Afinal, de quem é a "paternidade" das polémicas celebrações do 1º de Maio? Marcelo Rebelo de Sousa já fez questão de se distanciar, vincando claramente que não as idealizara estes moldes - estava a contar com uma coisa mais pequena e "restritiva", assegurou esta segunda-feira. O Governo não devolveu a bola diretamente ao presidente, mas já tinha lembrado que quem abriu a porta à cerimónia foi o próprio Marcelo. Pelo meio, como o Expresso escreveu esta sexta-feira, todos estavam ao corrente dos moldes da festa - mas não sabiam, e não fixaram, qual o número máximo de pessoas permitido (e foram várias centenas).
A primeira referência ao primeiro dia do trabalhador celebrado em tempos de confinamento aconteceu ainda abril ia a meio. Era altura de renovar o estado de emergência e Marcelo Rebelo de Sousa referia-se ao feriado explicitamente no seu decreto presidencial: “Tendo em consideração que no final do novo período se comemora o Dia do Trabalhador, as limitações ao direito de deslocação deverão ser aplicadas de modo a permitir tal comemoração”, embora com “limites de saúde pública”.
Passaram-se duas semanas, a comemoração foi de facto permitida e com ela abriu-se um debate aceso entre quem defende que as celebrações que juntaram de 500 a 800 pessoas - dependendo das fontes - decorreram de forma responsável e quem acredita que foi dado um mau exemplo à população.
Esta segunda-feira, foi o próprio presidente da República quem, à conversa com uma rádio açoriana (a Rádio Montanha), decidiu deixar clara a sua opinião sobre a polémica. O que o presidente tinha em mente quando abriu a porta às celebrações era uma comemoração “mais simbólica e mais restritiva”, assegurou Marcelo, mais ao estilo da do 25 de Abril, que por pressão mediática encolheu até receber menos de cem pessoas dentro do Parlamento. Mais claro ainda: “Não era desta dimensão e deste número”. Afinal, “a interpretação das autoridades sanitárias foi mais ampla, extensa e vasta” do que Marcelo idealizara. Pouco depois, de visita a uma livraria neste que foi o primeiro dia do início do desconfinamento, Marcelo enfatizaria a ideia: “Quem tem poder para decidir, decide”, neste caso as “autoridades sanitárias”.
O presidente queria deixar claro que não fizera mais do que abrir a porta à cerimónia e que a execução, controversa - com muitas críticas à direita, Rui Rio disse que era uma "vergonha" -. não tinha ficado a seu cargo. Em contraponto, ainda aproveitou o momento para elogiar a postura da Igreja Católica, que pediu aos crentes que não se desloquem a Fátima no 13 de maio: “É um bom exemplo”. Para bom entendedor…
Governo lembrou decreto presidencial
O Governo não quis responder diretamente a Marcelo, mas também não chamou a si as responsabilidades pela cerimónia. Poucos minutos depois de o presidente ter tornado pública a sua opinião, o secretário de Estado António Sales era instado a comentar as declarações de Marcelo. Deu uma resposta em duas partes: por um lado, “é às autoridades de saúde que cabe a definição de regras sanitárias”; por outro, “cada vez que pestanejamos a realidade muda”, e as decisões são tomadas em função disso.
Mas também o Governo já tinha implicado o presidente de forma mais direta na polémica. Durante o fim de semana, em entrevista à SIC, a ministra da Saúde, Marta Temido, era questionada sobre as celebrações do feriado e fazia questão de lembrar: a comemoração "constituía uma exceção especificamente consagrada no decreto presidencial relativo ao estado de emergência".
Marcelo previa imposição de restrições
No decreto de Marcelo, previa-se especificamente a realização das comemorações do 1º de Maio, mas com uma ressalva: "Podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes, com base na posição da Autoridade de Saúde Nacional, as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo a limitação ou proibição de realização de reuniões ou manifestações que, pelo número de pessoas envolvidas, potenciem a transmissão do novo coronavírus".
Um dia depois, no seu próprio decreto, o Governo executaria assim a ideia do presidente: a "participação em atividades relativas às celebrações oficiais do Dia do Trabalhador" seria uma exceção às obrigações de confinamento, "mediante a observação das recomendações das autoridades de saúde, designadamente em matéria de distanciamento social". Remetia-se ainda para o artigo 46, que previa que forças e serviços de segurança "articulassem" com as centrais sindicais a "organização e a participação dos cidadãos nas atividades relativas à celebração do Dia do Trabalhador".
Governo e Marcelo falaram com CGTP
Mesmo que os protagonistas políticos não estivessem de acordo com a celebração, não se pode dizer que tenham sido totalmente surpreendidos. Como o Expresso escrevia na edição semanal do último sábado, todos foram mantidos ao corrente - o Governo reuniu-se duas vezes com a CGTP para acertar os moldes da celebração; Marcelo falou ao telefone com a líder da central sindical, Isabel Camarinha. Mas, lendo as formulações a que Marcelo e Executivo recorreram nos respetivos decretos, poderia argumentar-se que o presidente abrira espaço para a imposição de restrições ao número de pessoas que poderiam estar presentes na comemoração - algo que não aconteceu.
Marta Temido ainda admitiu que um número que podia chegar às 200 pessoas - e que foi afinal muito superior - seria excessivo, mas o Governo, representado nestas reuniões com os sindicalistas por Temido e Eduardo Cabrita, nunca chegou a fixar um número máximo de presenças. “Haverá bom senso”, garantia, nesse dia, fonte governamental. A CGTP pedira confiança na sua capacidade de organização. Já no sábado, Cabrita mantinha que a CGTP dera uma prova de “exemplar organização”. No rescaldo, ninguém, além dos sindicatos, parece querer assumir a "paternidade" da cerimónia.