Política

“Cavaco tem razão. A situação é, de facto, insustentável”: uma das últimas entrevistas de Freitas do Amaral ao Expresso

Freitas do Amaral em 2006
Freitas do Amaral em 2006
Jose Carlos Carvalho
Quatro anos depois de deixar o Governo de Sócrates, Freitas diz-se “capaz de, pelo menos mais uma vez, poder servir o Estado”. No dia em que morreu Diogo Freitas do Amaral, o Expresso republica um texto de 3 de julho de 2010
“Cavaco tem razão. A situação é, de facto, insustentável”: uma das últimas entrevistas de Freitas do Amaral ao Expresso

Ângela Silva

Jornalista

Só aceitou dar uma entrevista ao Expresso por escrito. Mas, afinal, nem poupou nas palavras. Depois de quatro anos "de ostracismo social" por ter integrado um Governo do PS, Freitas do Amaral torce por Cavaco mas não verga à direita. Avisa, aliás, que um governo só de direita em tempo de austeridade estaria "condenado à ineficácia". A sua aposta é num acordo PS/PSD/CDS. Depois das presidenciais. Quanto à ''situação insustentável'' denunciada pelo PR, Freitas não vê razões para Sócrates enfiar a carapuça: "devia ter comentado que é precisamente por a situação ser insustentável que está a tomar medidas duras".

Cavaco Silva telefonou-lhe a agradecer o apoio que o professor lhe manifestou para que se recandidate a Belém?
Telefonou-me, como era natural, dado que nunca tínhamos falado no assunto, nem eu o avisei do apoio que lhe ia dar. Ligou-me de Belém, após regressar das férias nos Açores.

Há quatro anos que abandonou o Governo de Sócrates. Vendo de fora, que balanço faz da governação socialista?
O balanço do Governo Sócrates I é bastante positivo até ao fim de 2008: fez reformas estruturais e conseguiu reduzir o défice excessivo. Só o ano de 2009 correu mal, devido à crise, às medidas para a enfrentar e, infelizmente, também a algum eleitoralismo. Quanto ao Governo Sócrates II, é cedo para fazer um balanço. Não têm sido tempos fáceis. E não vão melhorar tão depressa.

Estar num Governo do PS foi um privilégio ou um equívoco?
Foi uma oportunidade, que me deu muito gosto. Só saí por razões de saúde. Não sair teria sido trágico.

Nestes quatro anos fez muitos pareceres para o Governo?
Não fiz muitos, não. Mas elaborei um projeto de novo regime jurídico das fundações, que considero da maior importância para o país. Espero que não demore muito a avançar ou, pior, que não fique na gaveta.

E teve algum convite do primeiro-ministro depois de sair?
Tive, e alguns muito atrativos. Mas, por uma razão ou por outra, acabaram por não se concretizar. Desde que fiquei física e psicologicamente refeito, retomei a minha disponibilidade para, dentro de certos limites, voltar a atuar como servidor do Estado.

O primeiro-ministro continuou a ouvi-lo ? Sócrates ouve ou finge que ouve?
O primeiro-ministro manteve sempre a maior cordialidade comigo. Temo-nos visto quatro a cinco vezes por ano; e falamos de tudo. Sócrates ouve e memoriza bem, mas só faz o que a sua intuição lhe dita. Não sei se terá sempre os melhores conselheiros.

A culpa da situação do país é da crise mundial ou das opções do Governo?
Em boa verdade, podemos falar em cinco crises: a orçamental, herdada de 2004-05; a de 2008-09, financeira e internacional, que nos invadiu sem dó nem piedade; a da especulação contra o euro (2010); a da falta de liquidez da banca (de que pouco se sabe); e a que tem mais tempo e ninguém parece saber como se resolve, que é a do esgotamento do nosso modelo económico. Onde andam os nossos brilhantes doutores em Economia? Ninguém fala da questão estrutural.

Acha bem Cavaco repetir que Portugal está numa situação insustentável?
Cavaco tem razão: a situação é, de facto, insustentável. O Governo é que não devia ter enfiado a carapuça.

Em qual dos países se revê? No de Cavaco ou no de Sócrates, que diz sentir-se sozinho a puxar pelo país?
Se o PM se sente sozinho a puxar pelo país, o conselho amigo que lhe dou é que deixe falar os ministros e os deputados e que ponha o PS a cumprir a sua obrigação. Mas é um facto que somos um país de deprimidos. Às vezes apetece-me fazer um programa na RTP, que se chamasse "Portugal no seu melhor".

Qual é a sua opinião sobre o que se está a passar no mundo e na Europa?
Temos assistido a uma sucessão de fenómenos, agora simultâneos: crise financeira norte-americana; crise económica europeia; crise de paradigma nos países de capitalismo avançado; falta de competitividade da economia ocidental face às potências emergentes; não regulação da globalização económica; e fracasso do Pacto de Estabilidade e Crescimento associado ao euro, que só beneficiou os países mais ricos. No que toca a Portugal, só vejo uma solução: uma política constante e interministerial de reforço da nossa competitividade externa; e uma reorientação rápida das nossas exportações para o Norte de África, PALOP e América Latina, para começar; depois, Médio Oriente, Rússia e países asiáticos. Tudo apoiado na reconstituição de uma frota mercante e na criação de um Ministério do Comércio Externo e da Marinha Mercante. Com meias medidas não vamos lá.

Acusou o PM de despesismo eleitoralista nas últimas eleições. Teria sido bom Manuela Ferreira Leite ganhar?
Não acusei, apenas constatei. Quanto a Manuela Ferreira Leite, é patente que não nasceu para fazer política.

Antevê eleições antecipadas?
Tudo vai depender do resultado das presidenciais e da evolução da crise. Acho que antes de se convocar eleições, deveria tentar-se um governo de coligação ou um pacto parlamentar.

Mas Sócrates não está esgotado?
Sócrates não ficará esgotado enquanto convier às oposições que ele continue e enquanto ele estiver convencido de que pode tirar-nos da crise. Mas se a crise piorar até março (é possível) quererá ele continuar? Sócrates é determinado. mas acabará confrontado com a pergunta do "If", de Kipling: "És capaz de aguentar quando já nada em ti resta senão a vontade, que te diz: aguenta?".

O apoio à recandidatura de Cavaco sinaliza o desejo de voltar ao seu ponto de partida - o centro-direita?
Estou onde sempre estive: rigorosamente ao centro, mas como em Portugal não há centristas (azar meu) vejo-me obrigado a apoiar o centro-direita ou o centro-esquerda, conforme o melhor para o país em cada momento. Não dá votos, mas deixa-me em paz.

Sentiu muitas sequelas por, vindo da direita, ter integrado um Governo PS?
Foram quatro anos de penoso ostracismo social. As pessoas tendem a ver a política como um despique de clubes de futebol. Interrogo-me se será apenas clubismo ou, mais profundamente, tribalismo. Mas o pior já passou.

‘‘Um Governo só de direita está condenado à ineficácia’’

Acha bem o Governo usar a golden share na PT para travar a Telefónica?
Concordo inteiramente. O Estado português tem que garantir, por todos os meios, que as empresas estratégicas continuem portuguesas. Os grandes países conseguem sempre, por pressão política, evitar que lhes comprem as suas e nós só o podemos fazer pelos meios jurídicos. Nunca considerei que faça parte do projeto europeu os grandes comerem os pequenos. Se nos compram a PT, a EDP e a Galp, o que é que fica? Restaurantes e as Pousadas de Portugal? Obrigado, mas não chega.

Passos Coelho defende a progressiva saída do Estado da economia e políticas sociais. É esse o caminho?
Parece-me um grande erro. Que o Estado pesa de mais na sociedade é um facto. Mas retirar o Estado da economia, educação e serviços sociais seria um retrocesso de mais de 100 anos. O caminho tem de ser outro — um Estado-garante que reoriente os seus apoios para os que precisam, deixando ao mercado os serviços pretendidos por quem possa pagar. Não podemos onerar mais os pobres, nem continuar a isentar tanto os ricos. O princípio da universalidade gratuita deve ser substituído pelo da proporcionalidade como medida de justiça. E o mesmo para os impostos: é justo que quem ganha ¤ 150 mil por ano pague a mesma taxa que os gestores que, escandalosamente, recebem 2 milhões? Roosevelt taxou-os em 75%! Mas a esquerda de 2010 está mais à direita do que a esquerda americana de 1930.

Admite apoiar Passos Coelho?
Não é provável. Acho-o demasiado neoliberal, pelo menos por enquanto.

Quando viveu nos EUA guinou à esquerda. Mas hoje o princípio da solidariedade social começa a estar em causa também na Europa. Salvar o Estado Social implica reformá-lo?
Claro que o Estado Social tem de ser repensado. Mas nunca com o objetivo de o eliminar, mas de lhe salvar a vida.

As reformas que o país exige não são mais fáceis com um Governo à direita?
Não, pelo contrário. Medidas de austeridade tomadas por um Governo só de direita, com o PS, PCP, BE, UGT e Inter na rua, seria um Governo condenado à ineficácia e à agitação social. Devíamos ter sim, na altura própria, um Governo de Bloco Central — mais justificado na crise atual (que é mundial) do que em 1983 —, ou então um pacto de maioria parlamentar.

Com promoção do Chefe de Estado?
Acho que sim.

O CDS pode ser útil a um futuro Governo ou é melhor uma maioria absoluta de um só partido?
Depende das circunstâncias e dos resultados eleitorais. O CDS prova sempre bem no Governo.

Ver Paulo Portas como ministro dos Negócios Estrangeiros (um sonho do próprio que Sampaio travou em 2004) seria para si um choque?
Portas tem sentido de Estado. Não sei porque é que não poderia ser MNE. Já por lá passaram alguns bem piores.

Cavaco devia ter ido ao funeral de José Saramago?
Por mim, gostaria que tivesse vindo. Mas não se pense que é isso que me levará a deixar de votar nele.

Gosta de ver Sócrates a abraçar a Venezuela de Chávez?
Gosto de ver Sócrates a abraçar a Venezuela. Chávez é outra conversa. Oxalá que o povo venezuelano, que tem tradições democráticas, o mande embora com uma boa reforma.

Está reformado da Universidade e fora dos partidos. O que é que ainda se imagina a fazer em termos públicos?
Sinto-me capaz de, pelo menos mais uma vez, poder afirmar-me como servidor do Estado. Conheço hoje bem o PS e o PSD (além do CDS). Se o país precisar de quem, sem ambição governativa, estabeleça pontes entre os dois ou os três partidos, julgo que poderei ajudar. Mas ninguém é indispensável: posso continuar um percurso solitário.

18 páginas à mão

Não é a primeira entrevista de Freitas do Amaral depois de ter saído do Governo, mas é a primeira vez que fala do período “de brasa”, de duração e desfecho imprevisíveis, que assolou o país. Freitas pôs condições ao Expresso: falaria por escrito ou nada. O resultado foram 18 páginas manuscritas, enviadas por fax de Vila Viçosa, onde passou o último fim de semana a descansar. Antes, tinha estado em Arcos de Valdevez, a homenagear Mário Soares

Texto orgininalmente publicado a 3 de julho de 2010

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