A história do dia que em 48 anos só foi feriado duas vezes
Salazar e Carmona nas comemorações do 10º aniversário do 28 de Maio de 1926, em Braga
foto Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
Um dos mais célebres discursos doutrinários do salazarismo - “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Família e a sua moral...” - foi proferido num feriado ocasional, a 28 de maio. A ditadura do Estado Novo durou meio século, mas teve uma relação ambígua com o dia em que nasceu, em parte por razões economicistas, em parte porque o 28 de maio não celebrava a chegada de Salazar ao poder
O golpe começou na ‘cidade dos arcebispos’. Em Lisboa, 400 quilómetros a sul, eram muitos os que não queriam acreditar que o pronunciamento militar de 28 de maio de 1926, marcava o início de uma ditadura que duraria 48 anos; o vespertino “Diário de Lisboa” dedicou toda a primeira página ao movimento que eclodira nessa madrugada, e reportava que “à hora que escrevemos estas linhas − 2 da tarde − sabe-se que o movimento está circunscrito à divisão de Braga, que foi revoltada pelo general sr. Gomes da Costa”.
O “governo, na sua função, garantindo que o movimento não teve repercussão, tomou as suas medidas”, e declarou ao vespertino que “não decretaria nenhumas medidas excepcionais, para Lisboa, pelo menos, e que a vida normal da cidade não se alterará”. O Diário de Lisboa informava ainda que “o conselho de ministros reuniu às 13 horas, no Governo Civil, onde se conservaram desde madrugada o sr. António Maria da Silva e o sr. dr. Barbosa Viana”.
Primeira página do Diário de Lisboa. Edição de sexta-feira, 28 de maio de 1926
DIÁRIO DE LISBOA / FMS
António Maria da Silva, o chefe do último governo da I República, avistou-se com os jornalistas às 13 horas. Estava “sereno e declarou que o movimento será asfixiado em breves horas, não tendo no país repercussão alguma”. Não foi! O golpe militar do 28 de maio − que muitos apoiantes do Estado Novo apelidaram de Revolução Nacional − conduziu à queda da I República.
O plano era ambicioso, e a primeira etapa era marchar sobre o Porto, apesar do destino final ser Lisboa. Gomes da Costa decidiu-se pela reunião de tropas em Santarém; outras, em Mafra, seriam comandadas por Mendes Cabeçadas. Óscar Carmona, que tinha sido ministro da Guerra em 1923, tinha por missão concentrar forças em Évora. Depois, todos juntos e coordenados, seguiriam para Lisboa. O governo de António Maria da Silva demitiu-se no dia 30 e, às 23 horas desse domingo, entrou em funções o 1º executivo da Ditadura Militar, liderado por Mendes Cabeçadas.
No último dia de maio, o Presidente Bernardino Machado resignou e preparou-se para um novo exílio.
Gomes da Costa homenageado pela Associação Académica de Coimbra, pouco depois do 28 de Maio de 1926
ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA / IP
Um rodopio de lideranças marca os primeiros 40 dias do novo regime: os destinos do país começam por estar confiados a Mendes Cabeçadas que é rapidamente destituído por Gomes da Costa.
Nova destituição e, às 15h00 de 9 de julho, já existe um novo governo, chefiado por Óscar Carmona. Seguem-se tempos de grande instabilidade e, um ano ano mais tarde, o governo publica um manifesto onde faz o balanço da sua ação.
Em 1927, celebrou-se o primeiro aniversário do 28 de Maio com feriado nacional, decretado pelo então líder máximo do país, Óscar Carmona, que “usando da faculdade” que lhe confere a lei, institui o feriado para esse ano através do decreto 13:665, e ordena aos “ Ministros de todas as Repartições [que] o façam imprimir, publicar e correr”.
Diário de Lisboa de 28 de Maio de 1927, dia que foi feriado para assinalar o 1º aniversário da Ditadura Militar
DIÁRIO DE LISBOA / FMS
No ano seguinte, a 27 de abril, António de Oliveira Salazar toma posse como ministro das Finanças, que “neste momento é a chave não só da vida financeira, mas de toda a vida governativa do país”, lê-se na edição do Diário de Lisboa de sexta-feira, 27: “Ninguém o acusará de buscar uma satisfação para a sua vaidade, porque raros homens se têm mostrado mais modestos do que ele − talvez pelo facto de ser um espírito culto, especializado nos problemas da sua pasta (...) Será bem sucedido na sua tentativa para restabelecer a ordem, a moralidade, e a verdade nas nossas finanças?”, pergunta o vespertino.
Desta vez, o professor de Coimbra que em 1926 tutelara a pasta das Finanças por escassos 13 dias, instalou-se em Lisboa com o intuito de ficar; e assim surge o ditador que moldou o país nas décadas seguintes. Com mão de ferro.
Óscar Carmona (ao centro), abriu o caminho para a chegada de António de Oliveira Salazar (à esquerda) ao poder
ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA / IP
Nesse ano, o 28 de maio não foi feriado, nem o seria nos sete anos seguintes. Mas Salazar discursou e enunciou algumas das bases programáticas de defesa da ditadura: “Se não fizermos a revolução de cima para baixo, ela virá de baixo para cima, contra tudo o estabelecido”.
Em Itália, Mussolini – que tinha admiradores entre os apoiantes da ditadura portuguesa – discursou na Câmara dos Deputados e prometeu manter-se no “poder mais dez ou quinze anos”, como noticiava a edição de “O Século” de 28 de maio de 1927. Para conseguir isso garantiu que “as deportações de políticos, cujo número é muito inferior ao propalado pelos inimigos no regime serão mantidas, pelo menos, até ao ano de 1932”.
O dia em que Salazar disse “não discutimos a pátria e a sua história...”
O Estado Novo teve uma relação ambígua com a celebração da data da instauração da Ditadura. “Basta dizer que nem o 28 de Maio, considerado oficialmente como início da ‘Revolução Nacional’, se tornou feriado fixo”, escrevem os investigadores Luís Oliveira Andrade e Luís Reis Torgal no livro “Feriados em Portugal”: “Tal não impediu, no entanto, o grande investimento nas comemorações por ocasião do seu aniversário. As realizações procuravam apresentar o 28 de Maio como o início de uma nova era de ressurgimento nacional que tinha cortado definitivamente − como se afirmava − com a anarquia”.
Em 1936, o décimo aniversário do 28 de Maio, foi celebrado com pompa e circunstância. Mas, mais do que isso, foi um marco simbólico da verbalização doutrinária do salazarismo, de um Portugal temente a Deus, que não discute, nem questiona os seus líderes.
Diário de Lisboa de 28 de Maio de 1936. A terça-feira em que se celebrou o 10º aniversário da Ditadura Militar foi feriado
DIÁRIO DE LISBOA / FMS
As comemorações da segunda e última vez em que o 28 de Maio foi feriado, tiveram o seu momento áureo na cidade dos arcebispos, onde dez anos antes começara o pronunciamento militar. O enviado especial do “Diário de Lisboa” ditou a notícia “pelo telefone” para a redação na capital, dizendo: Braga “está em festa (...) Por toda a parte flutuam bandeiras e galhardetes e ...) na Praça da República, junto às arcadas, veem-se dois grandes retratos do Presidente da República e do sr. dr. Oliveira Salazar”.
Eram 10h58 quando o comboio presidencial chegou à estação. O chefe de Estado, Óscar Carmona, “entrou na cidade sob uma autêntica chuva de flores”. O Presidente do Conselho, que viera de Lisboa com ele, seguia também no “automóvel aberto”. Ambos foram brindados com as flores e a salva de 21 tiros. “O cortejo desfilou numa verdadeira apoteose (...) os sinos das igrejas tocaram ‘A Portuguesa’ e o entusiasmo popular aumentava de instante a instante”.
A decisão de transformar o 10º aniversário do golpe de 28 de Maio em dia feriado foi publicada no Diário do Governo de 20 de Maio de 1936
D.R.
Houve parada militar, cortejo cívico, sacadas e janelas enfeitadas com “ricas colchas de seda e de damasco”. E houve discursos: do general Schiapa, do coronel Albino Rodrigues, do capitão Lucínio Presa, do deputado Aberto Cruz. Pelo meio, “o sr. general Carmona e o sr. Presidente do Conselho abraçaram-se demoradamente, enquanto a multidão os vitoriava em frenesi”.
Discurso transmitido em direto
O discurso de Salazar foi transmitido pela Emissora Nacional em direto. Empolgado e seguro da mensagem que pretendia transmitir aos portugueses que o veneravam ou temiam − Salazar enuncia neste dia a mensagem sobre “as grandes certezas da Revolução Nacional”.
Foram estas palavras que marcaram a doutrina moral da ditadura:“Às almas dilaceradas pela dúvida e pelo negativismo, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever”.
As comemorações passaram pelo Porto e encerraram em Lisboa, com a inauguração da exposição documental “Dez anos de Revolução Nacional”.
Cartaz que anuncia a exibição do filme “Revolução de Maio” de António Lopes Ribeiro. António Ferro colaborou no argumento com o pseudónimo Jorge Afonso
D.R.
No ano seguinte [1937], o SNI − Secretariado Nacional de Propaganda, dirigido por António Ferro, financia o primeiro filme de António Lopes Ribeiro. “A Revolução de Maio” recorre a numerosos registos filmados, nomeadamente o famoso que Salazar proferira no ano anterior sobre as grandes certezas da ditadura.
A trama pretendia alertar para a existência de alegadas manobras oposicionistas, com o galã António Martinez a encarnar o papel de César Valente, um comunista que conspirava contra o regime. Acontece que César andava a ser vigiado pela polícia, mas acaba por conhecer Maria Clara, que mantém o seu nome e a bela voz na película. César cede aos ideários políticos, porque a paixão por Maria Clara, uma menina da ‘situação’ se revela mais forte do que a doutrina marxista.
Ambiguidades....
O Estado Novo “foi prudente nos feriados. Manteve os republicanos, como o 5 de Outubro, mas fê-los perder importância”, explica o investigador António Costa Pinto, admitindo a hipótese de o 28 de maio poder nunca ter sido feriado porque “não celebra [um feito de] Salazar. Este dia tem outros heróis como é o caso de Gomes da Costa”.
Curiosamente, foi um deputado monárquico, Cancela de Abreu, quem em 1936 apresentou uma proposta na Assembleia Nacional para que este dia fosse declarado feriado com caráter definitivo. A proposta não foi bem sucedida, em parte por razões economicistas. Dois anos depois, Cancela de Abreu, voltou a levar o tema ao parlamento, admitindo a troca do 31 de Janeiro pelo 28 de Maio. A proposta foi novamente chumbada.