Política

André Gonçalves Pereira (1936-2019): “A qualidade da nossa classe política é péssima”

É um senhor do Direito português que, aos 71 anos, a idade que tinha quando esta entrevista foi publicada, chegou a um momento da vida em que distribuía críticas e elogios com o à-vontade de quem já não precisa de ter receios em expor as suas opiniões. Bem-humorado, não se furtou a falar de aspectos íntimos da sua personalidade, forte e ampla. Leia aqui a entrevista dada por André Gonçalves Pereira ao Expresso e publicada na edição da revista do Expresso de 23 de junho de 2008

É um senhor do Direito português. Do alto dos seus 71 anos e como sócio sénior do mais antigo escritório de negócios em Portugal, já foi ministro dos Negócios Estrangeiros, passou pelas Nações Unidas e chegou a uma fase da vida em que pode distribuir críticas e elogios com o à-vontade de quem já não precisa de ter pudor em assumir as suas opiniões e idiossincrasias. Faz aquilo que lhe dá prazer, prefere conversar com as mulheres - mais misteriosas e interessantes - do que com os homens e segue o mesmo refrão de sempre: nunca aceitou, nem aceitará, que nenhum patrão lhe ponha a mão. Maníaco pela pontualidade, não se inibe de controlar, ao rigoroso minuto, o tempo dedicado a cada actividade. Para esta entrevista, agendou uma hora, e as perguntas foram feitas ao ritmo do ponteiro. Enquanto havia tempo, ia-se avançando. Quando o sinal tocou, acabou. Bem-humorado, não se furtou a falar de aspectos íntimos da sua personalidade, forte e ampla. Como amplos são os seus gostos, eruditos. Numa mão segura um charuto cubano, na outra ostenta um valioso relógio, que lhe serve de guia para não esquecer os sucessivos compromissos. Mas a ostentação não se faz pelo que se tem. Tanto que não choca vê-lo assinar um qualquer documento com uma simples caneta BIC! Quando foi preciso, André soube vender os seus quadros de Dalí e Picasso, em nome da sobrevivência do escritório. O peso dos grandes negócios ali realizados não se vê na moda do aço escovado nem dos muitos vidros, opção de alguns escritórios mais recentes. Vê-se num gabinete discreto e na “patine” dos sofás...

Quais são as memórias mais remotas que tem da sua infância?
Nasci em 1936, e a primeira coisa de que me lembro é da visita que fiz com os meus pais à Exposição do Mundo Português, em Belém. As minhas recordações vão também para a primária, na Escola Inglesa, e, de forma muito nítida, para os tempos da II Guerra Mundial. A minha mãe era francesa - felizmente, ainda é viva -, o meu pai sempre foi “aliadófilo”, e ambos seguiam com muita atenção o desenrolar da guerra. Ainda hoje me comove o dia 24 de Agosto de 1944, quando Paris foi libertada pelos próprios franceses e vi a minha mãe a chorar... Nunca me esquecerei.

Recebiam familiares de França?
Eu era muito pequeno quando as pessoas passaram lá por casa, mas a minha mãe e o meu pai tinham contacto com as organizações que protegiam os exilados.

Mas têm ascendência judaica?
Não, tanto quanto é possível saber, pelo menos no que respeita a Portugal. Mas tínhamos muitos amigos judeus, porque o meu pai era próximo do presidente da comunidade judaica. Prestámos assistência a muitas pessoas que passaram por Portugal rumo aos Estados Unidos.

A sua ascendência paterna é goesa.
O meu pai nasceu em Goa, e a mãe dele pertencia a uma família muito antiga. O meu pai e o seu único irmão vieram estudar para Lisboa. A primeira vez que estive em Goa, em 1981, já era ministro dos Negócios Estrangeiros. Visitei a casa em que o meu pai nasceu e a capela que Lourenço da Silva Gonçalves, um antepassado da minha avó, mandou construir, 20 anos após a invasão portuguesa por Dom Afonso de Albuquerque. A família da minha avó era do clã das famílias pró-portuguesas, católicos, e havia ainda os hindus, antiportugueses. Enquanto lá estive, o primeiro-ministro - que era um descendente de uma família hindu - disse-me: «Como sabe, a minha família luta com a sua há mais de 400 anos.» São boas recordações. Da infância, ficou a lembrança do magnífico caril da minha avó, especialmente forte e picante, de que ainda gosto. Já fui sete vezes à Índia. É um país que me interessa especialmente.

Como era a relação com os seus pais e com o seu irmão?
Com o meu irmão eram tensas. Sentia-me discriminado por ser o mais novo. Já corrigi tudo, naturalmente.

Ele vive nos Estados Unidos?
É empresário e, por isso, vive no mundo inteiro.

Mas era mais próximo do seu pai ou da sua mãe?
É impossível dizer. A minha mãe era profundamente francesa, o meu pai falava fluentemente francês, e quando a minha mãe estava presente falávamos em francês. Ambos eram muito próximos e sempre nos deram enorme liberdade. O meu pai era professor universitário e dava grande importância ao aproveitamento escolar. Não me esqueço que, para ter um automóvel, tirei a nota mais elevada no primeiro ano de Direito. Quinze dias depois tive um acidente ao sair da casa do professor Marcello Caetano.

Com quem almoçava regularmente...
Isso foi muito mais tarde. A minha relação com ele era dupla. Por um lado, era, e sou, muito amigo dos filhos. Por outro, fui seu aluno na Faculdade de Direito. Depois ele convidou-me para assistente e acabei por ser o seu sucessor na cátedra. Convivi com ele durante cerca de oito anos na Faculdade, e mais tarde também, quando ele já era primeiro-ministro. Às vezes ia almoçar com ele, outras vinha ele almoçar à minha casa, no Estoril, um sítio sossegado, com uma vista muito bonita. Era uma relação de professor para estudante...

Sempre mantiveram essa distância?
Sempre. E foi esta, fundamentalmente, a razão que me levou a não aceitar o convite que me fez para ser seu ministro dos Negócios Estrangeiros, quando tinha 31 anos. Poucos teriam recusado. Mas eu nunca tive patrão e também não o quis ter nessa altura.

Mas aceitou o convite de Francisco Pinto Balsemão...
Porque o Francisco é um amigo íntimo de toda a vida e não foi minimamente um patrão. Nem ele se assumia como tal, embora lhe reconhecesse, como é natural, o carácter de primeiro-ministro. Fui, aliás, um dos únicos ministros que não o atraiçoaram. Mas não era uma relação de patrão e empregado. Isso nunca tive e espero nunca vir a ter... A relação mais parecida que tenho com isso é a relação de obediência à minha mulher.

Namorava muito?
O mais possível. Sempre gostei muito da companhia de mulheres, coisa que, suponho, poucos homens realmente gostam. Quando há jantares, nunca me sento ao pé dos homens a falar de futebol e de política, temas que pouco me interessam.

O que é que as mulheres têm que aos homens falta?
Mistério. Nunca percebi as mulheres, nem a alma feminina. Mas talvez já esteja mais perto.

É casado há quantos anos?
Casei-me tarde, com 50 anos.

Porquê tão tarde?
Casar nunca foi um objectivo. Tive duas grandes paixões: a primeira não podia casar-se comigo, porque era casada e estávamos no Antigo Regime e não havia divórcio; a segunda foi a minha actual mulher - e, pela primeira vez, encontrei alguém de quem gostava, que gostava de mim e que queria e podia casar-se comigo. Senti-me perfeitamente bem como solteiro, mas ainda me sinto melhor como casado.

Foi catedrático muito jovem...
Doutorei-me aos 25 anos e aos 32 já era catedrático. Durante muitos anos fui o mais jovem de sempre na Universidade de Lisboa.

Porquê essa precocidade?
Por impaciência. Fui sempre muito impaciente na vida. É por isso que não jogo golfe. A minha mulher joga, eu não tenho paciência, leva muito tempo.

Entrou para o escritório com 22 anos?
Não, com 21 anos, em 1959, ano desde o qual estou inscrito na Ordem dos Advogados. O meu pai ainda estava cá.

O que queria fazer?
A minha vida foi sempre norteada por uma ideia de independência, que se reflecte na condução deste escritório. Não ter patrão e não receber ordens. Este foi o meu principal objectivo na vida. É também isto que distingue este escritório perante os clientes e os poderes económicos.

O seu irmão também estava no escritório?
Sim, mas formámos logo secções separadas. A grande preocupação do meu pai, sabendo da nossa infância tensa, era prevenir conflitos, o que felizmente nunca aconteceu. O meu irmão ficou com a área financeira e eu com a comercial. Durante a década de 60, a actividade do meu pai abrandou e a minha aumentou. Os primeiros anos foram muito fatigantes, acumulando com a actividade de professor na Faculdade.

Lembra-se do seu primeiro caso?
Perfeitamente. Escolhi não fazer uma advocacia forense, mas de consulta, de pareceres jurídicos. Há mais de 30 anos que não vou ao tribunal. Eu não menciono nomes, mas asseguro-vos que o escritório ainda tem clientes dessa época.

Fez tropa?
Sim, felizmente, logo após a licenciatura. Se tivesse demorado mais um ano, teria sido chamado para a guerra.

Que marcas deixou a guerra na sociedade portuguesa?
Muitas. Salazar tinha momentos de grande perspicácia, e a guerra de África acrescentou 15 anos ao regime. Admito que ele tenha compreendido que, depois da campanha do general Delgado, em 1958, era a maneira de reencontrar alguma unidade. Nos primeiros anos, pode dizer-se que a guerra era encarada de forma patriótica. Mas, à medida que se foi percebendo que não tinha solução, a opinião foi mudando.

E isso aconteceu quando?
Num dia de Abril de 1962, quando 18 estudantes da Universidade de Lisboa - entre os quais o Presidente Joaquim Chissano, de Moçambique, que cursava Medicina - desapareceram. Assim como vários alunos meus da Universidade de Direito, que também fugiram. Tornou-se-me evidente que Portugal não tinha conseguido conquistar as elites. O único que não fugiu foi Alexandre do Nascimento, então aluno de Direito e mais tarde cardeal de Angola. Muitos anos depois, contou-me que o bispo não o tinha deixado fugir - estava ligado aos movimentos de independência e sob vigilância da PIDE, mas o bispo disse-lhe para não fugir e ele não o fez. Sempre desconfiei da guerra colonial. Como visitava muito as colónias, verificava que a vida lá não era nem de longe o sonho que pintavam em Portugal. A discriminação racial era um facto evidente... Sobretudo quando estive nas Nações Unidas, em 1960, ano em que África se tornou independente. A partir daí, comecei a compreender que era inevitável a descolonização.

Para suportar o escritório no pós-25 de Abril foi obrigado a vender quadros, de Dalí e Picasso... Arrepende-se?
Gostaria que isso não tivesse sucedido. Tinha começado uma colecção de obras de arte, Dalí, Miró, Picasso e outros, mas a revolução alterou toda a vida nacional. Em 74 e 75 não se fizeram operações, sobretudo em investimento estrangeiro, que era o que nós fazíamos. Tive de vender os quadros para pagar as despesas do escritório. As minhas economias foram ao ar no dia em que a Bolsa foi nacionalizada. Este escritório de advocacia foi o único com alguma dimensão que sobreviveu ao 25 de Abril. Todos os outros desapareceram. Primeiro porque muitos dos seus líderes eram pessoas de uma certa idade, que entenderam aposentar-se, mas fundamentalmente porque estavam ligados ao Governo ou ao Estado, ou ainda a grandes grupos financeiros. Eu nunca o quis, de certo modo significava ter um patrão. E, como já disse, sempre tive obsessão de não ter patrão. Por isso, optei por ir para a advocacia internacional. Também pela facilidade com que eu e o meu pai falávamos inglês, o que não era muito corrente na altura. Isso permitiu que o escritório continuasse, mas o movimento baixou imenso naqueles anos pós-revolução.

Quantas pessoas trabalhavam no escritório nessa altura?Éramos sete ou oito, entre advogados e administrativos.

Foi por essa altura que nasceu o PPD, precisamente nos gabinetes do escritório?
Estávamos no prédio aqui ao lado... Éramos poucos, e o meu grande amigo Francisco Pinto Balsemão propôs-se instalar-se no nosso escritório. Fomos companheiros de escritório, mas não de trabalho, apenas partilhávamos o espaço e as despesas. A família dele vendeu o «Diário Popular» antes da revolução, e o único escritório do Francisco Balsemão era este. O «Expresso» foi também criado aqui. Posteriormente, embora com menos foco, este escritório recebeu várias reuniões da fundação do PPD, hoje PSD. E, mais uma vez, lá esteve o Francisco Pinto Balsemão como fundador. E também o Francisco Sá Carneiro, meu amigo e correspondente - quando alguém precisava de um advogado em Lisboa, Sá Carneiro indicava-me a mim, e quando algum cliente meu precisava de um advogado no Porto, eu indicava-o a ele... Ainda me lembro de, em Maio de 1974, ver a Mercedes Balsemão a bater à máquina os estatutos do PPD.

E que grandes negócios do país foram fechados neste escritório?
Eu sou de outra época, de outra geração. Não falo sobre clientes. Mas posso dizer que grande parte do investimento estrangeiro que se fez neste país, nos últimos 50 anos, passou por aqui. De início, até chegámos a uma situação em que eu era advogado de todos os bancos americanos que havia em Portugal. Em 1980, tive de fazer uma espécie de Tratado de Tordesilhas e dividir tarefas com alguns dos meus colaboradores. Com grande pesar meu, nestes últimos dez anos, temos feito sobretudo desinvestimento. Tenho pena de assistir à saída de empresas de Portugal para outros mercados, empresas que ajudei a constituir e cujos empresários convenci a virem para o nosso país. Mas a Europa de Leste é mais atractiva, e a legislação portuguesa é apertada e irrealista.

Têm tido sócios mediáticos e políticos. É uma opção?
Não, nunca o foi. E, se alguma opção houvesse, teria sido precisamente a contrária. Temos tido muitos sócios ao longo dos anos e apenas alguns mediáticos. Nunca convidei ninguém por ter uma determinada opção política. Nem gosto do estilo da política que se faz em Portugal. Também nunca fui militante de nenhum partido.

Mas não o choca que existam advogados que tenham uma posição política?
Com certeza. Isso é da esfera individual de cada um.

Assistiu-se a uma grande polémica quando António Vitorino entrou no escritório...
Porque foi uma surpresa. Porque podia ter continuado na política e não quis. António Vitorino foi meu aluno e assistente na Faculdade, e é meu amigo, isto muito antes de ele ser importante. Foi por isso que o convidei. O país é pequeno, e é evidente que o conhecimento pessoal é importante. Nunca pedi a nenhum advogado que exercesse tráfico de influência, primeiro porque é um crime, segundo porque não gosto disso.

Os advogados podem ser deputados?
Não. Em meu entender, haverá eventuais incompatibilidades, não legais, mas de natureza profissional. António Vitorino, um dos meus dois colegas que eram deputados, já renunciou ao mandato. Em relação ao outro, Paulo Rangel, a situação é diferente, mas ambos conhecem a minha opinião sobre o assunto. Naturalmente, caberá ao interessado decidir.

Está então de acordo com o actual bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto?
Ele tem uma tarefa ingrata. As forças que está a tentar combater são mais fortes e, provavelmente, irão prevalecer. Tenho consideração por quem trava essa batalha, e ele tem razão em quase tudo o que diz. Não em tudo...

O que é que destacaria, então?
Provavelmente, as razões pelas quais eu defendo que há incompatibilidade entre ser advogado e ser deputado não são as mesmas que as do bastonário. Ele receia que os deputados façam as leis para atender aos clientes, mas eu não concordo. Acho é que deviam dedicar mais tempo à advocacia.

Uma das grandes crises da nossa sociedade é a do sistema judicial?
Os advogados são os menos culpados desta crise. O sistema judicial é um dos grandes males da nossa sociedade, prejudicando todo o seu funcionamento, como, por exemplo, a atracção de investimento estrangeiro.

E como é que se poderá corrigir esse problema?
A Justiça, e muito bem, é independente, como não o era no Antigo Regime, sobretudo em questões políticas. O problema é que a qualidade da Justiça baixou. O que me preocupa não é tanto a morosidade mas a qualidade dos nossos juízes.

Isso decorre de quê?
Decorre do facto de haver muitas outras possibilidades para os licenciados em Direito e de a magistratura já não atrair os melhores.

O mesmo se passa na política? Faltam grandes homens?
Com certeza. É óbvio. A classe política baixou ainda muito mais do que as outras classes. É hoje péssima.

Já disse, contudo, que a democracia não precisa de grandes heróis...
Só quando está em perigo, e a democracia portuguesa não está em perigo, sobretudo devido à integração europeia. O que está em perigo é a qualidade da democracia. A qualidade dos partidos políticos.

Já sabe em quem vai votar em 2009?
Ainda não me decidi.

«Alguma coisa tem de mudar para que tudo permaneça na mesma», ouve-se num dos seus filmes favoritos... Vivemos um momento destes, marcado por avanços e recuos?
A frase do príncipe de Salina do maravilhoso O Leopardo não é adequada ao momento actual de Portugal. Houve uma mudança radical em 1974, e desde então o país tem vindo a recompor-se. A democracia impôs-se sem grande dificuldade. Estivemos sob a ameaça de duas ditaduras: a de direita, que durou 40 anos e a que os militares puseram termo, e a de esquerda, que esteve a pairar durante o período revolucionário e a que a democracia pôs termo. Foram as eleições que derrotaram o perigo desta ditadura. Mas o sucesso da democracia levou à sua perda de qualidade: a democracia instalou-se, e as pessoas desinteressaram-se.

O Tratado de Lisboa deveria ter sido referendado?
É uma opção complexa. O Tratado de Maastricht é que deveria ter sido referendado. Neste momento, se fosse Governo, teria de ter pensado na opção europeia, como o nosso primeiro-ministro deve ter pensado, e admito que tenha aceite um compromisso de que não houvesse referendo. Com 27 referendos, um certamente não seria aprovado e deitaria tudo a perder. Mas isso implicaria assumir que o Tratado de Lisboa foi feito para que não houvesse referendo, o que devia ter sido assumido claramente. O que eu não faria era prometer um referendo. E, se tivesse prometido, a situação seria muito complicada. Se fosse japonês, faria «harakiri».

Como está a preparar este escritório para o futuro?
O que importa nas organizações é a qualidade das pessoas. A grande maioria faz aqui a sua formação. Outro fenómeno é a forte presença feminina, como aliás acontece actualmente em todas as organizações. As mulheres fazem um óptimo trabalho, trabalham tanto ou mais do que os homens, só que os homens não têm filhos, não faltam ao trabalho para ter filhos... Este é um problema que temos e que tem algum conteúdo económico.

Algum dia se pode esperar que a Cuatrecasas, vosso sócio espanhol, venha a ser patrão deste escritório?
Não, enquanto eu aqui estiver. Mas temos uma relação muito íntima com eles. Cada um manda na sua casa. No estrangeiro, eles têm uma posição muito superior à nossa. Mas devo sublinhar que nunca tentaram qualquer interferência.

Porque a marca Gonçalves Pereira vale muito? Quanto?
Talvez seja isso... Não sei. Alguma coisa deve valer, com certeza.

Se fosse americano, votaria em Barack Obama ou em Hillary Clinton?
Obviamente, em Obama. Porque estou seduzido, como aliás toda a gente. Ele é um sedutor e um homem de grande qualidade intelectual. O problema dentro do Partido Democrata está resolvido: o candidato é Obama. Se o partido souber conciliar-se, há fortes hipóteses de Obama vencer McCain, o que será inédito e terá enormes consequências para os Estados Unidos e para o mundo.

Que avaliação faz do nosso primeiro-ministro e do nosso Presidente?
Não quero entrar por aí, tenho relações cordiais com qualquer um deles. Considero ambos pessoas patrióticas.

Presta-se vassalagem a Alberto João Jardim?
O termo «vassalagem» não será o mais correcto, mas é evidente que ele é um fenómeno único no mundo. Suponho que não há outro eleito democraticamente tantas vezes. Fui à Madeira pela primeira vez em 1959, era então uma das regiões mais pobres do país. Hoje é uma das mais ricas, juntamente com Lisboa e Vale do Tejo. E o Jaime Gama vai pagar o preço político por isso, mas tinha toda a razão em dizer o que disse, porque isso se deve largamente ao João Jardim.

Concorda então com a afirmação de Jaime Gama de que a Madeira é «uma obra histórica», que «atende pelo nome do presidente do Governo Regional», e que a região é «um exemplo supremo da vida democrática»?
Concordo, embora eu, se fosse a ele, não a teria feito. Para além dos inúmeros defeitos do senhor Jardim, como sabemos, aquilo não é uma democracia como nós a concebemos, tem um sabor mais sul-americano...

Como avalia Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia?
É um excelente presidente. Foi meu aluno e é meu amigo. Tem todas as condições para ser reeleito.

O que é que não fez e gostaria de ter feito? E o que lamenta ter feito?
Arrependo-me de ter parado os meus estudos musicais. Gostaria de ter sido director de uma orquestra, um Toscanini, ou um Karajan... Fiz muitos disparates, mas tenho a sensação de não ter feito nada de vil. Arrependo-me de muitas coisas, só os idiotas não se arrependem.

Incomoda-o não deixar um herdeiro com o seu apelido?
Sim, mas já estou conformado.

Qual o balanço que faz da ONG APOIAR, que criou em Moçambique há 13 anos?
Muito positivo. Trata-se, sobretudo, de uma actividade da minha mulher e de algumas amigas dela. O trabalho de campo é delas. A minha participação é relativa e modesta. Ajudei numa fase inicial em termos financeiros, e neste momento a ONG caminha para o equilíbrio. Temos duas escolas primárias com crianças dos 3 aos 13 anos. Além das aulas, damos três refeições por dia e temos um magnífico campo de futebol numa das escolas. Instalámos em escolas e missões católicas pelo país 12 centros de informática. O objectivo é formar quadros que lhes facilite conseguir empregos. Além do mais, os próprios centros fazem trabalhos para fora e são auto-sustentados. Estamos também a fazer trabalhos de construção de moradias e residências em taipa e terra, materiais mais resistentes ao calor.

Têm ganho dimensão...
Somos uma ONG pequena. Há outras com mais recursos, mas a nossa tem uma particularidade: não há um único funcionário remunerado, estão todos em regime de voluntariado.

Também já marcaram presença em Angola...
Chegámos lá há três anos, mas o projecto é diferente; montámos centros de saúde na zona de Benguela. É mais fácil criar uma ONG em Angola, porque para a imagem das empresas é importante investir e apoiar instituições. Mas não escondo que Moçambique está mais perto do meu coração.

É favorável ao Acordo Ortográfico? Ou será que perderemos identidade?
Sou favorável, em geral. Não se perde identidade, enriquece-se.

Qual é o seu refúgio desde que vendeu a Casa Redonda, na Quinta do Lago, no Algarve?
No ano passado, eu e a minha mulher fizemos várias opções, entre elas a de concentrar a nossa vida numa casa na Quinta da Marinha que estamos a acabar de montar e que tem muitas semelhanças com a Casa Redonda.

Como é a sua rotina? Quais são os seus prazeres?
Acordo sempre cedo, por uma questão de hábito. Quanto aos prazeres, eles são muito simples: primeiro, a convivência com a minha mulher; segundo, a leitura; terceiro, a música.

O que está a ler neste momento?
Leio sempre várias coisas ao mesmo tempo. Agora tenho em mãos um livro fascinante de um historiador inglês sobre as dez decisões tomadas por líderes durante a II Guerra Mundial e que influenciaram o rumo do mundo.

Para quem já viveu em tantas épocas, como é envelhecer?
É mau, para não dizer péssimo. Eventualmente, terá aspectos bons... Dou um exemplo: vendi a Casa Redonda, mas não tenho saudades dela. Tenho saudades de mim próprio, da vida que vivi nessa casa quando era mais jovem.

Uma casa com 80 anos

Olhos azuis brilhantes, irrequieto, Manuel Castelo Branco, 55 anos, é quem coloca a funcionar a máquina do escritório, com quase 300 pessoas. A dez anos da idade indicada pelos estatutos para se retirar e dar lugar à geração mais jovem, como aconteceu com André Gonçalves Pereira, nota-se-lhe uma espécie de impaciência. Castelo Branco é um gestor por excelência, responsável pelos investimentos na actualização permanente da marca da sociedade. Uma casa tão emblemática que teve direito a contar com os serviços de Fernando Pessoa como tradutor de peças jurídicas.

André Gonçalves Pereira é um homem muito bem-disposto. Aceita os desafios com tranquilidade e, irreverente, não foge às ousadias. O que o irrita são os atrasos. Um número que já se tornou mítico nos corredores deste edifício do Marquês de Pombal. Diogo Perestrelo, 40 anos, é o sócio mais jovem. Está no escritório há 18 anos. Nunca conheceu outra casa jurídica, nem quis. Está ali bem, vai acumulando uma ascensão rápida e tranquila. É a cara da nova geração, aquela que terá a árdua tarefa de garantir mais 80 anos de vida ao mais antigo escritório de advocacia de negócios em Portugal.

A sucessão não é assunto que André e Manuel coloquem para já, preocupados em apostar em equipas cada vez mais especializadas. «As estrelas actualmente são as sociedades e não os advogados. A advocacia mudou muito», explica Castelo Branco. «Quando eu e o André desaparecermos, a sociedade há-de continuar», garante.

Em 1928, Armando Gonçalves Pereira fundou o escritório. A origem goesa e o domínio da língua inglesa abriram-lhe as portas ao futuro. A estratégia adoptada foi não se colar nem ao Eixo nem aos Aliados. A aposta do pai de André Gonçalves Pereira foi na Liberdade. Política e perante os clientes. Nada de dependências excessivas, herança que o filho assumiu e o sócio-gestor pratica. Manuel Castelo Branco explica: os 30 maiores clientes não correspondem a um peso superior a 15% da facturação do escritório. As regras internas fazem também com que, por exemplo, o filho de Castelo Branco, também advogado, esteja a trabalhar numa sociedade concorrente. «Se fosse bom, nunca seria o suficiente, porque seria sempre o meu filho, se fosse mau, seria um embaraço. Assim, poderá um dia vir a estar aqui, mas já com provas dadas no mercado», explica. Uma situação facilitada, inclusive, pelo facto de André Gonçalves Pereira também não deixar herdeiros familiares ligados ao destino da sociedade.

A separação de águas sempre foi uma marca da casa. Nas origens, o pai-fundador optou por desenhar áreas completamente distintas para que os seus dois únicos filhos, Jorge, o mais velho, e André, exercessem a profissão. Aluno predilecto de Marcello Caetano, André Gonçalves Pereira tomou as rédeas do escritório, enquanto o irmão enveredou pelas actividades internacionais. Com o 25 de Abril, todos os grandes escritórios desapareceram, mas a sociedade permaneceu, apoiada nos clientes internacionais. Não que não fossem tempos difíceis para todos.

Até 1984, ano em que faleceu, todos os dias o fundador comparecia no escritório. Hoje, uma estátua de bronze no andar das decisões ocupa uma posição de destaque, como que a recordar onde tudo teve início. A decoração é que mudou, harmonizada com a linha da sociedade catalã Cuatrecasas, a segunda maior de Espanha, com cerca de 800 advogados e a quem a Gonçalves Pereira se uniu em 2000.

O período liderado por André Gonçalves Pereira ficou marcado como uma escola do chamado Direito Consultivo, especializado na elaboração de pareceres sobre a actividade empresarial. Foi o berço profissional de nomes que pontificam hoje na praça nacional: Morais Leitão ou Vasco Vieira de Almeida, por exemplo, saíram dali para fundar as suas próprias sociedades. Em 1988, Manuel Castelo Branco foi chamado a integrar a sociedade. Aluno de André Gonçalves Pereira e de António de Sousa Franco - que o convidou para participar na elaboração dos estatutos daquele que deveria ter sido o aeroporto de Lisboa, em Rio Frio, e cuja primeira reunião aconteceu no dia 25 de Abril de 1974, na casa do ex-ministro das Finanças -, o então jovem advogado não perdeu a oportunidade e ajudou a antiga casa a encontrar um novo caminho: o do crescimento. De três advogados em 1981 passaram para os actuais 170, sendo 20 os associados e cerca de 30 os estagiários. Um crescimento que superou as expectativas: dos 400 metros quadrados que ocupava em 1981 em Lisboa, o escritório passou a ocupar 6500.

É uma casa que não se furta a comprar polémicas, como a integração de dois políticos mediáticos entre os seus associados: António Vitorino (PS) e Paulo Rangel (PSD). Mas que não abre mão das suas tradições: para andar naqueles corredores, os advogados têm de seguir um código de vestuário e não contam nem com as sextas-feiras para relaxar. Porque existem estudos que demonstram que neste dia da semana trabalha-se menos e sai-se mais cedo. É o que acontece na Cuatrecasas, em Espanha. Mas na Gonçalves Pereira, Castelo Branco e Associados não há «casual fridays»!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CAMartins@expresso.impresa.pt

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