Política

O primeiro dia do congresso dos ex-amigos de Joacine

O primeiro dia do congresso dos ex-amigos de Joacine
Ana Baião

A deputada entrou a partir tudo, a dar murros na mesa, literal e politicamente. E saiu em estado de negação. A história do dia em que as chagas do Livre ficaram (ainda mais) à vista de todos.

O primeiro dia do congresso dos ex-amigos de Joacine

Liliana Valente

Coordenadora de Política

O tabu pairava no ar como um fantasma. Iria ou não Joacine Katar-Moreira aparecer e falar no congresso do partido que praticamente já decidiu que não quer ser representado por ela? Logo de manhã, percebeu-se que depois de passar semanas calada, a deputada iria ao congresso do Livre em Lisboa para gritar para quem quisesse ouvir a sua versão dos acontecimentos. Tentou virar o congresso com dois discursos inflamados, tem esperança que consiga virar a nova Assembleia do partido e saiu a dizer que tinha um “voto de confiança”. Interpretação contrariada nas horas anteriores e no minuto seguinte: “Não se tratou, em absoluto, de um voto de confiança”, disse Pedro Mendonça, membro da direção. O divórcio parece mais do que certo, mas não acontecerá sem que antes o partido, que se diz diferente dos outros, se veja envolvido em mais dias de psico-drama político.

Joacine esteve quase sempre sentada na primeira fila, dando a cara às balas que não pararam de ser disparadas. Um a um, foram subindo ao palco os candidatos para a nova Assembleia do partido, aquela que vai decidir o futuro da relação com Joacine. Foram 34 (dos 66 candidatos) aqueles que decidiram apelar ao voto - no Livre o órgão máximo elege-se por candidaturas individuais. E nem todos abriram o jogo sobre o que vão fazer se forem eleitos. Contas por alto (desconte-se uma ou outra falha de interpretação por dificuldades de som), houve 13 candidatos que disseram claramente que vão votar favoravelmente à resolução da Assembleia do Livre que propõe a retirada da confiança política à deputada, e nem um elemento subiu ao palco para ir contra a proposta da Assembleia, defendendo a deputada de forma clara. Apenas dois candidatos defenderam que não se deveria ir por esse caminho e tentar aprofundar a comunicação entre as partes.

O Livre entrou naquela sala na Junta de Freguesia de Alvalade como quem entra num consultório público e mediático de psicologia para terapia de casais, com um elemento de um lado e pelo menos 40 do outro. A balança desequilibrada nesta relação foi-se notando ao longo do dia. Vários foram aqueles que foram dizer a Joacine que não conseguiam mais, que tentaram “tudo, tudo o que estava ao alcance” (frase de Ana Natário) ou que “fizeram todos os esforços possíveis e o inimagináveis para que tudo corresse bem” e se mantivesse o status do relacionamento (Pedro Mendonça). Disseram-lhe que “passaram longas horas” e “ouviram todas as partes” (frases de André Wemans); que não conseguem mais “a partir do momento em que continua a crispação” (Bernardo Vidal); que houve “episódios que causaram perplexidade e descontentamento” (Bruno Machado); que fizeram “um esforço hercúleo”, que é “ingénua a ideia de sanar relações” e que o objectivo é “reconstruir o partido assumindo que não abandonam deputada", mas que esta "já" os "abandonou” (Rodrigo Brito).

Respostas dadas ao longo da tarde, ao discurso que de manhã a deputada fez, jogando ao jogo das culpas. Joacine chegou ao congresso para se defender. Aprendeu rápido que na política como no futebol há técnicas quase infalíveis, como a de usar o ataque como defesa. Perdeu o pé quando nas respostas a críticas de membros da Assembleia lhes disse em tom elevado: “É mentira! É mentira! Tenham vergonha!”. Antes, já tinha puxado das armas do racismo. “Usam o ódio do qual tenho sido alvo para me afastar” ou “elegeram uma mulher negra que foi útil para a subvenção”. Visivelmente exaltada acusou os membros do partido de “perseguição absoluta”.

Talvez por isso Joacine seja diferente no partido que representa. Teve um discurso mais político, foi mais assertiva, muitas vezes com sangue a ferver. Algumas das características que alguns membros admitiram que a deputada tem e que os apaixonou, levando-os para o Livre. Um deles deixou uma mensagem áudio e nela dizia que talvez Joacine esteja a ser “mal aconselhada”, mas que pesadas as circunstâncias, o Livre “não pode ser o partido dos amigos de Joacine. Devemos defendê-la, mas não ser cegos na sua defesa”.

Drama processual

O primeiro dia de congresso do Livre foi dominado pela questão que os divide: a retirada da confiança política à única deputada que elegeram em Outubro. A conta-gotas foram sendo referidas ideias e projectos para futuro. Muito a conta-gotas. Tal como num partido grande, o primeiro dia foi virado para dentro, o segundo deverá ser para fora. Será este domingo que serão debatidas as moções, depois de esmiuçada até ao tutano a decisão estratégica sobre a representação parlamentar.

E foi mesmo esmiuçada. Grande parte da manhã foi para apontar quem decidia sobre a proposta da Assembleia de retirar a confiança política. Sá Fernandes, do Conselho de Jurisdição, bastante interventivo, defendia uma comissão para mediar o conflito, dar todas as oportunidades de contraditório porque considera que o que estão a tentar fazer a Joacine é “uma injustiça”. O congresso acabou por votar por adiar a decisão para a Assembleia, o órgão máximo entre congressos, em vez de a tomar ali no congresso à frente de todos. Foi a única vez que Joacine e Rui Tavares votaram do mesmo modo. O fundador do partido defendeu que esta decisão tão fundamental na vida do partido que fundou deveria ser tomada pelos novos órgãos eleitos, para que tudo ficasse claro do ponto de vista processual. “ Os próximos órgãos saberão concluir e não prolongar, nem arrastar esta questão, pois o Livre tem o dever de defender os seus princípios com firmeza e de ter a sua consciência tranquila por o ter feito da forma mais justa e humana possível para quem está envolvida nesta questão”, disse.

Foi no entanto este drama processual que permitiu a Joacine fazer uma interpretação sobre o que aconteceu. Prometeu uma "reflexão" depois do "complicadíssimo" dia, mas acredita que a votação renhida (52 contra 50 votos) para que a decisão seja adiada e tomada pela Assembleia e não pelo congresso lhe dá uma oportunidade e mostra que "a maioria dos membros do partido não está ansiosa e não tem necessidade nenhuma" que ela vá embora. Tudo junto, sentiu como um "voto de confiança". Uma negação do que foi o dia, conclui a direcção que não compreende como pode a deputada não entender que a divisão foi na forma e não no conteúdo: ou seja, que decidem votar na Assembleia para que todos os passos processuais sejam tomados e não em congresso de forma abrupta, mas que por maioria decidirão pela sua saída.

O Livre vai decidir se abdica da representação parlamentar e isso não é uma decisão de somenos num partido que renasceu das cinzas depois das eleições de 2015 quando não o conseguiu. É esta resiliência que ainda serve de cola a muitos dos membros do partido. Dizem que é diferente: “Somos um partido partilhado, não somos um partido unipessoal, não somos um partido de líderes ou chefes, somos um partido com uma decisões horizontais, com uma hierarquia horizontal”, resumiria Pedro Mendonça, do grupo de contacto. “Não é um partido unipessoal” terá sido das expressões mais ouvidas ao longo do primeiro dia de congresso. O alvo era só um. Será abatido politicamente do partido nos próximos dias.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: lvalente@expresso.impresa.pt

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