Um arranque triste para um Avante "sob ataque": "O que está em causa não é a Festa, é o partido"
Ana Baiao
Plateias por encher, setas desenhadas no chão, máscaras na cara. A abertura do "Avante!" foi diferente, também para os que não falham uma edição e que, à porta, lembravam os primeiros anos da Festa com nostalgia. As culpas foram apontadas ao PS, aos jornais, aos críticos. E só motivaram mais juras de fidelidade ao partido
É impossível não reparar em Fernanda. Ao longe, distinguem-se uns traços de dourado no guarda-sol vermelho que traz na mão. De perto, percebe-se: são foices e martelos coloridos, colados no material impermeável. Falta uma hora para o arranque da “Festa do Avante!” e Fernanda, uma das poucas adeptas indefectíveis que ali se juntam, está sentada à sombra, à espera de que as portas abram. Só faltou uma vez à festa e foi por motivos de saúde, mas desta vez é particularmente importante estar aqui: “Aqui não está em causa a Festa, está em causa o partido. O fio dos ataques é tão grande que não se lhe encontra a meada”.
Fernanda está longe de estar sozinha: o argumento do PCP tem sido precisamente de que a série de ataques de que é alvo, uma “obscura campanha antidemocrática”, visa enfraquecer o partido, mais do que a rentrée propriamente dita. Ali à porta, onde quem já esteve na Festa estranha a calmaria e a facilidade em circular, juntam-se os fiéis, que não desmobilizam e têm o discurso pronto. Nesta altura, cerrar fileiras é uma necessidade; a defesa da Festa e o partido é o denominador comum.
Ana Baiao
Tempos difíceis para o partido, que vai acumulando perdas eleitorais, também por responsabilidade do PS, comenta José Manangão, que entra na conversa a meio. Está ao lado do guarda-sol (ou guarda-chuva, conforme as necessidades) e é marido de Fernanda. E está zangado. Por um lado, com o PS - “ainda engana muita gente, porque diz que é de esquerda. O que me consola é que há quem engane o PS”, graceja, antes de mais seriamente comentar que o PCP nunca “apoiou” o Governo: “Foi uma negociação”. Também com os jornais… e com, genericamente, quem critica a Festa em tempos de pandemia: “Este é um vírus interesseiro, não ataca nos transportes, no que interessa ao grande capital. É uma fantochada!”.
Seja graças aos interesses do vírus ou do grande capital, daí a minutos José, que veio com Fernanda “com calma”, cedo, para “evitar ajuntamentos”, deparar-se-á com uma Festa despida: nos corredores onde as setas a branco indicam o sentido a seguir circula-se com facilidade; diante dos palcos as cadeiras estão maioritariamente vazias.
Ana Baiao
A preocupação com o cumprimento das regras é óbvia: as pessoas circulam pelos corredores definidos e chamam a atenção a quem não o faz, as máscaras estão quase sempre colocadas na cara. Mas o distanciamento também é mais fácil de cumprir quando a participação é visivelmente menor. Quando Jerónimo discursa, via altifalantes, para defender a Festa e dizer que muitos querem o PCP "confinado" em tempos de crise, poucas são as dezenas de pessoas que ouvem diante do Palco 25 de Abril. No final, uns gritos vagos de “PCP!”, umas tentativas de cantar a Internacional, e depois a dispersão.
O dia em que Cunhal não quis guarda-chuva
Será um momento triste, mas marcante, para quem conhece bem a Festa. Manuel Quintela, que também está apoiado na porta à espera da hora marcada - as 16h, e “olhem que a pontualidade é a nossa marca!”, avisa - veio em todas as edições, desde 1976.
Ana Baiao
Lembra-se de uma em que “choveu a potes” e Cunhal, então um “rapaz novo”, não quis guarda-chuva - “se os camaradas estão à chuva eu também estarei”. E lembra-se da primeira, na FIL, quando uma explosão numa cabine de som ameaçou a inauguração da Festa. “O que vale é que os camaradas eletricistas resolveram a coisa em 24 horas. Esses fascistas achavam que acabavam com a festa!”. Também apoiado no portão, outro camarada, a quem o facto de estar de muletas não demoveu de vir à Festa, contesta: “Em 24? Em duas horas!”.
Ana Baiao
Os dois, que nunca falharam uma só edição, são os primeiros a entrar no recinto. A abertura faz-se ordeira, a maior parte dos que estão ali têm alguma idade e não há qualquer ameaça de correria, apenas avisos para cumprir as regras: “Ponha a máscara, camarada, é melhor. Temos de ser nós a manter a vigilância”. É um ano diferente, mas há coisas que nunca mudam: à hora de fecho deste texto, ouvia-se a primeira Carvalhesa da 44ª edição do “Avante!”. A Festa continua.