“Quem vai ser substituído pelas próximas máquinas são os que têm mais formação: engenheiros, jornalistas e médicos. É o paradoxo da IA”
A investigadora portuguesa Virgínia Dignum, perita que tem vindo a trabalhar num grupo de aconselhamento da ONU, admite que impostos e segurança social terão de ser reformulados com o crescente uso de robôs e inteligência artificial. E recorda que esta nova revolução industrial em curso deverá afetar mais as profissões que exigem maiores níveis de formação, do que as profissões braçais que exigem uma “destreza específica”. A constituição de uma agência e de uma convenção internacional figuram igualmente entre as opções possíveis para o futuro. Oiça a entrevista no podcast Futuro do Futuro
Um simples jogo de tabuleiro chega bem para Virgínia Dignum, investigadora portuguesa que tem vindo a colaborar com o grupo de Alto Nível de Aconselhamento para a Inteligência Artificial da ONU, descrever o atual estado da robótica mundial. “A inteligência artificial é muito melhor do que qualquer um de nós a jogar xadrez, mas ainda não temos robôs que sejam capazes de pegar e mudar uma peça de xadrez no tabuleiro”, responde a investigadora no podcast Futuro do Futuro.
Perante o potencial da Inteligência Artificial (IA) e as limitações conhecidas dos robôs na atualidade, Virgínia Dignum admite que a nova revolução que se avizinha haverá de provocar maior desemprego nos profissionais com funções de âmbito intelectual. A investigadora, que tem vindo a trabalhar na Universidade de Umeå, na Suécia, recorda que as máquinas ainda estão longe de executar trabalhos manuais que exigem uma “destreza específica”. “Aqueles que têm menos formação, portanto, aqueles que limpam a casa, que limpam os hospitais, que distribuem pacotes dos Correios ainda vão ser, provavelmente por muitos mais anos, pessoas”, afirma.
Johan Gunseus Johan Gunséus
“Neste momento não são aqueles que têm menos formação que vão ser substituídos pelas máquinas; são provavelmente aqueles que têm mais formação. São os engenheiros, são os jornalistas, são os médicos, são os radiologistas, são aqueles que têm mais formação”, analisa a perita que tem vindo a participar no Grupo de Alto Nível para o Aconselhamento da IA na ONU.
Por mais de uma vez, Virgínia Dignum recorda que são os humanos os responsáveis por aquilo que robôs e sistemas de IA decidem ou fazem. E na mesma linha de pensamento também defende que “não são os robôs que vão ter que pagar impostos ou pagar segurança social, mas as empresas que os utilizam é que têm de pagar impostos sobre aquilo que utilizam e a maneira como o fazem”.
Os autómatos podem substituir trabalhadores de carne e osso, mas “não precisam de segurança social. Não têm desemprego, não têm cuidados médicos, não têm cuidados de família. Portanto, robôs não precisam de segurança social”, sublinha a investigadora.
Virgínia Dignum defende a constituição de uma agência internacional para a monitorização da Inteligência Artificial no mundo
A resposta poderia levar a crer que a entrada em cena de máquinas e algoritmos não tem impactos sociais, mas Virgínia Dignum recorda que as empresas que usam autómatos e agentes digitais continuam a ter obrigações para com a segurança social. E por isso podem ter de lidar com algumas mudanças. “Vamos ver, provavelmente, uma redefinição da maneira como impostos e como contribuições vão ser feitas, mas não é necessariamente pelo número de robôs ou pelo número de sistemas de inteligência artificial”, prevê.
Também nas leis de autor terão de ser feitas alterações e é precisamente para dar conta da indefinição legal da atualidade, que Virgínia Dignum traz para o podcast Futuro do Futuro uma imagem produzida num sistema de IA Stable Diffusion com uma instrução que solicitava a inserção de uma máquina de lavar roupa da marca Bosch numa imagem desenhada ao estilo do pintor Hieronymus Bosch (1450-1516).
“Quem é o criador desta imagem? Sou eu que criei a instrução? É o pintor Hieronymus Bosch que desenvolveu o estilo? Ou é a corporação Bosch que define a máquina de lavar?”, questiona.
Imagem produzida segundo as instruções da investigadora Virgínia Dignum, que pretendia juntar numa imagem o estilo de Hieronymus Bosch e uma máquina de lavar roupa da marca Bosch
Para o desafio do som, Virgínia Dignum propõe a declamação de um poema pela investigadora Joy Buolamwini sobre os sistemas de inteligência artificial que estão treinados para reconhecer apenas pessoas brancas, perpetuando um preconceito que tem origem nos dados que os humanos disponibilizam.
Ativistas de vários pontos do globo já começaram a denunciar racismo, machismo e outros preconceitos que ainda se encontram na IA, mas Virgínia Dignum recorda que são os humanos os responsáveis pelas ações tomadas pelo algoritmos. E por isso considera que não faz sentido passar as responsabilidades para os autómatos, ainda que admita que possa fazer sentido criar ou alterar convenções internacionais que tenham em conta o uso de robôs tanto em âmbito civil como militar.
“É importante criar uma convenção em que falamos dos direitos e deveres de todos nós como desenvolvedores e como utilizadores da inteligência artificial”, responde.
O grupo de peritos da ONU também já começou a debater uma proposta com vista à criação de uma agência internacional com funções de monitorização das melhores práticas na IA.
“Vemos cada vez mais as diferentes regiões e diferentes países a desenvolverem e a entrarem numa ideia de competição e de corrida uns com os outros, porque não há uma plataforma de diálogo”, refere a investigadora, sobre a mais-valia que poderá surgir da constituição de uma Agência Internacional para a IA.
A convidada do podcast Futuro do Futuro lembra que, caso seja aprovada pelos órgãos decisores da ONU, a futura agência poderá coordenar o que se passa nas diferentes regiões do Globo, ao mesmo tempo que define uma base comum para uma regulação ou, pelo menos, para a forma de funcionamento da IA a nível mundial.
Parte desse trabalho já poderá ter em conta a iniciativa da UE, que em breve deverá publicar a Lei da Inteligência Artificial. Virgínia Dignum está de acordo com os diferentes níveis de risco, mas não deixa de fazer um reparo: “A lei, da maneira como está, é extremamente complexa. Aquilo fala de tudo e mais alguma coisa, tem imensos níveis, imensos artigos, é extremamente complexo”.
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