Que voz é esta?

“Havia uma senhora que ligava todas as noites para o SOS Voz Amiga, pedia desculpa e dizia: 'Não tenho ninguém a quem dizer boa noite'”

A solidão parece ser um problema cada vez mais premente e tem muito impacto na saúde física e mental. Oiça aqui o episódio do podcast Que Voz é Esta? com Francisco Paulino, presidente da SOS Voz Amiga, e Renato Carmo, professor de sociologia no ISCTE

“Havia uma senhora que ligava todas as noites para o SOS Voz Amiga, pedia desculpa e dizia: 'Não tenho ninguém a quem dizer boa noite'”

Helena Bento

Jornalista

“Havia uma senhora que ligava todas as noites para o SOS Voz Amiga, pedia desculpa e dizia: 'Não tenho ninguém a quem dizer boa noite'”

Salomé Rita

Sonoplasta

A solidão afeta cada vez mais pessoas. No final do ano passado, a OMS reconheceu que se trata de um "problema global de saúde pública" e criou uma comissão internacional para estudar a gravidade do fenómeno e apresentar medidas de mitigação.

É conhecido o impacto que a solidão tem, seja ao nível da saúde mental, seja na saúde física, provocando, por exemplo, um aumento do risco de desenvolver doenças cardiovasculares e demências. Qual a dimensão deste problema e que dinâmicas sociais e económicas podem estar na origem da solidão?

Francisco Paulino e Renato Carmo, professor de sociologia no ISCTE e diretor do Observatório das Desigualdades do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do instituto universitário.
TOMÁS ALMEIDA

“Acho que a solidão, hoje em dia, pode ser considerada uma doença mental. A solidão mata. A pessoa sente-se rejeitada, fica com baixa autoestima, acha que toda a gente a esqueceu. Daí até ficar deprimida é um pequeno passo. E a depressão, em alguns casos, está associada a pensamentos suicidários e ideação suicida", diz Francisco Paulino, presidente da SOS Voz Amiga, a mais antiga linha telefónica de apoio emocional e prevenção de suicídio do país.

São frequentes as chamadas com queixas de solidão. “Temos pessoas que nos telefonam e dizem que somos as primeiras com quem estão a conversar naquele dia.” São sobretudo mulheres, com idades entre os 55 e os 65 anos, viúvas, divorciadas ou cuidadoras informais; vivem tanto em zonas rurais, como urbanas. “Enfrentam grandes vulnerabilidades. Por exemplo, há quem cuide de familiares durante 24 horas por dia, não tendo quaisquer oportunidades de socialização.”

Também há quem telefone para a linha todas as semanas, há vários anos, "porque não tem outro tipo de apoio e vive muito sozinho". O responsável pela SOS Voz Amiga conta o caso de uma mulher que telefonava quase todos os dias pelas 22h00. “Pedia desculpa de cada vez que ligava e depois explicava que, como vivia sozinha, não tinha ninguém a quem dizer 'boa noite'. Então telefonava-nos, desejava ‘boa noite’ e depois ia deitar-se.”

Entre os vários fatores que podem estar na origem destes sentimentos de solidão, o professor de sociologia no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, destaca os de natureza económica. "Temos uma economia cada vez mais liberal, com um foco crescente no individualismo."

De acordo com o investigador, assiste-se, hoje em dia, a uma “erosão da vida coletiva” em diversas esferas sociais, nomeadamente ao nível do trabalho, comunidade e família. "Os valores ligados à solidariedade e à cooperação tendem a ser cada vez mais desvalorizados", dando-se primazia à "competitividade e à concorrência".

A precariedade no trabalho ou o desemprego podem contribuir para o isolamento social e a solidão, seja porque provocam processos de desligamento e desfiliação social, com perdas de laços com as outras pessoas, seja porque as dificuldades financeiras acabam por limitar as oportunidades de socialização, aponta Renato Carmo, também diretor do Observatório das Desigualdades do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE.

TOMÁS ALMEIDA

A diminuição do espaço que é público, assim como a maior distância que vamos criando entre nós, ao habitarmos cada vez mais fora do centro das cidades, onde as rendas das casas são mais acessíveis, podem contribuir para o aumento da solidão.

“O que neste momento está a acontecer nas grandes cidades do país, como Lisboa e Porto, é uma tragédia do ponto de vista económico e social, com todos os processos de gentrificação e especulação imobiliária que estão em curso. Há uma privatização crescente do próprio espaço, incluindo do espaço público", sublinha o investigador.

Neste novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado à solidão, foi também abordada a relação entre as redes sociais e a solidão e o aumento dos sentimentos de solidão entre os mais jovens, inclusive para valores superiores aos reportados pela população idosa, conforme têm revelado estudos internacionais.

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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