“O açaí é uma riqueza enorme da Amazónia, mas foram dois surfistas americanos que viram esse poder e patentearam o nome nos EUA”
De passagem por Lisboa para receber o Honoris Causa no Instituto Superior Técnico, o cientista brasileiro Ricardo Galvão alerta que não se pode pedir aos 30 milhões de humanos que vivem na Amazónia que permaneçam “em baixo das árvores”. Em paralelo com a defesa do meio ambiente, o cientista que fez frente a Jair Bolsonaro, defende que é necessário criar uma economia sustentável para viver na maior floresta tropical do mundo, ao mesmo tempo que recorda o sucesso mundial do açaí que está a ser explorado por dois americanos, em vez de ter gerado emprego no Brasil. “Na chamada economia do conhecimento, quem domina são as grandes empresas, disso não há a menor dúvida”, afirma. Oiça aqui a entrevista
Ricardo Galvão é hoje o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, mas foi enquanto líder do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que saltou para a linha da frente do debate político e fez frente ao antigo presidente Jair Bolsonaro, em defesa da ciência e da floresta da Amazónia.
“Certamente, eu serei demitido, não tenho a menor dúvida, mas vou sacrificar meu cargo a favor da ciência e da preservação do meio ambiente. E foi assim que eu fiz, não me arrependo”, responde o cientista brasileiro em entrevista ao podcast Futuro do Futuro.
Ricardo Galvão, líder do CNPq no Brasil, recorda que o ponto de não retorno do desmatamento da Amazónia está fixado entre 20% e 25%
TOMAS ALMEIDA
A polémica tinha começado em meados de 2019, quando o então Ministro do Ambiente Ricardo Salles admitiu adjudicar a uma empresa estrangeira os dados de monitorização por satélite sobre o desmatamento da maior floresta tropical do mundo.
Depois, o tema cresceu de tom com Augusto Heleno, que assumia a pasta da Segurança Institucional da Presidência da República, e o próprio Jair Bolsonaro que alegou que os dados do INPE “eram mentirosos”. E perante a pressão política, Ricardo Galvão não cedeu – e voltou a defender em público os dados do INPE que apontavam para um crescendo do desmatamento da Amazónia, depois da chegada ao poder de Bolsonaro.
Nessa altura, o INPE lidava com “15 alertas diárias de desmatamento e áreas não pequenas, no mínimo de 30 hectares.E não houve nenhuma ação.E por que não havia ação? Porque toda aquela região é uma região forte de mineração”, explica Ricardo Galvão dando ainda conta de que “700 a 800 minas ilegais” tinham sido entretanto contabilizadas.
Em público, Ricardo Galvão defendeu cientistas e instituição que liderava com uma frase que entra para história, em pleno ano de 2019, ao considerar que o então presidente Jair Bolsonaro “tomou uma atitude pusilânime, covarde” ao pôr em causa a veracidade da monitorização do desmatamento da Amazónia levado a cabo pelo INPE.
Ricardo Galvão não se demitiu – mas acabou demitido pelo governo brasileiro pouco depois da posição de força que tomou em defesa da ciência e da floresta amazónica. Passados quatro anos, alega ter deparado com situações de legitimidade duvidosa por parte de quem liderava o país, com o objetivo de manchar a sua reputação.
Na entrevista dada ao Futuro do Futuro, Galvão diz ter sido alertado por uma funcionária do Ministério de Ciências e Tecnologia para que tomasse cuidado, visto que “foi agora montada uma equipe aqui, (com) um pessoal de informação do governo”. Essa equipa de informação tinha como objetivo “fazer um levantamento" de tudo o que fez como presidente do INPE, garante Ricardo Galvão. “Não encontraram nada e, então, depois de 20 dias, me demitiram”, atesta o cientista.
A traça Diptychophora Galvani foi nomeada em homenagem a Ricardo Galvão pelo trabalho levado a cabo em defesa da Amazónia
DR
Na sequência desta polémica, Ricardo Galvão haveria de ser escolhido como um dos 10 cientistas de referência no Mundo para a revista Nature em 2019. No final de 2023, o presidente do CNPq passou por Lisboa para se tornar doutor Honoris Causa do Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa. Também tem hoje um traça batizada de Diptychophora galvani em sua homenagem – e a imagem dessa traça é apresentada em resposta a um dos desafios do podcast do Futuro do Futuro.
A par da criação de gado, das plantações de soja e da mineração ilegal, junta-se ainda a chegada de organizações criminosas que estão ligadas ao narcotráfico que terão em vista manter o desmatamento amazónico, ameaçando a origem de 15% da água doce do mundo, e de 12% toda a humidade da atmosfera. Apesar de ilegal, este novo poder não demorou a encontrar forma de dividir a opinião pública.
“O negacionismo atual é intencional”, diz Ricardo Galvão, lembrando o papel que as redes sociais tiveram na disseminação de notícias falsas nos tempos mais recentes. “Eles usam o próprio método científico para ir contra as ideias da ciência que atrapalham seus interesses económicos”, acrescenta o cientista.
Já com cargo diferente daquele que tinha no INPE e depois de ter frustrado na eleição para deputado federal, Ricardo Galvão mantém a atenção centrada na Amazónia. E recorda que no denominado arco do desmatamento amazónico há registos que dão conta de uma perda de 20% nos índices de humidade, além dum aumento do período de seca.
Os ambientalistas apontam um limiar entre os 20% e os 25% de desmatamento que poderiam abrir caminho a um ponto de não retorno, que inviabiliza a recuperação da floresta amazónica – e produz repercussões à escala global.
“Nós, no Brasil já desmatámos 12%. Estamos muito próximos. Felizmente temos um novo governo e só esse ano, do começo do governo Lula até agora, reduzimos o desmatamento da Amazônia em 22%”, dando uma boa-nova sobre a defesa do pulmão do mundo.
Sendo ambientalista, Ricardo Galvão assume-se como “desenvolvimentista” que acredita que a defesa da floresta e dos habitats também passa pelo desenvolvimento de novas atividades económicas, e na preservação das mais de 400 etnias que ainda vivem na maior floresta tropical. E é nessa condição que trouxe um som de uma tribo indígena de São Paulo para escuta neste podcast.
Além da preocupação com as novas rodovias, que prometem acelerar a expansão das minas ilegais, Ricardo Galvão lembra que é nas zonas que, tecnicamente, deveriam estar mais preservadas e que funcionam como reservas indígenas que há maiores índices de desmatamento.
“A maior parte do desmatamento da Amazónia é feito em terras públicas, 30% no mínimo em terras públicas”, denuncia o cientista brasileiro.
Sobre as atividades económicas, Ricardo Galvão refere o açaí, que pode produzir 10 vezes mais rendimentos que o gado, mas que acabou por ser aproveitado por “ dois surfistas americanos que visitaram a Amazónia”.
“(Os surfistas) voltaram aos Estados Unidos, patentearam o nome. Então toda essa produção industrial é controlada de fora do país. Imagine-se que toda a industrialização do açaí fosse feita na Amazónia. Teria empregos diretos para a Amazónia e para o Brasil!”, sublinha o cientista brasileiro.
“Na chamada economia do conhecimento, quem domina são as grandes empresas, disso não há a menor dúvida”, refere ainda Galvão, lamentando ainda que as grandes multinacionais optem por manter os laboratórios bem longe de países como o Brasil, que hoje é um dos maiores exportadores de matéria-prima do mundo.
Entre os anos 80 e a atualidade, o Brasil passou da formação de 2 mil doutores por ano e 0,3% de toda ciência mundial para 22 mil doutores por ano e 1,7% de toda a ciência mundial. “O que está a faltar ainda para o país é que toda essa produção científica se reverta em inovação”, conclui Ricardo Galvão, sobre o facto da grande economia do hemisfério sul não ter hoje muitas marcas de tecnologias reconhecidas internacionalmente.
Tiago Pereira Santos
Hugo Séneca conversa com mentes brilhantes de diversas áreas sobre o admirável mundo novo que a tecnologia nos reserva. Uma janela aberta para as grandes inovações destes e dos próximos tempos