Dizer o que pensa doa a quem doer é uma das suas imagens de marca. Enfrentou Sócrates e Isabel dos Santos, Portas ou Durão Barroso. Mas também a ditadura Indonésia ou a administração americana. Ana Maria Rosa Martins Gomes é uma lutadora que não vira as costas a um bom combate. O próximo será o das presidenciais. Aos 66 anos, a alma revolucionária nunca deixou de lhe correr nas veias.
Depois de ter feito definitivamente as malas após de 15 anos no Parlamento Europeu, Ana Gomes aceitou o convite de um grupo não partidário da Etiópia para visitar o país. E as imagens que se seguiram da diplomata e política portuguesa a entrar num pavilhão repleto de apoiantes em Addis Abeba tornou-se viral. Nem uma estrela de rock teria direito a uma receção maior do que aquela, que entre longas salvas de palmas e gritos, passou até pela apresentação de três jovens adolescentes baptizadas com o nome da eurodeputada. Há três "Anna Gobese" etíopes. E Gobese quer dizer 'coragem'.
"Nestes anos todos, estive sempre à pega contra tudo e contra todos para apoiar os etíopes", disse a ex-eurodeputada, quando lhe pediram explicações sobre o inédito acolhimento. Mal tinha entrado no Parlamento Europeu, Ana Gomes foi chamada a chefiar uma delegação de observadores destacados para as eleições legislativas do país. Estavamos em 2005, mas os etíopes não esqueceram o empenho da eurodeputada pelo fim da ditadura no país, que não terminou mal pôs os pés de regresso a Bruxelas e aos trabalhos parlamentares. Transformou-se numa das várias causas de vida.
E tem muitas. "Eu movo-me por causas, não por cargos", disse, recentemente, já com a candidatura presidencial na mira. Quem a conhece, diz que foi sempre assim, revolucionária, empenhada e a dar o peito às balas sempre que for preciso, porque é essa a gasolina que a faz avançar. E o maior exemplo disso mesmo é, talvez, aquele que foi o seu começo: recebe como primeira embaixada a missão na Indonésia. Com Timor a ferro e fogo, traz o referendo à independência para a ordem do dia e não descansa enquanto não põe a pequeníssima ilha no mapa da diplomacia internacional.
A causa timorense deu-lhe o palco mundial e o reconhecimento nacional. Mas Ana Gomes já tinha carreira feita: licenciada em Direito, começou a sua actividade política na universidade e já quando a revolução democrática estava prestes a chegar. Com o 25 de Abril, juntou-se às fileiras do MRPP, mas foi sol de pouca dura. A via diplomática que decide escolher no final da licenciatura exige "uma certa contenção verbal", como a própria assume. Na altura, isso servia-lhe como uma luva e até lhe garantiu um passaporte para o Palácio de Belém, onde Ramalho Eanes viu na jovem diplomata de 28 anos o perfil de consultora presidencial.
Mas o tempo passou e o espartilho diplomático deixou de servir a Ana Gomes. Após os anos de Parlamento Europeu, pediu escusa de funções no Ministério dos Negócios Estrangeiros. "Não me quero conter", explicou, sem mais rodeios.
Voos da CIA, submarinos e Pandur: Portas como alvo
"Não me deixo atrofiar", resumiu numa entrevista dada a Ricardo Araujo Pereira. E a frase nem parece exagerada quando se faz uma pesquisa sobre as posições públicas assumidas por Ana Gomes nas últimas duas décadas.
Levada para o PS pela mão de Ferro Rodrigues no início deste século, nem por isso deixa de zurzir nos seus colegas de partido quando a oportunidade surge. Disse de José Sócrates que "alguém que vive à custa de um amigo é absolutamente anormal". Pediu "mais decoro e menos hipocrisia" a António Costa e não se coibiu de classificar como "lamentável e deprimente" o pré-anuncio feito pelo secretário geral do PS de um apoio à recandidatura presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa.
"Sou socialista, mas tenho uma cabeça para pensar e vim para a política para dizer o que penso", rematou na mesma entrevista a RAP. Além do mais, usa os recursos que tem para manter o fôlego nos momentos difíceis. "Fiz ginástica e patinagem. E natação. As costas largas são boas na política", diz Ana Gomes, que se assume como "mulher de muito trabalho" e de grande resistência.
Os tiros que dispara são de canhão, quando a falta de transparência nos negócios ou nas decisões políticas toldam o ambiente geral. Foi assim quando estalou o escândalo dos voos da CIA que, secretamente utilizaram bases nacionais para o transporte de prisioneiros. Durão Barroso foi o alvo principal de Ana Gomes que não se escusou a acusar o ex-primeiro ministro e líder europeu de não ter "escrúpulos" e de "violar o direito internacional, atuando na base de informações eram mentirosas". Com esse dossiê, também não cultivou a amizade com Luís Amado, enquanto ministro da Defesa do PS, antes pelo contrário.
Foi pela mão de Ana Gomes que o processo de investigação a Durão Barroso deu entrada na Justiça (onde viria a ser arquivado dois anos mais tarde) e, pouco depois, foi também dela a responsabilidade de lançar o inquérito ao envolvimento do então ministro da Defesa, Paulo Portas, no negócio dos submarinos. O dirigente centrista não foi alvo, no país e na União Europeia, de qualquer acusação. Mas, para Ana Gomes - que além dos submarinos foi muito ativa no caso das viaturas blindadas Pandur - o ex-ministro ficará sempre com o rótulo de culpado, apesar de nunca sequer ter sido arguido. Nas suas palavras, Portas é "um mentiroso compulsivo".
Ainda na área da Defesa, fez uma queixa-crime na PGR e na Comissão Europeia, contra a concessão dos Estaleiros de Viana à Martifer e chegou a ser processada por difamação pelo ex-ministro da Defesa do PSD José Pedro Aguiar-Branco. Foi arquivado.
A batalha da corrupção: de Isabel dos Santos a Rui Pinto
Os esquemas cada vez mais elaborados da corrupção, assim como o envolvimento dos políticos em negócios obscuros tornaram-se a nova grande causa de Ana Gomes. "Portugal tornou-se, como muitos outros países europeus, em verdadeiras lavandarias de cleptocracias de outros azimutes", disse à saída de Bruxelas a um grupo de jornalistas portugueses.
Os anos passados no Parlamento Europeu forjaram muitas das armas que usa contra o branqueamento de capitais e os esquemas de financiamento ilícito usados um pouco por todo o mundo. As diretivas europeias sobre integridade e transparência são mecanismos que defende com unhas e dentes.
"Todas as questões do combate pela integridade e transparência e contra a corrupção são causas em que o Parlamento fez a diferença. Toda a legislação que se criou entretanto a nível da cooperação entre as autoridades tributárias, da cooperação e regulação a nível bancário, do combate ao branqueamento e ao financiamento do terrorismo, é produto da pressão posta por este Parlamento na base das comissões de inquérito", disse Ana Gomes a um consórcio de jornalistas portugueses em Bruxelas quando abandonou o Parlamento Europeu.
"Este é um combate central e por isso é que não só o travei aqui como vou continuar a travá-lo na sociedade civil a partir de Portugal", prometeu a ex-eurodeputada à saída do PE. A corrupção tem vários rostos e circula em várias partes do mundo. De Angola à Madeira, do BES ao Benfica, de Isabel dos Santos a Ricardo Salgado, vão passos de anão na cruzada de Ana Gomes.
E, doa a quem doer, a agora candidata presidencial não tem medo de avançar. "O interesse nacional não é ter o seu pequeno paraíso fiscal e o seu pequeno centro de branqueamento de capitais, que é o que é a zona franca da Madeira", disse Ana Gomes ao mesmo consórcio. "Não posso pensar que Portugal pode ir combater os paraísos fiscais se mantém o seu pequenino paraíso fiscal no seu quintal, não é possível", conclui.
O mesmo é válido quando se trata de apontar o dedo aos esquemas de lavagem de dinheiro ou de fraude fiscal. Seja em Portugal, ou no estrangeiro, a palmatória de Ana Gomes é a mesma. E se Isabel dos Santos é acusada de "explorar o povo angolano" pela ex-eurodeputada, também o Benfica é suspeito de fazer um "negócio de lavandaria" quando negoceia João Félix em contratos de milhões.
Tanto a magnata angolana como o clube da Luz processaram criminalmente Ana Gomes por difamação. Mas, ela "sentadinha", como fez questão de explicar, mantém-se à espera da sentença, enquanto dá evidentes sinais de apoio ao homem que pôs cá fora o material que mais pode incriminar ambos os alvos da eurodeputada socialista. Rui Pinto, o pirata informático, teve honras de visita na prisão e a intervenção direta de Ana Gomes junto da ministra da Justiça para que o denunciante fosse libertado. "Está na prisão quem denunciou os crimes e não os criminosos", apontou a agora candidata.
As causas que Ana Gomes abraça parecem não ter fronteiras. Vão de Timor à Etiopia, do Benfica até Angola ou onde for necessário. Há pouco tempo, foram até Malta. A morte da repórter Daphne Carruana Galizia - que a antiga eurodeputada conhecia pessoalmente - voltou a tirar Ana Gomes do sério. Numa cimeira do PS europeu em Lisboa, interrompeu uma intervenção do primeiro-ministro maltês e gritou: “Vergonha! Vergonha! Apoias os corruptos“. E gritou o nome da jornalista assassinada. Mais tarde, justificaria: "O assassinato de uma jornalista não é de interesse para toda a Europa? É uma jornalista de investigação, que expôs a corrupção, que se bateu contra as mafias infiltradas no Governo do seu país e é evidente que o combate dela é o nosso combate", disse. E lá foi ela de novo para o campo de batalha.
com Susana Frexes, correspondente em Bruxelas
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