras dos auxiliares de saúde como casos mais pardigmáticos.
Fiel ao argumentário do PCP, João Ferreira reconheceu as "insuficiências" do OE, mas sinalizou que pequenos avanços (como a contratação de mais profissionais de saúde) valem mais que avanço nenhum. E ripostou: "Valorizo aqueles que não desistem a meio de um combate."
Marisa Matias não se ficou e alertou que "a vida vai mostrar" que "muito em breve" a incapacidade de resposta do SNS será exposta. E sugeriu que a fatura, aí, terá de ser passada em nome de António Costa e de Jerónimo de Sousa.
A tática foi igual no que toca à legislação laboral (outro dos pontos críticos para o BE na negociação do OE para este ano), onde Marisa Matias continua a ver as impressões digitais de Pedro Passos Coelho e dos emissários da troika. João Ferreira defendeu de novo a honra do seu partido, recusando que "a ação política e governativa se resuma ao Orçamento do Estado". E mais, recordou: "O problema da legislação laboral não vem só da troika..."
Já a fechar o debate surgiu o tema da pandemia. Oportunidade para a última estocada de Marisa Matias. João Ferreira afirmou que "não podemos minimizar a situação que vivemos" e que "algumas medidas tardam em ser implementadas" (sobretudo de proteção da saúde nos locais de trabalho) e a bloquista usou a veemência do PCP nos sucessivos votos contra o estado de emergência para carregar sobre o adversário: "Não percebo e não compreendo como é que se pode votar contra essas medidas e pedir às pessoas que reduzam os seus contactos sociais."
E sem mais emergências a assinalar ou sobressaltos para qualquer um dos eurodeputados, o frente a frente terminou. Pormenor: foi o primeiro, com ou sem André Ventura, em que o presidente do Chega ficou mesmo fora do debate.