Política

Adolfo Mesquita Nunes: “Acredito no mundo global e vivo muito bem nele”

Adolfo Mesquita Nunes: “Acredito no mundo global e vivo muito bem nele”
tiago miranda

Aos 40 anos “o Adolfo” dá a primeira entrevista de vida. Fala do regresso à Covilhã, da família onde conviveu com direita e esquerda, e da influência que a sua orientação sexual terá (ou não) nas suas posições liberais

A
os 40 anos, Adolfo Mesquita Nunes é vice-presidente do CDS e um dos rostos da renovação do partido. Foi deputado e secretário de Estado do Turismo, depois voltou à advocacia, agora é vereador na Covilhã, a cidade onde cresceu, apesar de ter nascido em Lisboa. Quando os pais se separaram, a mãe regressou à capital e Adolfo escolheu a serra e a casa dos avós paternos. Fez-se covilhanense, depois mudou-se para Lisboa, mas a morte do avô levou-o de volta ao lugar da sua infância e juventude.

Foi na Covilhã que falou com o Expresso, na sua primeira entrevista de vida. Antes de pormos o pé na neve da serra da Estrela, percorremos as ruas da cidade, partindo do centro, assinalado pela Câmara Municipal, onde agora Adolfo tem reuniões a cada duas semanas para apresentar propostas que nunca vão a votos. Metemos pela chamada Rua Direita, onde vivia com os avós, na que continua a ser a sua casa sempre que volta “à terra”. Seguimos para o jardim onde brincava, onde está a igreja da sua primeira comunhão e o edifício que alojava a Biblioteca Gulbenkian, que o abastecia dos livros que lia de forma tão compulsiva que a família chegou a ficar preocupada. Ao lado há um elevador de construção mais recente, que também serve de miradouro: lá em baixo, Adolfo aponta o prédio onde os pais moraram quando se mudaram para ali, lá ao fundo está o edifício abandonado da Nova Penteação, uma das fábricas de lanifícios que fizeram a fortuna dos seus avós e bisavós, e que como quase todas por ali acabaram por falir nos anos do cavaquismo, ao mesmo tempo que outra parte do país prosperava. Um homem que passa cumprimenta o vereador, junta-se à conversa, juntos vão colecionando histórias de prédios devolutos que fizeram a riqueza e a miséria daquela terra onde os lanifícios ficaram inscritos no nome das famílias. Uma avó de Adolfo tinha o sobrenome Lã, há os Fazenda, há os Fazendeiro...

Descemos para fazer uma fotografia ao pé da carcaça desbotada e abandonada da fábrica que foi da família. “As pessoas passam por estas fábricas e só veem o que cá está, o passado, as falências, a miséria. Não têm o distanciamento suficiente para ver o que isto podia ser, o potencial que tem para ser outra coisa.” Ele acredita que tem. Seja porque cresceu com horizontes além da serra, nas visitas frequentes a Lisboa, seja porque se mudou para a capital aos 17 anos e aí descobriu que havia mais mundo pelo mundo fora. Talvez por isso se assume multiculturalista num mundo global onde o primeiro valor é a liberdade. Entrevista com um político que não tem medo do rótulo de liberal, não esconde que é homossexual e se assume fanático pelo Festival da Eurovisão.

Em 2017 fez 40 anos e candidatou-se à Câmara da Covilhã, a terra onde cresceu. Há uma relação entre estes dois factos?
Não... Embora nunca tenha querido parecer mais velho, mas quis sempre ser mais velho e ter 40 anos. Por isso, chegar aos 40 não foi tanto: “E agora, o que é que eu vou fazer aos 40?”, mas antes: “Finalmente cheguei aos 40.” A ideia de me candidatar à Câmara teve mais que ver com os meus 39 anos, período em que tive de voltar muitas vezes à Covilhã para acompanhar os últimos meses de vida do meu avô. Foi isso que motivou a decisão de me candidatar, aceitando uma espécie de legado do meu avô.

Porquê essa vontade de ter 40 anos? E estão a ser o que esperava?
Estamos na Cova da Beira, rodeados de serras. Essa circunstância, que me acompanhou durante a infância e adolescência, sempre me fez perguntar que oportunidades é que o mundo teria para mim. Foi a vontade de tê-las que me fez pensar que, quando chegasse aos 40, poderia olhar para trás e ter vida vivida. O Pavese diz que “viver todos os dias cansa”, mas a mim nunca me cansou, procurei sempre ter experiências, oportunidades e desafios novos. Dois dias depois de fazer 40 anos ouvi uma entrevista do Jacques Brel que dizia nunca ter sido capaz de cuidar de nada — nem de plantas, nem de casa, nem de animais — mas que tinha sido sempre capaz de cuidar dos seus sonhos. O balanço que acabei por fazer aos 40 anos foi pensar se tinha sido capaz de cuidar dos meus. E acho que sim, tenho cuidado dos meus sonhos.

No fim de 2017 escreveu no seu Facebook: “Um tipo chega aos 39 a achar que sabe tudo de si e depois vem uma nova energia que me fez sentir puto novamente, a ver coisas pela primeira vez, a sentir coisas pela primeira vez, várias primeiras vezes. Não sei o que 2018 vai trazer, mas sei o que quero levar de 2017: a capacidade de ainda me deslumbrar com as coisas.” Porque é que a campanha na Covilhã — que tinha esse slogan “Nova Energia” — lhe deu isso tudo?
Em primeiro lugar, foi regressar à minha terra, desta vez sem as figuras tutelares que sempre me guiaram aqui. Por outro lado, fomos capazes de juntar centenas de pessoas que acreditaram em mim — no dia em que terminou a campanha fizemos uma arruada, eu olhei para trás e vi aquela quantidade enorme de pessoas que estava ali por mim, a acreditar em mim, sem esperar nada em troca, e foi emocionante. Fizeram-me descobrir coisas que eu não conhecia ou de que já me tinha esquecido sobre a minha terra, sobre mim, sobre a minha família. Das coisas mais emocionantes que aconteceram na campanha foi a quantidade de pessoas que se abraçou a mim por eu ser neto, bisneto, sobrinho-neto de quem era e contou histórias da minha família...

Passado. O edifício devoluto da Nova Penteação, uma das fábricas dos avós de Mesquita Nunes. Como boa parte da indústria de lanifícios da Covilhã, acabou por fechar nos anos do cavaquismo
tiago miranda

Que histórias?
As ajudas que foram dadas e as possibilidades que o meu avô ou os meus tios abriram a outras pessoas. O meu bisavô lançou um programa de empréstimos aos operários da fábrica dele, microcrédito sem sistema bancário, e eu não sabia. Houve um rapaz que no dia de reflexão me perguntou pelo Facebook o que é que eu era ao Cristiano Cabral Nunes, eu respondi que era bisneto e ele disse-me: “A minha avó está aqui e diz que vai sair de casa de propósito para votar em ti, porque nunca se pode esquecer do que o teu bisavô fez por ela.”

Quando o seu avô morreu, escreveu um texto em que o referia como o seu herói. A campanha aconteceu já depois de ele ter morrido — na rua sentiu mais a ausência ou a presença dele?
Eu saía de casa todos os dias com o propósito de o deixar orgulhoso. Foi uma campanha dura, a cena política na Covilhã é muito conflitual, com blogues anónimos e muitos processos judiciais, mas eu quis fazer uma campanha pela positiva, e essa ideia de deixar o meu avô orgulhoso ajudou. E também ajudou a trazer todos os independentes que consegui trazer, porque a todos prometia a mesma coisa que prometi ao meu avô: vou deixá-lo orgulhoso. Nesse sentido, ele esteve presente. E foi uma figura presente para os outros, porque não me deixavam esquecê-lo.

É vice-presidente do CDS, é ex-secretário de Estado do Turismo e continua a ser solicitado para falar dessa área, foi advogado num dos grandes escritórios do país e agora concilia a política local, numa terra a 2h30 de distância de Lisboa, com uma vida profissional em que faz exatamente o quê?
Eu tive sempre uma relação complicada com a política, nunca quis um compromisso profissional com ela. Quando o governo [PSD-CDS] terminou, comuniquei que não queria continuar nas listas de candidatos a deputado porque queria dedicar-me à advocacia. É a única profissão que tenho e que me pode dar autonomia financeira para tomar as decisões políticas que entender. Em vez de voltar para essa grande sociedade ou para outras, cujos convites surgiram, aceitei o desafio de dois advogados da minha geração para entrar num projeto novo [Gama Glória], para fazermos a advocacia dos novos tempos, com novos métodos, novas formas de entender o Direito, de contactar com os clientes. Essa sim, foi uma boa decisão para tomar aos 40 anos.

Essa “advocacia dos novos tempos” é o quê? É lobby?
Se por lobby se entende ser facilitador, abre-portas, mediador, comissionista, não. Não faço isso. Faço advocacia. Quando digo “dos novos tempos” é porque gostamos de temas que vão além do direito, e queremos percebê-los de forma mais abrangente, como sejam as novas tecnologias, a economia digital, o processamento de dados...

Como é que essa vida profissional com tanta modernidade se concilia com uma cidade pequena do Interior? O que é que preocupa o vereador Mesquita Nunes?
Numa Câmara com maioria socialista, onde sou o único vereador da oposição que não falta às reuniões do executivo, a minha preocupação é ser oposição, fiscalizar a Câmara. E tenho centrado as minhas propostas em quatro áreas: investimento, oportunidades, cultura e turismo.

Esta não é a sua primeira experiência autárquica — fez parte do gabinete do vereador Pedro Feist, em Lisboa, e foi membro da Assembleia Municipal de Lisboa. O poder local em Lisboa ou na Covilhã são coisas assim tão diferentes?
Há uma diferença substancial: a absoluta falta de sindicância nas câmaras do Interior. Nenhum órgão nacional de comunicação social está interessado no que acontece numa pequena autarquia e os media regionais não só se batem com as mesmas ou mais falta de meios que os nacionais como a isso se soma o facto de as câmaras municipais serem muitas vezes o garante financeiro desses órgãos de comunicação social. Essa falta de sindicância faz com que, por exemplo, na Covilhã não me deixem apresentar propostas. Até hoje não consegui levar a votação nenhuma proposta.

Como assim?
Isso mesmo. As propostas ou não entram na ordem de trabalhos ou vão a discussão mas não são votadas porque o presidente da Câmara entende que, por algum motivo, não estão em condições de serem votadas. Felizmente, com as redes sociais consigo que se saiba quais as propostas que tentei apresentar.

Durante a campanha um dos seus cartazes apareceu vandalizado com a inscrição “gay”. Tanto quanto sei, os responsáveis pela sua campanha sugeriram que o cartaz fosse substituído, mas o Adolfo travou-os e decidiu que o cartaz ficaria. Porquê?
Os meus cartazes começaram a ser vandalizados em abril. Sempre que um era rasgado, retirávamos e colocávamos um novo. Em junho, escreveram “gay” num cartaz meu que estava num cruzamento muito movimentado. A minha equipa perguntou-me se fazíamos com esse cartaz o que fizemos com os outros. E a minha resposta foi não: não vamos substituir este cartaz, porque eu quero deixar claro — quer para quem o vandalizou e para a campanha que motivou essa vandalização quer para a população da Covilhã —, que eu não tenho vergonha, nem tenho qualquer problema em ser quem sou. Pedi que não o substituíssem porque não era mentira. Se alguém da minha equipa achasse que isto era um problema, que saísse. Ninguém saiu. E o cartaz lá ficou quatro meses. Passei por ele centenas de vezes e nunca me arrependi de o não ter tirado.

Num meio pequeno e tendencialmente conservador, esse episódio teve repercussão eleitoral?
Não faço ideia. Um mês depois desse graffiti, tive um comício com a Assunção Cristas. E expliquei para 400 pessoas e com jornalistas presentes porque é que não tinha retirado o cartaz: se a inscrição dissesse que eu era criminoso, corrupto ou ladrão, retirava; se dissesse algo falso, retirava; mas tendo em conta que essa inscrição não era nenhuma calúnia, não via necessidade de o retirar. Não supus que os jornalistas não estivessem a prestar atenção e que só noticiassem o que a Assunção disse. Mas esse discurso esteve e está na net, partilhei-o no Facebook. Se teve consequências? Repare, eu não tenho a opção de ser outra pessoa, uma pessoa distinta, pelo que não posso viver a pensar quais seriam os meus resultados eleitorais se eu não fosse quem sou. Sei que a campanha não voltou a ter qualquer outro incidente do género e que tive o melhor resultado do CDS na Covilhã nos últimos 40 anos. Talvez os resultados tenham sido uma surpresa para os que achavam que eu só recolhia os votos urbanos supostamente sofisticados ou que o liberalismo do Adolfo assustava o eleitorado tradicional.

Nunca assumiu publicamente a sua orientação sexual. A decisão de manter esse cartaz foi o início desse caminho?
Há uma diferença entre falar de orientação sexual com a família, com amigos ou colegas de trabalho e falar com jornalistas ou com pessoas que não conhecemos. Não sendo um assunto que tenha vindo a propósito dos dados do turismo ou sobre o memorando da troika, falo dele na primeira entrevista de vida que dou, porque não me ocorre esconder esse assunto num contexto como este. Não no sentido de fazer uma revelação, porque seria até absurdo, tendo em conta que não é nenhum segredo, é um facto provavelmente conhecido de muitos, que não é por mim escondido, e também não no sentido de falar da minha vida afetiva — de que não falo —, mas no sentido de que é algo que faz parte de mim e com que convivo perfeitamente e com naturalidade. E não falo da minha pessoal porque se aceito ser uma figura política, já não posso aceitar que isso implique um qualquer direito a que se invada a minha privacidade. Falaria dela apenas em casos, que nunca sucederam, de eventual conflito de interesses.

A sua orientação sexual é algo de que nunca falou publicamente. Porquê agora?
Já respondi: nunca antes dei uma entrevista de vida. Como disse, sempre tive uma relação complicada com a política, também no sentido da exposição pública que ela traz. Não tem que ver apenas com orientação sexual, eu não gosto dessa exposição. Por isso recusei vários convites para entrevistas de vida. Para mim isso significou, durante muito tempo, tornar irreversível um compromisso com a política, pois só dá entrevistas de vida quem é uma figura pública. É uma irreversibilidade que me assusta. Mas hoje, olhando para trás, tenho de perceber que mais de metade da minha vida foi passada em política...

Entende que a afirmação de uma orientação sexual é também um statement político?
No meu caso trata-se antes de a não esconder. Mas se para mim é completamente natural, porque tenho a sorte de ter família, amigos e meio social onde a orientação sexual não é assunto, sei que para milhões de pessoas é assunto, porque são vítimas de perseguições, de bullying, de ameaças, de assédio, de morte, de discriminações, e para quem a afirmação da orientação sexual de uma figura pública é um assunto muito relevante e que tem repercussão política. Mas só consigo falar do meu caso concreto.

Montanha. Crescendo na Cova da Beira, Adolfo Mesquita Nunes conta que se questionava sobre que oportunidades lhe reservaria o mundo que estava além da serra
tiago mesquita

Imagino que depois desta entrevista haverá a discussão sobre se a sua declaração foi um ato de coragem. Na sua circunstância — homem branco, de classe média-alta, com educação superior, com independência económica, que vive numa cidade cosmopolita e tolerante — assumir que é homossexual é um ato de coragem?
Está a presumir que alguém só assume quando dá uma entrevista a um jornal. Não é assim. Mas quero responder à pergunta. Para hoje uma pessoa poder estar confortável com a sua orientação sexual houve muita gente que precisou de uma coragem infinitamente superior àquela que me pergunta se tenho. É por isso que não aceito a distinção entre o ativismo supostamente folclórico, extravagante, e o ativismo moderado, mais discreto e por isso supostamente mais aceitável. Para eu não precisar de nenhuma coragem para estar aqui a ter esta conversa, houve muita gente que chocou, provocou, correu riscos, desafiou, teve uma coragem infinitamente superior. Dito isto, tenho a convicção de que para muita gente é hoje uma questão de enorme coragem, em muitos casos até uma questão de vida ou de morte, e eu, a pretexto de ter tido a facilidade de viver sem grandes problemas, não posso deixar que passe a mensagem de que, em querendo, toda a gente consegue viver feliz e sem problemas. Porque não é verdade.

Diz que a sua orientação sexual não é um segredo e creio que não a exibe nem a esconde...
O que é que chama exibir?

No sentido de fazer disso bandeira, uma causa.
Há quem me acuse do contrário, por ter assinado artigos ou expressado votações no Parlamento que foram consideradas provocatórias no meu partido... Gosto de pensar que as minhas posições mais liberais em matéria de costumes não são determinadas pela orientação sexual, que radicam antes num apego ético e político ao valor da liberdade. Mas também não estou em condições de saber se são ou não, porque eu não sou outra pessoa.

O discurso de identidade de género é muito mais presente na esquerda e haverá quem se questione o que é que o Adolfo faz no CDS. Isso alguma vez foi uma questão para si?
Nenhum partido português pensa hoje sobre matérias de identidade de género e orientação sexual o mesmo que pensava há dez anos. O CDS não aceitava as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo; a partir de certa altura passou a aceitar, ou pelo menos muitos dirigentes passaram a defender a união civil, até por contraponto ao casamento. Algo que era impensável, extravagante, passou a ser aceitável. O PS era contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e passou a ser a favor. Era contra a adoção, e passou a ser a favor. A própria sociedade vai evoluindo. Olhando para todos os partidos de direita europeus, não vejo nenhuma excecionalidade na minha presença no CDS. E digo mais: fui deputado e membro do Governo e acho que honrei o partido na forma como exerci os cargos; e fui a votos, num terreno difícil, e os resultados que consegui para o CDS não foram poucochinhos.

No texto que escreveu quando o seu avô morreu, destacava como característica dele o compromisso com os outros, e ligava isso à sua descoberta do valor da liberdade. Como é que uma coisa leva à outra?
O meu avô tinha uma predisposição para o outro que ultrapassava o normal. Aprendi com ele e com a minha avó a ter presente a noção do bem e do exercício do bem como gesto de liberdade. A liberdade é o meu valor primeiro e vem antes da própria vida. Há uns anos li um livro do Buzatti, “O Grande Retrato”, onde havia uma frase que dizia mais ou menos isto: o que seria da vida se não tivéssemos a possibilidade do suicídio? Esta frase ficou-me presente porque o valor da vida são as escolhas que fazemos. Se não tivermos liberdade de acabar com ela, a vida é uma obrigação. A vida não é uma obrigação, daí que se deva dar valor ao exercício da liberdade. Se eu pratico o bem porque há uma lei que me manda, este bem sai prejudicado, passa a ser uma coação.

Voltamos ao balanço dos 40: tem vivido em liberdade?
Tenho procurado atuar com o máximo de liberdade, mesmo em contextos que as pessoas consideram mais limitativos, nomeadamente no contexto partidário. Mas na verdade não consigo bem fazer esse balanço. Talvez possa dizer que aos 40 anos me sinto feliz. A felicidade para mim não é a infelicidade sem o prefixo, como dizia o Guimarães Rosa, mas uma capacidade de moldar a realidade e de sermos moldados por ela, que permite que nos sintamos confortáveis.

“Confortável” parece pouco...
Para mim esse conforto está no riso. Há um provérbio judaico que diz que “o homem pensa e Deus ri”. Eu associo o riso ao equilíbrio, à ideia de harmonia. E rio muito. Das coisas de que mais abdico na política é de mostrar o meu lado bem humorado.

É preciso cara de pau?
O humor não funciona na política. Já houve ministros demitidos por piadas. Eu tenho uma predisposição para o sentido de humor que muitas vezes não mostro porque tenho receio. E nas fotografias esforço-me por não rir, porque tenho medo que me apanhem a rir a bandeiras despregadas e depois ponham a legenda “Adolfo Mesquita Nunes aumenta todos os impostos”.

A política foi o seu caminho para conciliar a liberdade e o compromisso com os outros?
A minha família é muito politizada. Desde que me lembro, nos meus jantares de família senta-se gente que vai do MRPP até ao CDS.

Quem representava o MRPP?
Um dos meus tios, irmão da minha mãe. Mas não é o único, tenho primos afastados que são ou foram dirigentes do MRPP (com esta coisa do Arnaldo de Matos, não sei o que aconteceu...). E isto fez-me perceber desde o início que é fácil amarmos e compreendermos alguém que pensa o oposto de nós.

Então vamos à história desde o início. Já falámos do seu avô paterno, o patriarca do lado conservador e serrano, mas havia a família de Lisboa, progressista e de esquerda. Essa gente toda ensinou-lhe tolerância?
Primeiro ensinou-me isso: poder amar alguém que tem um modelo de vida e de sociedade completamente distinto do nosso. Mas também me mostrou que cada um de nós é multidimensional. O meu avô socialista de Lisboa — e socialista ferrenho, foi secretário de Estado dos governos provisórios [o economista Mário Baptista] — era muito mais conservador do ponto de vista moral do que o meu avô democrata-cristão serrano. O que me fez perceber que somos fruto de muitos ventos e de muitas incoerências. A minha família paterna do lado do meu avô descende de republicanos e que eu saiba não tinha ligações ao Estado Novo, embora o meu bisavô paterno do lado da minha avó, o Adolfo, de quem herdei o nome, pela iniciativa industrial que teve na Covilhã se tenha dado muito bem com o Estado Novo, tendo sido comendador. O meu avô José esteve ligado aos católicos progressistas da Covilhã, mas não tem passado revolucionário nem antifascista. Do lado da minha mãe é completamente diferente: o meu avô materno vem de meios muito pobres, foi a primeira pessoa da sua aldeia a fazer o liceu, veio para Lisboa tirar o curso de economia, começou a envolver-se politicamente na SEDES e entrou para o PS assim que se deu o 25 de Abril. A minha avó materna lia Sartre... A minha mãe tinha também esse sentimento de revolta, de irreverência, muito gauche. A minha mãe era bailarina, ouvia muito Leo Ferré, e aquilo que eu mais me lembro de ouvir lá em casa é o ‘Avec le temps’.

Nessa mesa familiar houve um momento decisivo para optar por um dos lados?
Os meus pais separaram-se quando eu tinha sete anos, a minha mãe voltou para Lisboa, onde se tornou funcionária pública, e eu fiquei na Covilhã com os meus avós. Pelos nove ou dez anos, há uma intuição em mim que me leva a ser seduzido pela ideia de iniciativa, de empreendedorismo, que talvez tenha a ver com não viver no meio do funcionalismo público em Lisboa. Pelos 14 ou 15 anos li o “Liberdade para Escolher”, do Milton Friedman, e tudo aquilo me fez sentido.

Ou seja, apesar da francofonia do lado materno, ganhou o pensamento anglo-saxónico. Podemos construir outros binómios com base na sua história: esquerda/direita, progressismo/conservadorismo...
Sendo muito relevante a distinção esquerda/direita, é insuficiente para descrever politicamente as pessoas. Sobretudo ao dia de hoje. Aquilo que posso presumir é que sou uma síntese daquilo que havia de comum entre todas as minhas influências: tolerância e liberdade.

Disse uma vez que o covilhanense cresce a imaginar como será a vida além da serra. É a sua experiência?
É. Nós estamos na Cova da Beira e há sempre essa questão: o que é que está para lá das serras? Depois dos meus pais se separarem passei a vida entre Lisboa e a Covilhã, a perceber que havia mais mundo além do que tinha na Covilhã, e depois a perceber que Lisboa não era suficiente e que havia mais mundo. Era um deslumbramento.

Na sua conta de Twitter é “O Adolfo”. Já contou que o nome era de um bisavô, o que dissipa as suspeitas de alguma simpatia de extrema-direita na família, mas é um nome que pesa?
É um nome de família, mas ninguém na família me trata por Adolfo. A minha mãe nunca autorizou que eu me chamasse Adolfo e quando o meu pai sai para me registar, é para me registar como Miguel. Ele adorava o bisavô Adolfo e registou-me como Adolfo Miguel. Como se imagina, a minha mãe ficou piursa… [risos]. Eu só sou Adolfo quando começo a ir para a escola e fiquei “o Adolfo”. Mas durante anos foi um nome que eu não quis, durante décadas as pessoas achavam que era uma piada originalíssima perguntar se eu era Hitler. Ao fim de tantos professores a fazer a mesma piada na aula de apresentação, às tantas dava respostas como “não, mas sou neto do Mussolini”.

Qual a sua memória política mais antiga?
O primeiro contacto avassalador com a política é nas presidenciais de 1986. Eu era Freitas e do lado do meu avô materno estava tudo pelo Soares. E nessas eleições fui a um comício do Salgado Zenha, porque foi o que arranjei mais perto e queria ver, experimentar. O Zenha não veio à Covilhã, mas veio a Manuela Eanes. Eu tinha oito anos e estava curiosíssimo, disse “vou ali ao comício e volto já”. E o bom do Adolfo não arranjou outra forma senão ir meter-se no palco, ao lado da Manuela Eanes. Ainda me recordo que lhe perguntei: “Então, não vem o Zenha?”, e ela responde: “Quando for presidente, meu filho, quando for presidente”.

Porquê a opção pelo CDS?
Intuindo uma predisposição para o centro-direita, senti pelo CDS aquela simpatia que se tem pelo Heitor e não pelo Aquiles na “Ilíada”. Pelo partido das boas ideias, mas que tinha 4%, um estatuto de perdedor. A minha escolha começou por ser uma rejeição do establishment, do mainstream. A ideia de poder filiar-me num partido que estava fora da governação, que não partilhava do manto socialista da Constituição de 76, que tinha necessidade de sangue novo, tudo isso me entusiasmou. E nunca me arrependi.

Increve-se no CDS quando vem para Lisboa fazer o ano zero na Universidade Católica?
Oficialmente foi em 1994, conheci o João Almeida nas praxes e foi ele que me filiou. O João já estava na Juventude Centrista (JC) e convidou-me para uma lista. Assim foi: entrámos na lista para a concelhia de Lisboa, ganhámos e começou aí.

A primeira vez que deu nas vistas a nível nacional foi em 2007, no “Prós & Contras” sobre a despenalização do aborto. Era o tipo de direita que estava pelo ‘sim’ no referendo, e do lado do ‘não’ estava outra estreante, Assunção Cristas. Antes do programa deu à presidente da concelhia de Lisboa do CDS uma carta a demitir-se do cargo de vice-presidente. Porquê?
Eu era “vice” da Orísia Roque e antes, de ir para a RTP, deixei essa carta e telefonei-lhe. Ela respondeu: “Era o que faltava! Vai, diz o que tens a dizer, e continuas meu vice-presidente.” E assim foi. Mas entrei para esse debate a pensar que qualquer carreira política que pudesse ter acabava ali.

Em 2013 foi para secretário de Estado do Turismo (S.E.T.), o que coincidiu com um boom do sector. Qual o seu mérito nisso? Ou teve a sorte de estar no lugar certo na altura certa?
Nenhum destino turístico se cria em três anos. Eu pude dedicar-me à mudança da estratégia de promoção de Portugal e à desregulamentação do sector porque muitas das outras prioridades estavam acauteladas. Temos infraestruturas, temos um bom parque hoteleiro, temos boas ligações aéreas. Portanto, terei méritos naquilo a que me pude dedicar, mas só me pude dedicar à promoção porque havia o que promover. Por isso digo sempre que estes resultados são mérito do sector privado, mas, no que ao sector público diz respeito, o mérito tem de ser partilhado com os governos anteriores.

Alguma vez pensou que viria o tempo em que o turismo seria visto por alguns como uma praga?
Sim. E disse-o num congresso: não vai ser no meu tempo, mas vocês vão começar a ouvir a conversa do “turismo a mais”. Toda a gente achou que eu estava a brincar, porque andava tudo histérico de felicidade com os bons números.

Estava na cara que isso ia acontecer?
O turismo é uma atividade económica, tem externalidades negativas como qualquer outra; a questão é como mitigar essas externalidades negativas, e sobretudo como o fazer sem criar externalidades negativas ainda piores. Mas muito do discurso antiturismo é um discurso ideológico anticapitalista, anti-iniciativa, antiempresas, antilucro. Foi uma causa que a esquerda radical espanhola utilizou, e que cresceu na Europa, portanto era evidente que a moda chegaria cá.

Por falar em realidades que uns amam e outros odeiam: já comprou bilhete para o Festival da Eurovisão em Lisboa?
Com certeza! [risos] As pessoas têm direito a guilty pleasures.

Qual a melhor canção de sempre da Eurovisão?
Isso é uma pergunta muito difícil... Como há pouco tempo morreu a France Gall, poderia dizer ‘Poupée de cire, poupée de son’.

E qual a melhor canção portuguesa?
‘A madrugada’, a canção de 1975, cantada pelo Duarte Mendes, um capitão de Abril.

Foi arrumador no Teatro Nacional Dona Maria II. Foi pelo pagamento ou pelas peças que viu à borla?
Foi para pagar a faculdade, mas foi essa a escolha pelas peças, claro! Algumas via todos os dias. Lembro-me da Fernanda Borsatti e da Fernanda Alves em “O Cerco de Leninegrado” — vi vezes sem conta, sabia o texto de cor. Eu já tinha feito teatro na Covilhã, no liceu. Fui ator, encenador, arrumava, limpava, escrevia peças... Lembro-me de uma que demonstra bem como eu já queria ser mais velho. Chamava-se “Reticências” e era sobre um grupo de amigos de 40 anos que se juntavam num jantar. Eu tinha uns 14 ou 15, imagine o ridículo.

Gostava de voltar a escrever para teatro?
Gosto muito de ficção, não sou daqueles que só leem ensaios. Se a vergonha um dia se perder e o tempo se proporcionar, gostava de tentar escrever ficção.

Quando escolheu músicas para o programa “Playlist”, da TSF, incluiu muita world music. O que é que o atrai na música do mundo?
O outro. O que eu não conheço.

É um desses multiculturalistas que inspiram horror a alguma direita?
Uma das grandes questões do nosso tempo é como se olha para o outro, para o novo — novos modelos de economia, novos emigrantes, novos concorrentes, novos produtos. Há quem olhe com receio e procure proteger o que existe. Depois há uma visão de abertura à novidade, à mudança. Essa é a minha postura e acho que tem resultados mais proveitosos. Sou a favor da abertura ao outro, não olho com desconfiança para o que não conheço, mas com curiosidade. Por isso sou tão adepto das liberdades de circulação, da liberdade. Na world music, as outras línguas estão ali à espera de ser decifradas por nós, há sons que me fazem perguntar que som é aquele. É como um gastrónomo que se pergunta porque é que na Covilhã se come ‘pastel de molho’, que tem uma história e que não há em mais lugar nenhum. Gosto de conhecer essas histórias. Se ser multiculturalista é isso, sim, eu acredito no mundo global e vivo muito bem nele.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: FSCosta@expresso.impresa.pt

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